“Pra vocês verem que a República está jogando trabalhador contra trabalhador”.
A frase discorrida por um agricultor frente a uma linha de policiais prontos para atirar, guardada no belo e doloroso filme “Terra para Rose”, corrobora a imagem da história do Brasil, esse país onde movimento social é abafado, militante é morto e provas de crimes são fechadas a sete chaves.
Um tiro. De um lado, 2 metralhadoras 9 mm, 8 submetralhadoras 9 mm, 7 revólveres calibre 38, 10 revólveres calibre 32, 60 fuzis calibre 7,62, 29 bastões e 14 escudos. Do outro, em instantes, 21 mortos e 67 mutilados. Além dos policiais, o poder de gravata. Ordena Paulo Sette, então Secretário de Segurança do estado do Pará: “usar a força necessária, inclusive atirar”. Mais de 150 policiais comandados a ‘fazer seu trabalho’, de perpetuar a imagem de uma instituição autônoma do poder do Estado, reminiscências de décadas atrás. A polícia ao lado dos bons e contra os maus. Os primeiros, a família, a propriedade privada, o capital, os latifundiários. Aos maus, resta uma lista incompleta: movimentos sociais, pobres, militantes, integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra…
A mídia parece caolha, e seu olho defeituoso está sempre do lado do mais forte.
A imprensa de massa cooperou e segue cooperando com seu desserviço público de perpetuar a imagem da violência “do lado de lá”, dos trabalhadores sem-terra, daqueles que bloqueiam rodovias, que caminham milhares de quilômetros em marcha, que lutam arduamente pela Reforma Agrária e por um país menos injusto, com menos desigualdade e mais dignidade para o trabalhador. Enquanto agricultores fazem ações de massa em movimentos populares de debate e de luta, os agentes obscuros da pistolagem e os quadrilheiros pagos pelo latifúndio, muitas vezes policiais, matam outros trabalhadores. Policiais mal pagos pelo poder, influenciados pelo discurso de seus patrões, enganados pela hegemonia, incomodados com a comparação de classe entre eles e os sem-terra, por não aceitarem que estes são seus iguais.
“dois tiros na cabeça e um na perna”
Leonardo Batista de Almeida, Altamiro Ricardo da Silva, José Ribamar Alves de Souza, Antônio Costa Dias, Raimundo Lopes Pereira, Graciano Olímpio de Souza, Manoel Gomes de Souza, Lourival da Costa Santana, Valdemir Pereira da Silva, Antônio Alves da Cruz, Robson Vitor Sobrinho, Abílio Alves Rabelo, João Carneiro da Silva, Antonio (o Irmão), João Alves da Silva, Amâncio Rodrigues dos Santos, Joaquim Pereira Veras, João Rodrigues Araújo. Dezenove pessoas mortas, uns com tiros à queima-roupa, outros a pauladas, tiros na cabeça e no abdômen, hemorragias internas e externas, explosão do coração por instrumento talhante etc. Uma chacina onde quem não corria levava tiro no rosto, e quem fugia também. A floresta no entorno transformou-se no esconderijo de muita gente, sendo que muitos estavam baleados e machucados, mas tinham medo de voltar ao local. As mães gritavam aos filhos para que adentrassem a mata. Os que se salvaram tiveram sorte ou seus rastros não foram a primeira escolha de algum homem das forças munido de armas de fogo e de todo o aparato de segurança. Do lado dos mortos, pedras, ferramentas de trabalho como foices, facões, enxadas, paus.
Ao cair a noite do mesmo dia daquele cenário de guerra, dia 17 de abril, como no trem que deixa Macondo, em “Cem anos de solidão”, carregado de mortos pelo tiroteio, as luzes do município de Eldorado dos Carajás foram apagadas e o cenário se transformou. Após limpo o rio de sangue da rua, os corpos eram jogados em caçambas de caminhões que tinham como destinos pontos estratégicos distintos, lembra uma moradora.
Segundo Nelson Massini, um dos legistas dos corpos, pelo menos dez pessoas foram mortas com tiro à queima-roupa. Sete lavradores foram mortos por instrumentos cortantes, como facões, instrumentos dos próprios sem-terra. Uma antiga prática da polícia e dos livros de suspense: tentar alterar a cena do crime.
“três tiros disparados que atingiram a testa e o abdômen”
Dezenove sem-terra foram mortos no dia 17 de abril de 1996 pela Polícia Militar do Estado do Pará no confronto que se tornou internacionalmente conhecido como Massacre de Eldorado dos Carajás.
O morticínio ocorreu quando 1.500 sem-terra acampados na região resolveram marchar em protesto contra a demora da desapropriação de terras para a Reforma Agrária. No centro do ocorrido estava a Fazenda Macaxeira. Segundo o governador da época, Almir Gabriel, e seu Secretário de Segurança, os manifestantes estariam obstruindo a rodovia PA-150, que liga a capital Belém ao sul do estado. Pretexto mais do que óbvio para esfaquear, balear e matar agricultores sem-terra, cidadãos de movimento fruto da política oligárquica latifundiária, herdeiros da Lei de Terras.
De Paraupebas, cidade mais ao sul, insurgiu uma das tropas. De Marabá, ao norte, vieram os outros combatentes militares. No meio do caminho, no km 96 da PA-150, mais precisamente na “curva do S”, como foi apelidado o local, estava Eldorado dos Carajás. Os 1.500 agricultores em marcha compunham o infortúnio para o bel-prazer de grandes fazendeiros e dos governos déspotas irmãos dos anseios dos poderosos.
“morte por esmagamento do crânio”
Médico, Secretário de Segurança no segundo governo Alacid Nunes (1979-1983), ex-dirigente do hospital Barros Barreto, ex-dirigente da Divisão Nacional de Pneumologia Sanitária do Ministério da Saúde, inicialmente filiado ao PMDB para depois ser um dos fundadores do PSDB, Almir Gabriel até hoje é lembrado como o governador do Massacre. Entretanto suas forças políticas e seu partido, apoiado pelas elites, tentam meticulosamente isentar o nome de Almir entre os responsáveis pelo crime. Na jogada política sobrou para o bode expiatório, o Secretário Paulo. Além dos mortos, a ação truculenta da polícia de Almir deixou mais de 60 mutilados e duas mortes posteriores ao acontecido. Vinte e um mortos ao total. Seis meses depois do fato, o procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro, determinou que a Polícia Federal reconstituísse a inquirição. Havia deficiências técnicas nos laudos e deturpações burlescas sobre o ocorrido. Brindeiro, ao pedir melhor elucidação, ponderou que a autorização do governador Gabriel à desobstrução da estrada alegaria seu conhecimento sobre a operação.
“foi introduzido na cabeça da vítima, partindo-a e expondo os seus miolos”
“O réu desse crime é a polícia, que teve um comandante que agiu de forma inadequada, de uma maneira que jamais poderia ter agido”, afirmou José Gregori, chefe de gabinete do então ministro da Justiça, Nelson Jobim (sim, o mesmo Nelson).
O comandante da ofensiva era o coronel Mário Pantoja de Oliveira, afastado do cargo no mesmo dia, o qual também recebeu a sentença de 30 dias em prisão domiciliar ordenada por ninguém menos que Almir Gabriel. Pantoja perderia o comando do Batalhão em alguns dias. O fazendeiro vizinho acusou na época o proprietário da Fazenda Macaxeira de ter prestado propina a Pantoja para que aniquilasse líderes do movimento rural.
“tive que sair pelo chão me arrastando para o miolo de gente junto à água da chuva, que se misturava com sangue”
Uma empreitada policial poderia ter dado “cobertura” a um plano mais ambicioso e sanguinário. O ministro da Agricultura, Andrade Vieira, na época responsável pela Reforma Agrária, pediria demissão na mesma noite. Após o massacre, o Ministério da Reforma Agrária, extinto pelo garoto propaganda do neoliberalismo brasileiro, Fernando Collor, atual comparsa dos governos petistas, seria recriado.
No mesmo ano, o Exército mobilizaria 2.000 homens para blindar as terras de Fernando Henrique Cardoso em Minas Gerais, programadas para serem ocupadas pelo MST. Desde Carajás até janeiro de 1997 o número de agricultores sem-terra mortos já ultrapassava duas dezenas em dados oficiais. Números de uma guerra silenciosa. Um ano após a chacina, FHC receberia os integrantes do maior movimento social das Américas no Palácio do Planalto. As negociações não tiveram êxito.
“O presidente Fernando Henrique Cardoso lastima o ocorrido e promete dedicar mais esforços à solução dos problemas no campo”.
O MST, através de sua força abissal de luta, faria alguns fazendeiros reféns, em 1997, no Paraná, por cinco horas. Entre dezenove mortos em 1996 e cinco reféns em 1997, o Ministro da Justiça da época, Iris Rezende, defenderia o apoio da polícia aos fazendeiros.
O dia 17 de abril então é considerado Dia Nacional de Luta Pela Reforma Agrária. Surgia o célebre movimento “Abril Vermelho”. Quinze anos depois, o Brasil continua encontrando nas páginas cruéis de sua história nomes de vítimas de pistoleiros, como Dorothy Stang e Elton Brum. A fome homicida está bem viva.
“A trajetória do projétil que o atingiu na região temporal fez um percurso de cima para baixo e de trás para diante, indicando ter sido ele alvejado quando se encontrava no chão”.
Não houve perícia nas armas e projéteis de ambos os lados do confronto. Assim não se pode saber quais policiais atingiram determinadas vítimas ou qual foice matou seu próprio companheiro. Os 155 policiais militares que participaram da operação foram indiciados sob acusação de homicídio pelo Inquérito Policial Militar (IPM), contudo, perante as leis penais nacionais, não existe punição em grupo, pois cada caso merece estudos especiais. Assim, os criminosos chefiados pelo governo permaneceram impunes.
“Já ocorreram julgamentos, em um deles, inclusive, o coronel que comandou a operação foi condenado há mais de 500 anos de prisão. Eles recorreram ao Tribunal Superior e a pena foi suspensa, ou seja, os responsáveis pelo massacre permanecem impunes”, diz Pedro Cesar Batista, autor do livro “Marcha Interrompida”. Dos 144 incriminados, os dois únicos condenados – o coronel Mário Collares Pantoja e o major José Maria Pereira de Oliveira – estão em liberdade.
“só tem mulher e criança lá dentro”
Só tem mulher e criança, gritava uma voz feminina desesperada. Ao contrário do imaginável, sua voz não ardia em choro, mas ganhava tons graves ao repetir “só tem criança e mulher lá dentro”, enquanto um policial segurando um grande pedaço de pau ameaçava entrar num barraco, olhando onde haveria uma fresta para entrar, como uma cobra a surrupiar vidas.
Os agentes do capital, os governos e seus contribuintes latifundiários, mesmo chacinando a cada ano não conseguem parar o MST. Em 1998 dois líderes do movimento social são mortos novamente no Pará. Como consequência, Fernando Henrique Cardoso convoca o exército de armas, e não o exército de estudos territoriais para deslocarem-se ao estado. Mobilizadas 25.000 famílias em todo o Brasil, O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra ocupa 26 fazendas improdutivas em cinco estados do país.
“Terra à vista” gritou Cabral.
Em abril de 2000, quatro anos depois dos dezenove sem-terra serem enterrados em “covas medidas nas terras que queriam ver divididas”, o Brasil tentava levantar a baiana caída no desfile sem que os jurados percebessem. FHC mandou construir uma caravela que nunca conseguiu deixar o cais por problemas técnicos. O valor atual aproximado da embarcação seria de R$ 6 milhões. Um vergonhoso festival de equívocos para um presidente do final do século XX perante os navegadores de 1500 e R$ 6 milhões implantados em um barco que não navega. A colônia moderna brasileira, fundada pelo neoliberalismo, até pouco tempo vivia sob o “complexo de vira-lata” de Nelson Rodrigues. FHC queria um barco para homenagear os “colonizadores”. Por parte do MST a comemoração ocorreu um pouco diferente: foi realizado um mutirão de protestos. Militantes organizaram ocupações de terra e ações físicas contra propriedades públicas, presentes da burguesia que há 500 anos tenta distorcer a história do Brasil.
“Eu sou Oscar Niemeyer, arquiteto, e quero protestar contra a impunidade dos responsáveis pelo massacre de Carajás”. (Em depoimento público)
A mídia dos barões financiada pelos donos de grandes porções da terra brasileira só enxerga com seu único olho bom, o direito, aquilo que chamam de depredação do patrimônio público. Quantas estátuas, placas, outdoors, monumentos etc. são reverência ao trabalhador rural da pequena propriedade? Quantos pórticos municipais exaltam o pequeno agricultor ou os seus mortos a tiros à queima-roupa pela polícia? O Monumento Eldorado Memória, projeto de Oscar Niemeyer, inaugurado no dia 7 de setembro de 1996, em Marabá (PA), em homenagem aos 21 mortos, foi destruído dias depois.
Na reportagem “É a parte que te cabe deste latifúndio”, de Nathália Costa, veiculada na edição 41 da revista o Viés, ela remonta: o que conhecemos como o descobrimento do Brasil, também poderia ser denominado como ‘invasão’ do Brasil’.
Invasão é quando a entrada se dá em um local que está sendo utilizado. Os 10 milhões de habitantes nativos do Brasil de 1500 estavam muito bem adaptados à terra e usufruíam dela a partir das necessidades básicas. Foram dizimados. Ocupação é a tomada de um local que não está atendendo a sua função social. Os trabalhadores sem-terra ocuparam ou invadiram a Fazenda Macaxeira, terreno de 40 mil hectares, com um só dono, um latifúndio improdutivo de interesse apenas especulativo? Ocuparam, e seus 21 mortos representam a tristeza e a luta daqueles que viveram para contar.
“Que ele [o governo] faça essa reforma agrária de uma vez por todas, que tire do papel, que tire da televisão e faça na terra”. (Rose, no filme Terra para Rose sobre a desapropriação da Fazenda Anoni, no Rio Grande do Sul).
Dezoito mil hectares antes pertencentes à Fazenda Macaxeira somente após o massacre foram considerados improdutivos. Atualmente cerca das 700 famílias vivem nos 37 mil hectares do assentamento rural. Para o nome da localidade, uma data inolvidável: Assentamento 17 de Abril. Segundo informações do Jornal Brasil de Fato, cada família assentada recebeu um lote de 25 hectares, onde cultiva a agricultura de subsistência. O que sobra da plantação é vendido. Os assentados moram em uma agrovila, um pouco distante da roça. Na vila ficam as casas, as mercearias, a escola, a sede da cooperativa e da associação do assentamento, o posto de saúde em vias de ser inaugurado.
“É uma comunidade privilegiada em termos de desenvolvimento, se comparada a outras comunidades dentro e até fora do município. Foram os assentamentos que trouxeram maior desenvolvimento para a região, gerando recursos para o município”, disse Deusinho Alves de Sousa, secretário municipal de Agricultura da época e atual vereador da cidade, ao Brasil de Fato.
Em meio à maior ameaça aos ecossistemas da região da atualidade brasileira, as grandes fazendas do agronegócio internacional e de monocultura, encontra-se o “17 de abril”. A região também é caracterizada pela presença dos dominadores de imensas faixas de terra, como a Volkswagen, a Liquigás, o Banco Real entre vários outros, que aproveitam a redução de impostos em até 50% desde que destinem 2/3 do espaço à agricultura. O óbvio é que tais extensões de terra são um plano perfeito para os monopólios no jogo sórdido da especulação imobiliária. Apontadas como principais financiadoras do desmatamento das florestas tropicais da nação e mecenas dos votos de políticos para favorecerem a aprovação do novo Código Florestal, as fazendas vizinhas do “17” assistem ao progresso do coletivo. O assentamento desenvolveu-se e tornou-se modelo. Embora assim, o Pará ainda importa grande parte de seus alimentos dos estados vizinhos.
“—E foi morrida essa morte, irmãos das almas, essa foi morte morrida ou foi matada?”
Não é fácil lutar contra os gigantes dos milhões de hectares, mas o processo de Reforma Agrária, paralisado desde o governo Lula (leia entrevista especial com Pedro Stédile sobre o assunto concedida ao Viés), seria a consolidação da agricultura camponesa na mesa dos paraenses e de todos os brasileiros. A Reforma Agrária é questão de uma dívida pública com torturados, mutilados e principalmente com os milhares de mortos pela polícia, pelos jagunços, pelos atiradores mandados, pelo crime disfarçado de poder político. Talvez a Presidente saiba o que é isso. Mas a subordinação ao agronegócio e aos milhões que entram no caixa de alguns políticos afastam qualquer esperança popular de uma eficaz e franca reforma digna aos brasileiros excluídos do real valor da cidadania e da dignidade.
SEVERINO LAVRADOR, MAS JÁ NÃO LAVRA, pelo viés de Bibiano Girard.
bibianogirard@revistaovies.com
@bibianogirard
O título é parte do poema-livro “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto, o qual você pode ler clicando aqui.
A imagem ilustrativa está na capa do livro “O Massacre”, de Eric Nepomuceno. Editora Planeta.