Batalha dos Bombeiros: bocas, batidas e rimas

“Com bocas e batidas ao mesmo tempo/ parecendo, imitando, um ao outro, outro um”, diziam os primeiros versos da música Minha Cultura, do grupo de rap porto-alegrense Da Guedes, que anos antes do retorno triunfal da velha mídia de vinil já rodava o país a 33 rotações por minuto com um refrão que reivindicava: “Hip Hop criado na rua/ essa é a minha cultura/ pode acreditar”.

Quando as batidas são as próprias bocas e as rimas fluem na praça, o lírico vira literal e a realidade se torna um pouco mais poética: é a essência do que aconteceu na Praça João Pedro Menna Barreto, no centro de Santa Maria, nos dias 14 de setembro e 12 de outubro com a Batalha dos Bombeiros, duelo de MC’s organizado pelo Coletivo de Resistência Artística Periférica (CO-RAP) que deve seguir acontecendo na segunda sexta-feira de cada mês.

A Batalha dos Bombeiros, batizada com o nome pelo qual é conhecida a praça que foi escolhida como local para a atividade, toma o espaço público transformando uma das práticas mais tradicionais do Hip Hop – a improvisação de rimas, o freestyle, sobre batidas feitas com a boca, o beatbox – em uma ação de rua que foi capaz de reunir, além dos habituais frequentadores da praça, um público amplo e interessado no duelo.

Em tempos de privatização e mercantilização de quase todas as esferas da sociabilidade humana, chama a atenção um evento realizado sem estrutura alguma. Além de algumas bandeiras e estandartes do Coletivo de Resistência Artística Periférica (CO-RAP), responsável pela organização da batalha, tudo o que se via eram pessoas reunidas: primeiro, dispersas pela praça, como em uma sexta-feira qualquer; depois, aglomeradas em um círculo irregular, no centro do qual ocorriam as batalhas, demonstrações de uma forma expressiva e musical que tem na voz o principal elemento rítmico e na capacidade de articular rimas improvisadas o mote da disputa.

Durante algum tempo, o aglomerado de pessoas permanecia em silêncio, ouvindo as rimas que os MCs improvisavam sobre a percussão vocal de BNegão Beatbox Show Man ou de Gabriela Gabitbox. De tempos em tempos, eram todos chamados a opinar, fazendo barulho, para decidir quem mandara melhor em cada uma das rodadas de 40 segundos para cada MC, das chaves eliminatórias até a final.

Assista ao vídeo sobre a Batalha dos Bombeiros feito durante a segunda edição, no dia 12 de outubro:

Embora não sejam absoluta novidade – é difícil não remeter à ligação com o repente nordestino ou com a trova gaúcha, ambas envolvendo ritmo e improviso –,  as batalhas de rimas são a expressão de uma cultura que sobrevive e se renova nas ruas.

As batalhas de MC’s dependem direta e indiretamente da espontaneidade: não só da espontaneidade sagaz que gera as rimas improvisadas, mas também do espontâneo da convivência, do encontro que permite as trocas e o fluxo da criação.

Igor da Rosa Gomes, o MC Magrão, membro do CO-RAP e vencedor da primeira edição da batalha, explica que o evento ajuda a difundir a cultura do movimento Hip hop e integrar a juventude das diferentes regiões da cidade: “Aqui tem gente que mora na zona leste, tem gente que mora na zona sul. Eu acredito nisso dos jovens se encontrarem e se identificarem, se reconhecerem. Isso é importante, não [só] para a cultura: é importante para a cidade, é importante para as pessoas”.

Há batalhas de rap que, pela tradição na história recente do Hip Hop no país, pela localização mais central ou por terem servido como base para MC’s que tiveram projeção, são conhecidas nacionalmente: Batalha do Real (Rio de Janeiro), Batalha do Conhecimento (Porto Alegre), Batalha da Santa Cruz (São Paulo), Liga dos MC’s (Rio de Janeiro), Rinha dos MC’s (São Paulo), Batalha Hutúz (premiação nacional), entre muitas outras. Algumas, com a utilização dos habituais palco e microfone, outras a cappella; algumas em espaços fechados, outras na rua.

No caso da Batalha dos Bombeiros, a opção por realizar o evento sem nenhum equipamento sonoro além das cordas vocais dos participantes foi uma decisão proposital. “A gente consegue fazer, na nossa própria produção, da nossa maneira, a cappella. Não precisa só de mega infraestrutura”, explica Flavinha Manda Rima, MC do CO-RAP e finalista da segunda edição da batalha.

As batalhas de MC’s são demonstrações de uma prática diversa em nuances e estilos, a improvisação, arraigada principalmente entre os jovens das periferias urbanas e que não acontece somente na hora do desafio: por isso, assume o caráter de uma apresentação de artistas de rua. Antes da Batalha, a roda de improviso chama as pessoas a se aproximarem, a ouvirem, a prestigiarem o espetáculo, que tem na capacidade de contagiar o público e na fala simples e gramaticalmente “incorreta” do cotidiano, reproduzida nas rimas, o centro das atenções.

Segundo Flavinha, um dos intuitos da batalha dos bombeiros é a democratização da cultura, que pode ser produzida e fruída de uma maneira mais autônoma. “Nós somos cultura da periferia, para quem quiser ouvir. Dessa maneira que a gente democratiza a cultura, e eu acho que as pessoas que vêm aqui já não estão mais satisfeitas só em pagar ingresso e se divertir daquela maneira pré-determinada, pra quem pensa a cultura pra nós”.

Na contramão do aumento da repressão às expressões como a pixação e o grafite na cidade, com a Operação Cidade Limpa, da “limpeza” da Avenida Rio Branco com a retirada dos camelôs, da falta de espaços para a juventude, do aumento da vigilância com a instalação de câmeras e a criação de uma guarda municipal voltada à proteção do patrimônio, a Batalha dos Bombeiros propõe a utilização de um espaço público central de Santa Maria como local para encontro e expressão de uma cultura oriunda das periferias.

Nem sempre as batalhas de rimas em espaços públicos acontecem sem problemas com a ordem – apesar de pacífica, a reunião e a presença de pessoas muitas vezes estigmatizadas parece incomodar, tal qual aconteceu recentemente em Porto Alegre, na Batalha do Mercado. A atividade, que ocorre na frente do Mercado Público, na rua, e também tem edições mensais, acabou sendo alvo de uma abordagem policial, e acabaram todos os que rimavam, ouviam e se divertiam com as mãos na parede, indignados sob o olhar impassível dos homens da lei.

“Se tem uma pá de gente que nem tem aqui hoje e está sempre, alguma coisa é, tem alguma importância, tem algum valor”, afirma Cauê Jacques, vencedor da segunda edição da Batalha dos Bombeiros, que levou para casa o troféu “Panteras Negras”, feito artesanalmente pelo também membro do coletivo Rodrigo Marques “Cardial”. “Santa Maria é uma cidade universitária, o segundo maior contingente militar do país, é cidade cultural, mas isso aqui não tem incentivo de prefeitura nenhuma, é mobilização urbana do povo mesmo, do pessoal que curte”, afirma Cauê. Talvez por isso, o clima da batalha não tenha sido tanto de confronto, mas principalmente de celebração: o festejo de uma prática que surge, a celebração de um conceito de espaço público que resiste.

Veja abaixo as fotos da segunda edição da Batalha:

   
   
   
   
Batalha dos Bombeiros: bocas, batidas e rimas, pelo viés de Tiago Miotto
tiagomiotto@revistaovies.com

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