“O projeto que saiu lá de Brasília, um baita dum projeto, um mega projeto social, chegou aqui e virou essa burocracia. Virou um problema”.
Entre a mata fechada e a carcaça do que um dia foi um grande pátio de obras ferroviárias, hoje pertencente à América Latina Logística (ALL), encontra-se a comunidade Estação dos Ventos. O nome salienta uma característica santa-mariense bem conhecida, o vento norte, que na Estação sopra com mais força. Ali residem 1.500 famílias, segundo dados da Associação dos Moradores do Loteamento Estação dos Ventos.
Alocada entre a região central do município e a Zona Leste, tendo a mata fechada e a cadeia de montanhas da região de Itaara como limite ao norte, a Estação dos Ventos conta com apenas uma via reconhecida pelos órgãos públicos, a Rua Luiz Castagna. No entanto, para os moradores, a comunidade se estabelece em mais de dez pequenas vias, estendendo-se por aproximadamente um quilômetro, desde o Bairro Presidente João Goulart, do qual a comunidade faz parte, até a ponte da BR158, que liga o município às regiões Central e Norte do estado.
Para quem vive na região, conviver com os velhos problemas e os novos empecilhos surgidos ironicamente após o início das obras tem sido revoltante. O sistema de transporte coletivo não chega às ruas onde vive a grande maioria. “Geralmente pegamos o ônibus na Avenida Osvaldo Cruz, mas de noite é mais difícil, tem que atravessar este matagal”, explica Aparício Rodrigues, o Tito, líder da Associação dos Moradores do Loteamento Estação dos Ventos. O matagal do qual falam os moradores está localizado no entorno do pátio da empresa de transporte ferroviário, no caminho até a parada de ônibus da linha Km3-Carolina-São José, na Avenida Oswaldo Cruz, Loteamento Km 3.
A situação ainda se agrava, porque a maioria da população não possui água nem luz em condições legais nas residências. “A Corsan tem um mapa de até onde tem água, sabem da rede de água. O que eles não enxergam é a necessidade, a importância, da água. A mesma coisa acontece com a luz.”, adverte Tito. Apesar disso, poucas casas têm esses direitos assegurados e registrados, servindo, assim, de pontos de distribuição para toda a comunidade.
Iniciada há mais de dez anos como Ocupação da área até então abandonada, a comunidade da Estação dos Ventos agitou-se, em 2012, com a perspectiva de se iniciarem as obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) previstas para o bairro. Desde 2006, segundo Tito, se estudava a possibilidade de realizar obras de infraestrutura na comunidade, para sanar os problemas estruturais existentes, oferecer conforto e garantir à totalidade dos moradores aquelas condições – luz, água, saneamento básico – que, básicas que são, onde quer que inexistam pelas vias oficiais, acabam sendo providenciadas pela força da necessidade.
Das expectativas de um ano atrás, problemas significativos brotam hoje entre as casas. Desde que se iniciaram, em março de 2012, as obras de drenagem e implantação de um sistema para o saneamento básico, subsidiadas através do Projeto de Aceleração do Crescimento (PAC), moradores de todas as ruas relatam que novos problemas surgiram. Os encanamentos que existiam antes das obras foram extintos e as malhas pluvial e cloacal permanecem até hoje sem canalização completa. “Até então, a gente tinha os valões. Tu tinha o teu esgoto no pátio, e era ligado nesses valões na frente da casa. Claro que tinha aquele problema ali, aquela água que ficava empoçada, mas o que a gente tinha feito era um paliativo que resolvia o problema no momento”, conta Tito.
Após a paralisação das obras pela empresa Cotrel, semanas antes das eleições municipais de 2012, o sistema de canalização de água e esgoto começou a mostrar rachaduras, segundo relato dos moradores. Além dos bueiros e dos canos de concreto, os meios-fios, um ano após a instalação, também ruíram. De acordo com o contrato estabelecido para as obras, a Prefeitura Municipal tem o dever de fiscalizar toda a área, inclusive a partir de uma superintendência específica de monitoramento e controle de obras. O relato de Tito, porém, aponta para o descaso do órgão público para a situação da comunidade: “o pessoal da fiscalização, que apresentaram para nós como fiscais dessas obras, nem receber a gente, recebem”.
Em janeiro de 2013, o superintendente de monitoramento e controle de obras do PAC, Francisco Severo, disse que a obra estava, sim, atrasada, mas não parada: “Estamos resolvendo ali um impasse na questão do tratamento do esgoto. Como a empresa já tinha avançado no seu cronograma, se deu ao luxo de parar. Isso não significa que a obra esteja parada e que não deva retornar no início de fevereiro à atividade plena”. O reinício, no entanto, não ocorreu.
Após a paralisação das obras pela empresa, em meados de 2012, até abril de 2013 nada havia mudado. Além dos primeiros problemas surgidos, a Cotrel paralisou as obras novamente após a prefeitura de Santa Maria constatar que o projeto inicial atingia uma Área de Preservação Permanente (APP). Assim, o prazo de término, prometido inicialmente para o fim de março deste ano, foi prorrogado por conta de um processo de repactuação do contrato com a empresa que prevê modificações no projeto original. Segundo Francisco Severo, a paralisação da obra se deu, também, porque famílias teriam ocupado o terreno onde, segundo o projeto, seria construída uma mini estação de esgoto.
Já nos primeiros dias de abril, o que se via pela comunidade era o total descrédito com a prefeitura, a empresa responsável, Cotrel, e o PAC. “Vieram, mexeram em tudo, estragaram os encanamentos que já existiam antes e não finalizaram nada. O esgoto está a céu aberto, as ruas tapadas de barro, e da promessa não nos foi entregue nada”, disse uma moradora. Os moradores também questionam se os estragos serão reparados pela prefeitura ou pela empresa, e se os valores da obra serão reajustados. Severo explica que na licitação há uma quantidade total de serviços que devem ser executados e um repasse público definido, e completa: “O que não estiver 100% concluído, não será repassado à empresa”.
A equipe da revista o Viés tentou contactar a empreiteira Cotrel em diversas ocasiões, horários e datas, a empresa, no entanto, não demonstrou interesse de se posicionar frente aos acontecimentos relatados. O superintendente de obras do PAC da prefeitura reafirmou a postura tomada pelo grupo e completou: “É complicado, isso é meio que geral, empresa nenhuma se manifesta. Sim, a obra é [de interesse] pública, mas eles sempre dizem para procurar a prefeitura. O que eu vou fazer?”
Nesta situação, bueiros e bocas de lobo foram tomados por areia e brita abandonados e que serviriam para a própria obra de terraplanagem e empedramento. O sistema cloacal não foi instalado nas casas e o esgoto corre a céu aberto. A rua principal, após receber uma camada de pedras, sem nivelamento, parece agora o leito de um rio vazio. “Hoje, se tu precisar de uma ambulância aqui, se tu precisar dos bombeiros aqui, eles vão vir pela lateral dos trilhos, que também está bem precária”, relata Tito. Nas outras vias, é o barro que inviabiliza o trânsito a pé sem deslizes.
Segundo o presidente da Associação, no projeto apresentado inicialmente, moradores, e principalmente os líderes da comunidade, teriam atuação relevante na fiscalização das obras. “Mas isso não acontece nesse governo. Tu vê a coisa errada, não tem com quem discutir ou para quem falar, para quem reclamar. E sabíamos que teríamos asfalto no projeto que a gente ajudou a discutir, que teríamos uma equipe que participaria da fiscalização – eu já tinha até uma lista com nome e tudo lá na prefeitura – que agora nem existe mais”.
Nos dias de chuva, a galeria posicionada sob a principal via não dá vazão ao volume de água que corre por ali em direção ao rio Vacacaí Mirim, inundando casas do entorno, como a residência de D. Sônia, onde a marca dos alagamentos já não sai mais da parede. Enquanto isso, o alagamento constante em períodos de chuva tem aumentado a proliferação de mosquitos e insetos. Os problemas não diminuem em dias de sol e calor, uma vez que o forte odor de esgoto invade as residências após a água da chuva secar naturalmente.
“Eu disse para professora: olha, ele não tem condições de ir pra aula quando chove, tudo enche de água”, diz Juliana, moradora do local, sobre a dificuldade de tirar as crianças de casa, quando chove, para irem à escola.
Paralelo a tudo isso, o material usado nas obras se decompõe com facilidade, como as tampas das tubulações fendidas de quadra em quadra. A leste e oeste, o que seriam ruas, a partir do projeto inicial da obra, se transformou em mato, entulho e lama. “A obra está inacabada. A empresa é responsável pela manutenção e conservação. Então, no momento que ela voltar a atividade lá, a primeira coisa que se tem que fazer é limpeza, desobstrução – fazer o que tem que fazer – porque ela só vai receber se o serviço tiver condições de ser utilizado”, pondera Severo.
A sede adotada pela associação da Estação dos Ventos é um espaço com chão batido de areia, para não ceder à chuva e ao esgoto, com teto de lona e sustentação de madeira, regularmente ocupado por moradores e moradoras que, dispostos numa variedade de bancos e cadeiras, participam das reuniões da associação ou das palestras do chamado “Pac Social”, projeto incluído ao PAC, que prevê explicações à população a respeito das obras, ministradas por uma empresa terceirizada. Na esquina mais próxima, o que parece uma pequena colina, sobre a qual o mato não tão ralo realça um relevo irregular, é na verdade o terreno onde deverá ser construída a creche da comunidade. Os detritos, acumulados durante a terraplanagem da rua em frente, se incorporaram ao cenário das obras abandonadas: uma montanha de terra esquecida que, dia após dia, se cobre de verde.
O material está ali, o esgoto está pronto, mas ainda não há nenhuma ligação com as casas. A profundidade da instalação dos canos é de dois metros abaixo do nível da rua, o que impossibilita qualquer tipo de ação dos moradores para tentar impedir os alagamentos. O encanamento do esgoto pluvial não tem desnível para escoamento, o que faz acumular a água em toda a extensão das ruas nos dias de chuva forte.
Enquanto a obra permanece parada, todos os percalços relatados pela comunidade se agravam. Na última grande chuva, ocorrida no dia 4 de abril, os moradores voltaram a enfrentar grandes alagamentos, principalmente no entorno da galeria da rua principal. Outro contratempo foi relatado: o encanamento que leva a água da chuva até o rio, na parte norte da comunidade, foi instalado numa posição contrária à vazão do rio, o que ocasiona o entupimento do cano quando a correnteza sobe.
Sobre o retorno das atividades, Francisco Severo resume: “A gente dá uma ordem de reinício e aí começa a contar o tempo de novo. Do prazo que parou”. A partir do retorno das máquinas e obreiros, todo o tempo contabilizado sem avanços na comunidade passa a contar do zero. A empresa Cotrel, segundo a prefeitura, tem a responsabilidade de consertar o que estiver danificado. Para os moradores, que enfrentam doenças causadas pela água suja, que há um ano vivem sem tratamento de água e esgoto, que são privados de sair de casa com chuva, seja impossível zerar o relógio.
AS SOLUÇÕES VIRARAM O PROBLEMA, pelo viés de Bibiano Girard, João Victor Moura, Marina Martinuzzi e Tiago Miotto.
bibianogirard@revistaovies.com
joaovictormoura@revistaovies.com
marinamartinuzzi@revistaovies.com
tiagomiotto@revistaovies.com
Parabéns a equipe da revista, é isso que deveria ser anunciado pelas grandes redes de comunicação, o quanto as empresas conseguem sugar das obras públicas ás custas do estado e das populações que necessitam das obras. Enquanto isso temos revistas criando fatos políticos para derrubar quem realmente se importa com essa população.
Penso também que deveria ser instaurada uma CPI da obra do KM3 – Porque está parada? Porque os materiais que são dinheiro público estão abandonados e deteriorados? Porque os responsáveis não tomam atitude? Teria a empreiteira algum benefício ou favorecimento por parte da prefeitura na contratação da obra? Muitas perguntas, as respostas têm que aparecerem, o ministério público tem que ser acionado.