Uruguai, imprensa e a política antiproibicionista

Pepe Mujica. Recorte sobre foto de infosurhoy.com

 
VISÃO DE MUNDO

Sabemos do mundo pelos jornais e revistas semanais que publicam em sua editoria “Mundo” ou “Internacional” o conteúdo sobre outros países. Se lêssemos hoje, certamente encontraríamos notícias sobre a Síria, Estados Unidos, desastres naturais e histórias pessoais acontecidas no estrangeiro ao Brasil. Porém, esse “estrangeiro” não é contextualizado por grande parte das matérias, e se restringe mais pelo interesse político do que pelo interesse humano. Exemplo dessa limitação do jornalismo internacional aparece com o caso do Uruguai, país latino-americano que, legalizando o autocultivo da maconha e legalizando o aborto, é manchete. O discurso sobre o assunto é simplificado pelos veículos de comunicação, e a visão de mundo conservadora convence o leitor de um “disparate” que, em realidade, é discutido há mais de oito anos no país.

Rapidamente, o modelo do jornalismo e do jornalismo internacional permite entender por que acontece a segregação de assuntos. Em um artigo sobre a história da imprensa brasileira, Pedro Aguiar escreve que “o fato é que o jornalismo brasileiro nasceu em 1808 com olhos voltados para fora”, nos acontecimentos políticos europeus e estadunidenses, “como a ’Primavera do Povos’ em 1848 repercutiu na Revolução Praieira pernambucana”, através da notícia chegada, um tanto depois, ao Brasil. Pode-se pensar nos atuais movimentos que disseminaram influências como a Primavera Árabe, Occupy Wall Street (Ocupa Rio), Slutwalk (Marcha das Vadias).

Logo, o jornalismo teria nascido internacional, mas com um embrião basicamente econômico, ponto onde explica sua face de controle: “mostram isso os boletins informativos sobre as movimentações mercantilistas” (ainda no século XVII), que colaboravam com notícias do exterior para fazer funcionar os assuntos domésticos dos grandes burgueses europeus, também servindo aos interesses dos imigrantes metropolitanos nos Estados Unidos, ou servindo à expansão do Império Britânico. Controle que dá a vitória às formas de poder dos colonizadores; e é com o controle que acontece a privação de conhecer um diferente modo de vida, que mora ao lado.

Por que, por exemplo, os problemas sociais da América Latina não pautam a editoria internacional? E quando pautam, se tornam uma feição plástica da realidade, ou tem o objetivo de deixar clara a disposição política do veículo que se dizia imparcial. Desconfia-se, então, que a questão pode gerar incômodo na rede de poder em que está enleada. O fator importante para o interesse especial por alguns assuntos e países remete, como já dito, à colonização. No Brasil, não foram os índios quem liam, e nem os que eram noticiados. Não foram os escravos negros, não foram os colonos pobres, não foram os asiáticos sem bens. Na América Latina se descortina uma pluralidade muito mais perigosa do que pacífica, porque ainda há incrustado em seu terreno, o preconceito. Ela é pequena nas páginas de nossos veículos comunicacionais.

A principal fonte dos veículos de comunicação para as notícias internacionais são as agências de notícia como a AFP (Agende France Press http://www.afp.com/pt), AP (Associated Press http://www.ap.org/) e a Reuters (http://br.reuters.com/). Para que as empresas de comunicação não necessitem de correspondentes em cada país (dado o alto investimento que isso supõe), compram esse serviço das agências. Em geral, reproduzem ou reorganizam os conteúdos. Podemos visualizar que as informações seguem a lógica do mercado, e, para que haja arroz empacotado no mercado, deve existir uma grande indústria – e grandes plantações monoculturais. Da monocultura, não se espera a colheita de diferentes grãos; do mesmo modo, com as idéias, não se espera que se pluralizem sozinhas e que se disseminem, pois não têm um ponto de partida; parece que o contexto em que estamos fisicamente e humanamente inseridos importa menos que o contexto daqueles que trazem suas empresas para cá.

Dentro do sistema globalizante e bastante prático (dê-me o dinheiro, darei a manchete), surgem alguns percalços. Supostamente, as eleições dos EUA e a estatização da maconha no Uruguai seriam temas relevantes dentro da política; parece que poderiam conviver nas mesmas páginas internacionais, com a mesma intensidade de cobertura, se não existisse conflito ideológico; fala-se dos Estados Unidos majoritariamente sem questionar, tudo para apartar-se de uma discussão complexa e cara ao país grande, amedrontado pelo tráfico, por líderes escusos em decisões políticas, por baixo investimento em educação; o grande filho veicula entretenimento, dados da bolsa de valores e faz dossiês sobre cultura restrito à culinária.

Sabe-se de uma monossilábica América Latina, pintada de uma maneira insuficiente. Os problemas não são discutidos, os preconceitos não aparecem para serem transformados, e a política editorial dos jornais não se abala.  Melhor, está sempre abalada por conflitos de poder. É difícil culpar alguém em relações tão emaranhadas. Se o jornalista consentiu pacatamente, se o editor abusou de sua autoridade, se este apenas representa uma empresa dotada de valores que se envolvem com instituições da sociedade e com um público que deseja certas coisas, outras não; se o calo histórico de dependência não deve ser demovido. Pois, “se não vender, também não adianta”. E esse é um véu bastante usado: apenas vendemos o que nos compram. Mas quem gosta daquilo que não conhece? E talvez acha-se que conhece o que nunca foi visto, realmente.

O GRANDE DESCONHECIDO DO LADO

O Uruguai, que tem como presidente atual José Mujica, caminha sobre um assunto incômodo, que é a estatização da maconha. Sabemos, pelos meios tradicionais de informação, das votações, dos lados favoráveis, os partidários do bloco de esquerda “Frente Ampla” e parte da população, e contrários, que incluem os bispos daquele país. Temos aqui o assuntoem mãos. Porém, esse é um ruído distante aproveitado pela grande mídia como uma polêmica vazia. O Uruguai, que discute o assunto há oito anos, propõe a liberdade do autocultivo; não se sabe o que foi feito durante todo esse tempo, não se ouve o processo dos favoráveis, não se conhece a sociedade uruguaia. O desrespeito ao assunto sério passa pelo deplorável.

“A proibição está criando mais problemas à sociedade”, foi o que disse o ministro da Defesa uruguaio Eleuterio Fernández Huidobro, ao ser questionado pela avalanche midiática que redescobriu o irmão sulamericano nos últimos meses. Maria Lucia Karam, ex-defensora pública e juíza aposentada no Rio de Janeiro, em entrevista sobre a política de proibicionismo realizada pelo Estado brasileiro, deteve-se: “Após um século de proibição, agravada nos últimos quarenta anos pela adoção da política de ‘guerra às drogas’, a pretendida erradicação das drogas tornadas ilícitas não aconteceu e nem mesmo a redução de sua circulação. Ao contrário, essas substâncias proibidas foram se tornando mais baratas, mais potentes e muito mais facilmente acessíveis.”

Mas pessoas como Maria Lúcia Karam e o que elas têm a dizer não fazem parte do cotidiano da real comunicação pela qual as empresas tanto presam em “defender”. Ora, alegando liberdade de expressão, a mídia chama de “censura” planos populares de regulamentação da imprensa, os quais visam ampliar as possibilidades de debate e de livre expressão de pensamento assegurando o amplo acesso da população a todos os meios. O que a mídia empresarial – fundamentada na planificação de lucro pelo lucro – busca, não é dividir espaço de pensamento conosco.

Além disso, o Uruguai é só mais um país da América Latina igual a tantos outros: não merece atenção da imprensa, não vigora nas capas de jornais, não é dissecado nem pelos programas de turismo. O Uruguai, para a imprensa hegemônica, atualmente é o país onde o senado e o governo federal estudam estatizar o plantio e a venda de maconha.

As grandes empresas de comunicação – a “velha mídia”, popularmente assim denominada – vem fomentando um discurso unilateral amedrontador, quando também irônico. Em uma sociedade que perdeu a confiança em entidades e instituições, torna-se um problema social a corroboração do ator social “atuante” motivado, básico e superficialmente, por empresas midiáticas e seus vieses – às vezes catastróficos. A mídia brasileira encontra-se no estágio espúrio de ver-se como justiceira e instituidora de cidadania, alcançando milhões de brasileiros em um único discurso televisionado. São os canais que constroem “uma vida melhor para as crianças”. A autorreferência – programas e propagandas que tratam de temas exclusivos da empresa ou que a difundam com uma ideia de produto perfeito – é anualmente revigorada. A mídia precisa dizer ao espectador que ela tem qualidade e sabe onde o fato de verdade acontece.

Os comentaristas de televisão ganharam status de operadores da verdade, narradores burlescos de fatos, verdadeiros paladinos do que é certo e errado. Num comentário desses, realizado no Jornal da Globo, Arnaldo Jabor, incontrolável crítico de governos populares e de suas ações, ultrapassa qualquer limite entre comentário e afronta. Falando sobre a estatização da maconha pelo Uruguai, o comentarista chama os presidentes de Argentina, Uruguai e Venezuela de “incompetentes que não resolvem nada de importante”, desfaz de 600 milhões de pessoas ao pronunciar “a América Latina só cuida de bobagens” e, durante a mesma chuva de preconceito e prepotência, ironiza os paraguaios que até hoje lutam para rever o golpe sofrido pelo presidente.

São demonstrações rápidas como essa – a arrogância de Arnaldo Jabor sobre os latinos americanos dura 1minuto e 23 segundos – que autenticam a visão da mídia viciada sobre um continente que, para os apoiadores [e beneficiados] até mesmo das ditaduras aqui ocorridas, serve apenas como local de extrativismo, onde vive um povo que não merece a atenção e o tempo da televisão brasileira. E se merece, é o tempo curto de ser ofendido pelo convencionalismo.

Enquanto isso, reportagens sobre os bueiros de Nova York enchem a tela de “emoção”, numa defenestrada missão de manter o status já em desuso de países centrais e países periféricos. O jornalismo brasileiro trabalha sobre um mapa arquitetado no início do século XX – lá pelos tempos de Repórter Esso – quando quem informava eram os Estados Unidos, e todo resto calava para ouvir.

É o caso da estatização da maconha no Uruguai, o qual, desde o início de 2012, quando o tema voltou às discussões no plenário vizinho, tornou-se o “rosto” de toda uma nação. “O Uruguai é o país que quer estatizar a maconha e seu presidente é um homem que vive numa chácara afastada da vida política”. Este é o viés midiático petulante e desinformado realizado por grande parte do que ouvimos, lemos e vemos.

O governo uruguaio encaminhou ao Congresso um projeto de lei para que o Estado passe a controlar e regulamentar a importação, produção, compra, comercialização e distribuição de maconha. Busca-se com a alternativa – inovadora, por isso também pulsante – que estando a produção sob o controle do Estado, haja uma queda no comércio e redução do tráfico.

Em pesquisa recente, 11% da população brasileira declarou-se a favor da legalização da droga. Quer dizer: se tomarmos como referência uma população brasileira na casa dos 200 milhões, estima-se que 22 milhões de pessoas seriam favoráveis, hoje, à legalização. O caso uruguaio pode servir como o principal exemplo contemporâneo de política estatal de mudança de foco. Enquanto a guerra contra o tráfico se mantém nos Estados Unidos – onde a população carcerária cresceu em 25 mil pessoas no ano passado, o que significa que 1 em cada 99,1 adultos está atrás das grades – no irmão esquecido o debate aquece as poltronas do Congresso.

O secretário adjunto da Presidência da República do Uruguai, Diego Cánepa, vem afirmando a posição do governo sobre a realidade – o uso massivo de maconha e a tentativa de não se fabricar mais um Estado forjado pelo medo e pela segurança bélica de homens enjaulados em casa ou nos presídios. “Não há dúvida de que o álcool e o tabaco são prejudiciais, porém não são proibidos. Fazemos campanhas massivas de conscientização”. A política que o Uruguai busca é a de criar debate entre os cidadãos, e não de reprimi-los. “Ninguém está dizendo que a maconha é boa”, diz Cánepa. O que se visa é a não repetição de grandes derrotas das políticas proibicionistas que matam, que criam o mercado do tráfico e colocam na frente de batalha – na guerra urbana –  em grande parte o pobre, vítima do mesmo Estado que o abusa, o vende, o recrimina e depois o prende.

Uruguai, imprensa e a política antiproibicionista, pelo viés de Bibiano Girard e Caren Rhoden.

reportagem inicialmente publicada em Facos Colaborativa

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