Andando pela pequena calçada que dá acesso à porta lateral da Prefeitura de Santa Maria, uma outra porta, mais adiante, também dá lugar à entrada e saída de indivíduos. São 11 horas da manhã e ainda falta meia hora para as portas do Restaurante Popular Dom Ivo Lorscheiter abrirem-se aos frequentadores. Lá dentro, no refeitório, a equipe de cozinha almoça antes de posicionar-se atrás dos dois bufês de guarnições. Numa sala no andar inferior, a equipe administrativa conversa sobre o fornecimento de alimentos. Na entrada, ainda com as portas fechadas, algumas pessoas começam a chegar, já sentindo o cheiro do almoço do dia.
Instantes antes de o relógio marcar 11 e meia, o restaurante é aberto. A fila desloca-se para dentro, onde estão os guichês de compra. Por R$1,25, obtém-se a ficha da refeição e sobe-se a rampa de acesso ao refeitório. Os frequentadores, na segunda-feira, dia 19 de março, eram servidos de arroz com galinha, couve, polenta e feijão. A repetição é livre no caso do arroz e do feijão. “Tudo é a gente que serve, mas tem muita gente que come muito arroz e feijão porque é a única refeição grande que faz”, diz Vanessa Medina, nutricionista do Restaurante Popular. Por R$0,50 centavos adicionais para cada item, há a opção de comprar sobremesa e um copo de suco natural extra. Aos poucos, o refeitório enche e, nas grandes mesas, observa-se um grande número de aposentados, estudantes e algumas pequenas famílias.
Na fila para entrar, seu Solon, aposentado, fala que é frequentador assíduo do restaurante. “É muito bom, todo mundo gosta”, diz ele. Nara, uma jovem senhora bem vestida e acompanhada do pequeno filho, diz que até então nunca havia ido e que está ali por curiosidade. Sobre o público, Vanessa diz: “Tu observas que morador de rua mesmo são poucos. Talvez pela localização, porque muitas vezes essas pessoas carentes ficam mais na periferia, né?! E acho que também por falta de conhecimento, por não saberem como é, por ficarem com vergonha ou por não saberem mesmo”. De fato, naquela segunda, no horário de início das refeições, observa-se apenas duas pessoas moradoras de rua e poucas famílias de baixa renda.
A localização, como afirma Vanessa, é um dos pontos fundamentais para a baixa frequência de pessoas em situação de vulnerabilidade nutricional. Situado no centro, ao lado da prefeitura, o Restaurante Popular Dom Ivo Lorscheiter é de difícil acesso a moradores dos bairros mais afastados do centro de Santa Maria. Apenas aqueles que trabalhem no centro não necessitarão de, por exemplo, despender R$4,90 com passagens de ida e volta de transporte coletivo para chegarem ali. Somados aos R$1,25 da refeição, totalizando R$6,15, o custo eleva-se muito e torna-se inviável para os quase 50 mil santa-marienses que possuem renda de até um salário mínimo. Se levarmos em conta, também, que o centro é a área com menor concentração de pessoas com rendimento de até dois salários mínimos (29,06% dos moradores da região) , de acordo com o censo de 2010 do IBGE, e a região norte possui a menor média salarial da cidade, chegamos à conclusão que o posicionamento do restaurante é, de fato, um dos grandes empecilhos para que a missão de ter como público alvo a população mais carente ainda não consiga ser completada.
Por outro lado, para os aposentados que moram na região central (17,74% dos idosos residem no centro urbano, sendo essa a área de maior concentração da faixa etária) e para trabalhadores do comércio ou de estabelecimentos do entorno, o Restaurante proporciona uma alimentação saudável sem ocasionar um rombo na renda. Se um trabalhador do centro necessitasse voltar à casa de ônibus para almoçar, ou alimentar-se em restaurantes comuns, dificilmente gastaria menos de R$10,00, o que representa um custo inviável dentro de um orçamento de um salário mínimo, por exemplo.
Vinculado ao Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), o estabelecimento oferece cerca de 800 refeições diárias e calcula-se que o valor real do almoço esteja hoje em torno dos R$4,00. “Não é um restaurante comercial, é um restaurante de baixo custo para atender a população nutricionalmente vulnerável”, comenta Vanessa. Os alimentos são adquiridos de agricultores familiares da região com verba do Ministério. Os R$1,25 das refeições são transferidos para a Organização Não Governamental Ação Cidadania RS que, em parceria com a prefeitura municipal, administra o restaurante. A ONG, então, utiliza a verba para o pagamento dos funcionários, os quais compreendem o pessoal que trabalha na cozinha, estocagem, limpeza e administração.
O fornecimento dos alimentos geralmente chega em dois dias da semana. Em um, costuma chegar a carne e, em outro, os legumes, hortaliças, frutas, arroz e feijão. Em determinadas épocas do ano, devido à especificidade do clima da região, determinados itens tornam-se escassos. No dia 19 de março, devido à seca, a salada não pode ser servida. Em situações especiais, o cardápio varia bastante. Na semana passada, devido a uma apreensão de carga ilegal que vinha de Rio Grande, frequentadores puderam degustar uma lasanha de camarão. “Foi muito bom porque havia gente ali que nunca tinha comido camarão”, comenta a nutricionista. Mas, rotineiramente, o cardápio segue a seguinte formação: arroz, feijão e salada sempre, uma guarnição (polenta, massa ou batata, geralmente) e um tipo de carne. O óleo e o sal são controlados, pois o foco das refeições é a nutrição balanceada.
Quem experimenta a comida no Restaurante Popular geralmente a aprova. Porém, a restrição ao acesso de moradores das regiões mais pobres de Santa Maria tornou a meta de ter como público alvo aqueles que carecem de alimentação satisfatória inviável. A falta de divulgação dos serviços do restaurante, que hoje é realizada praticamente só no boca-a-boca, também faz com que alguns moradores de rua e selecionadores de lixo tenham que se contentar com as sacolinhas de alimentos pendurados nos contêineres. Mas, dentro dos projetos do MDS, já foram implantadas sete cozinhas comunitárias em outras regiões da cidade. As cozinhas oferecem refeições para públicos específicos, porém em menor quantidade. A da Vila Carolina, na região Norte, por exemplo, serve cerca de 200 almoços por dia para crianças previamente cadastradas. Outra, no bairro KM2, serve 600 refeições por mês para crianças e adultos que trabalhem na cooperativa de recicladores de lixo.
Apesar de um dos pontos mais bonitos do restaurante residir exatamente na diversidade de faixas etárias e níveis socioeconômicos que convivem lado a lado nas mesas do refeitório, os editais do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome são claros quando tocam na questão do público alvo: “(Os Restaurantes Populares) têm por objetivo ampliar a oferta de refeições nutricionalmente adequadas, a preços acessíveis, à população de baixa renda”. Em Santa Maria, é notável a qualidade dos pratos servidos e o profissionalismo da equipe de funcionários, que sempre servem os frequentadores – sejam eles estudantes de cursinhos ou moradores de rua – com sorrisos no rosto e bom humor. Mas o que torna a proposta ainda incompleta não é a qualificação dos profissionais, e sim a disposição geográfica e a pouca divulgação do estabelecimento. A solução, talvez, seja ampliar os serviços das cozinhas comunitárias, as quais se encontram mais salpicadas pela cidade, diluindo, assim, um núcleo do combate à fome da região central para outros núcleos nas regiões mais carentes.
PARA AMPLIAR O ACESSO À ALIMENTAÇÃO, pelo viés de Liana Coll