A FATIA DO IMPOSTO E A FATIA DA DÍVIDA

Algumas reclamações parecem já de praxe: o brasileiro paga muito imposto, o país tem uma das mais altas taxas tributárias do mundo etc. Tanto é assim que começar a tratar do assunto requer paciência. Antes é preciso se desfazer de algumas hegemonias sobre o tema.

A primeira delas trata da máxima de que o país funcionaria melhor, tornaria-se mais “competitivo”, sem tantas taxas. Se, por um lado, a sentença parece infalível, por outro, ela não expressa evidentemente de qual competitividade trata. Se ela trata dos impostos sobre os produtos brasileiros para exportação, a alternativa que parece mais coerente para tal reclamação, é preciso levar em conta alguns pontos. O primeiro é que já há facilidades para a exportação de produtos brasileiros. O ICMS (Imposto sobre operações relativas à Circulação de Mercadorias e Serviços), por exemplo, não é cobrado para as exportações – o que criou, inclusive, diversos desentendimentos entre União e estados para que se decidisse quem arcaria com o “prejuízo” da isenção dada. O IPI (Imposto sobre Produto Industrializado) também é descontado nas exportações brasileiras. Antes que pareça pouco, é preciso levar em conta que o ICMS é considerado o “maior vilão da economia”, segundo pesquisa da Confederação Nacional da Indústria (CNI) com empresários brasileiros. E o IPI sozinho gerou receita de 62 bilhões de reais só em 2011, quase 7% de tudo que o governo arrecadou no ano passado.

Fac-símile do sítio Impostômetro, que mede o tamanho do gasto total com impostos

Outra frase pronta sobre o tema considera que a taxação é alta por conta da corrupção que impera sobre o país, ou por que as contas dos políticos de Brasília são muito caras. Quanto às premissas, não há dúvida: pesquisas internacionais já mostraram diversas vezes que o Brasil sofre de corrupção endêmica, muito superior aos países de mesmo porte; além disso, pesquisas comparativas também mostraram que as despesas com a manutenção do sistema político do país é muito mais alto que em diversos países, tendo custo anual superior a 10 milhões de reais, mais que o dobro do preço de um político italiano e três vezes mais que um político francês, segundo levantamento do sítio Transparência Brasil. Mesmo com custos tão exorbitantes, sozinhos estes dois fatores não podem ser considerados aqueles que decidem o alto custo do imposto no Brasil.

Assim, é preciso lembrar a estrutura tributária brasileira. Este parece ser um dos pontos primordiais da discussão sobre os impostos no país. A taxação é feita, primordialmente, pelo consumo e não pela renda. Esta estrutura gera um fenômeno curioso: no Brasil pode-se dizer que os impostos são pagos, levando em conta a proporcionalidade, pelos mais pobres. Isto porque o imposto sobre consumo não faz diferenciação pela renda da população. No fim das contas, os 10% mais pobres do país deixam 33% dos seus rendimentos em impostos, enquanto os 10% mais ricos deixam 23%, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Ou seja, a questão tributária do país só assim já mostra que tem problemas na forma de arrecadação, que não diferencia ricos e pobres.

Hoje são diversas as iniciativas financiadas por grandes grupos industriais, sindicatos patronais e organizações não-governamentais que, nas palavras destes grupos, buscam “esclarecer” a população sobre os impostos absurdos que paga. Aqui o termo esclarecer, tornar claro, transparente, aplica-se à favor de iniciativas que, em sua maioria, não são assim tão esclarecedores. Isto porque estas iniciativas (Impostômetro, Brasil Eficiente, IBPT, A Sombra do Imposto) limitam-se a mostrar números que comprovam como o brasileiro assalariado paga muitos impostos e como isso é vergonhoso. Mas, a partir disso, fundamentam a tese de que o imposto é muito alto e que isso faz a economia parar, o país não avançar e as pessoas não consumirem tudo que poderiam. Por outro lado, escondem que é a estrutura tributária que é falha e que a solução não é o simples fim dos impostos, mas a reestruturação deste para que a renda seja mais taxada que o consumo. Basicamente, um movimento “esclarecedor” que aliena.

Junto a essa estrutura tributária socialmente desigual, há outro problema, as escolhas feitas para o uso dos impostos. Um dos grandes fatores de descontentamento popular para com os impostos – além da alienação citada acima presente constantemente na “grande mídia” – está na resposta para a pergunta: para onde vão meus impostos?

Orçamento para 2012, sem a Dívida o país teria praticamente o dobro para investir

São, assim, duas faces do mesmo problema: a forma desigual de taxação e a noção de que os impostos não são investidos naquilo que importa. Normalmente, a pergunta “você sabe para onde vão seus impostos?” age apenas como ferramenta retórica, ou seja, a pergunta é feita muitas vezes, mas não é respondida na maioria delas. Isso gera o efeito necessário para que algumas iniciativas, como as citadas acima passem a impressão de que “ninguém” sabe para onde vão os impostos, que o imposto é um buraco sem fundo, o que pode ser, ainda, ilustrado com a ideia de um político na praia ou um temível monstro.

Mas a resposta é simples e pode ser encontrada com facilidade nos sítios do governo, como o Portal da Transparência, em páginas da internet e em vários materiais, como jornais e revistas mais honestas. O orçamento da União mostra para onde vai o dinheiro, e a resposta é desoladora: a União usará 47% do seu orçamento com juros e amortizações da dívida pública brasileira. No ano passado, este pagamento levou das receitas da União mais de 45% do orçamento, equivalente a 650 bilhões de reais. Assim, há evidentemente uma resposta muito simples, mas propositalmente escondida: a grande escotilha que verte dinheiro público se chama Dívida Pública.

Uma série de fatores se junta ao já capengante sistema tributário: não só o dinheiro sai das mãos erradas, como passa pelas mãos do governo apenas em tempo de sua equipe descobrir qual é o seu cheiro para, em seguida, já passar as mãos de investidores, banqueiros e especuladores que aproveitam de uma taxa de juros astronômica para retirar, no fim das contas, o dinheiro do imposto pago pelos mais pobres para construir sua fortuna pessoal.

Mas, se a resposta parece clara, mesmo que pouco entoada, por que não mudar as coisas? Por que não questionar essa dívida que, ao invés de diminuir, só cresce e que leva metade do orçamento do país?

Já surgiram iniciativas que questionaram a dívida. Houve, inclusive, uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre o tema, mas que não passou disso como medida governamental. Antes, houve até inclusão de artigo na Constituição: “No prazo de um ano a contar da promulgação da Constituição, o Congresso Nacional promoverá, através de Comissão mista, exame analítico e pericial dos atos e fatos geradores do endividamento externo brasileiro”. Mas o artigo, nº 26 dos ADCT (Atos das Disposições Constitucionais Transitórias), tinha caráter provisório e, passado o prazo de um ano, perdeu a validade. Parece que só considerar a possibilidade de auditoria da dívida já toca em pontos fracos do governo e dos interesses empresariais. A auditoria feita no Equador, por exemplo, suscitou reclamações na mídia sobre sua “validade”, esquecendo-se que uma auditoria é, primeiramente, uma forma de “validação” das contas de uma empresa ou instituição pública, não uma simples forma de botar alguma conta em dúvida, mas como forma de justificar todas elas. O Globo, por exemplo, não pensa assim.

Charge de Rafael Balbueno, originalmente publicada no site da Seção Sindical dos Docentes da UFSM

Resumidamente, é preciso que o assunto “imposto” saia das hegemonias aqui expostas, que deixe de ser feito de respostas prontas sobre “o empreendedor que não consegue investir por causa do imposto” ou “o brasileiro que sustenta o político corrupto pelo imposto”. Sim, o brasileiro sustenta o político ladrão, mas, além disso, sustenta um sistema tributário invertido e um orçamento torto, que tira das áreas básicas de atuação do governo para pagar uma dívida que não é auditada desde seu crescimento vertiginoso, na época da ditadura militar. É só a partir destas percepções que trataremos do imposto de forma honesta, sem procurar explicar o inexplicável com boa oratória. Da mesma forma, o uso do dinheiro público deve deixar de ser visto simplesmente como “mau uso” para que elevemos o debate, para que haja a percepção que é no orçamento que se decide que a verba para Educação ou Saúde será baixa como está, que se leve em consideração que estas escolhas são muito mais sistêmicas do que partidárias.

É fundamental que o assunto imposto deixe de ser “tabu” para se tornar algo realmente discutível, e essa noção só passa por uma ação cotidiana de enfrentamento da retórica hegemônica.

A FATIA DO IMPOSTO E A FATIA DA DÍVIDA, pelo viés de João Victor Moura

joaovictormoura@revistaovies.com

[+leia também] DESENVOLVIMENTO A QUE PREÇO?, pelo viés de Liana Coll

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