Com a chegada da época de Natal, centenas de artistas, artesãos e comerciantes formais e informais chegam a Santa Maria em busca de um incremento na renda. Vindos de várias cidades, eles aproveitam a época de festividades para vender seus produtos aos moradores da cidade. Não é diferente com os artesãos indígenas. Esta é, senão a melhor, uma das melhores épocas de vendas, o que traz, há décadas, famílias da etnia kaingang à cidade.
Neste ano, esta movimentação teve início nas primeiras horas da manhã de segunda-feira, 21 de novembro. Enquanto o céu acinzentado indicava chuva iminente, famílias kaingang de diversos pontos do estado somavam-se ao acampamento já estabelecido há mais de um ano em um terreno próximo à rodoviária de Santa Maria. Desta vez, vinham também com a intenção de pressionar o poder público, ocupando não mais as margens do terreno, mas sua porção mais central.
UMA HISTÓRIA DE INVISIBILIDADE
A relação dos povos indígenas com a cidade de Santa Maria não se limita à relação utilitária e sazonal das vendas periódicas: existem duas comunidades indígenas, guarani e kaingang, estabelecidas no território do município. Estas comunidades têm suas histórias interligadas à história da cidade – além de terem sido os primeiros habitantes da região, há indícios de que a sua ocupação na região seja constante há séculos, apesar dos processos de colonização e de urbanização.
Apesar da proximidade com a história de Santa Maria, a situação das comunidades indígenas na cidade é extremamente precária ( para saber mais, acesse as matérias produzidas anteriormente pelo Viés: FUGINDO DA INVISIBILIDADE, NEGLIGÊNCIA e ELES NÃO SÃO INVISÍVEIS) e decorre de um descaso público já endêmico. Há anos, as demandas das comunidades kaingang e guarani são sistematicamente ignoradas, o que configura, como afirma Ramiro Fagundes Barcelos, do Grupo de Apoio aos Indígenas (GAPIN), uma situação de invisibilidade social e uma negligência dupla: os povos indígenas são sujeitos de duas categorias de direitos, o direito de cidadão e o direito específico indígena. Assim, além dos direitos humanos básicos que são violados, com a falta de acesso a saneamento e infra-estrutura básicos, são ignorados também os direitos específicos dos povos indígenas, reconhecidos constitucionalmente a partir de 1988.
A exigência destes direitos foi novamente colocada em pauta na I Assembleia Popular Indígena, realizada no dia 12 de maio deste ano. A assembleia contou com a presença de representantes de órgãos municipais, estaduais e federais – entre eles, Ministério Público Federal, Fundação Nacional do Índio (FUNAI), Secretaria de Saúde Indígena (SESAI), Secretaria Estadual de Educação, Polícia Rodoviária Federal e Prefeitura Municipal – além de membros das comunidades guarani e kaingang e do GAPIN.
Diversas demandas foram pautadas na Assembleia, boa parte delas relativa a condições básicas de vida, como saneamento básico, água e energia elétrica. Para que fossem cumpridas, estabeleceu-se responsáveis e prazos, os quais venceram há alguns meses e que praticamente não trouxeram avanços. A implementação da maioria das demandas indígenas depende da demarcação de territórios definitivos para as comunidades e do reconhecimento destes por parte do poder público municipal. Ainda assim, mesmo as questões mais imediatas – que independem desta regularização – permanecem sem resolução: somente o fornecimento de água foi garantido, e em partes: os indígenas do acampamento kaingang não têm acesso à agua encanada, mas a caixas d’água de cinco mil litros, fornecidas pela Prefeitura e abastecidas por caminhões-pipa.
A LUTA PELO BÁSICO
A falta de atenção do poder público, aliada ao maior número de kaingang vindos para a cidade por conta do Natal, justificou a ocupação da porção mais central do terreno localizado atrás da rodoviária de Santa Maria e até então ocupado somente em sua margem. A ocupação começou ainda no alvorecer da segunda-feira, por volta das seis horas da manhã, com a chegada dos kaingang vindos de três comunidades: Iraí, Guarita e Serrinha. Andando por uma trilha, foi possível chegar a uma área descampada e plana, ideal para um acampamento ainda improvisado, bem diferente da área ocupada antes na margem do terreno, à beira de um declive.
Augusto Opã da Silva, do CAIK, Conselho de Articulação Indígena Kaingang, explica os motivos da ocupação: “Este movimento que está acontecendo é para pressionar os órgãos oficiais, como a FUNAI, o CEPI [Conselho Estadual dos Povos Indígenas], a prefeitura, a SESAI. Nossas reivindicações são que a FUNAI, o estado e a prefeitura juntos comprem um terreno de cinco, seis hectares para as famílias que sempre vêm para cá, para podermos fazer nossas habitações, com saneamento básico mais adequado.” E complementa: “O movimento é para eles cumprirem com as suas promessas, já que tudo foi colocado no papel, mas nada até agora foi cumprido”.
O movimento indígena não é, assim, para ocupação daquela área, mas uma forma de, mais uma vez, mostrar que os indígenas não são invisíveis, que precisam da assistência governamental prevista em lei para que mantenham condições básicas de vida. Natanael Claudino, cacique kaingang e liderança do movimento indígena de Santa Maria, explica os pontos básicos reivindicados pelo movimento: “Nossa ideia é ganhar um terreno, que seja do município ou do estado, colocar de quatro a cinco casas, onde essas famílias ficariam de maneira permanente, construir uma sala, um colégio, um posto de saúde e uma casa de cultura indígena kaingang, que seria uma casa de passagem”.
A ideia dos indígenas e do GAPIN (Grupo de Apoio aos Povos Indígenas) é mostrar que os indígenas precisam de um terreno próprio. O poder público local já colocou em questão várias vezes as origens dos kaingang. Para eles, os kaingang não eram moradores locais antes da colonização como os guarani, e, portanto, não caberia ao município cuidar deles. No entanto, a presença kaingang nas proximidades do terreno agora ocupado já passa dos quarenta anos, segundo Augusto: “Faz mais de 40 anos que o pessoal vem pra cá, aqui em volta deste terreno”. Ramiro, do GAPIN, complementa a ideia: “Eles vêm no Natal, na Páscoa, na Romaria [da Medianeira]. Se for fazer o cálculo, dá em média quatro meses [por ano]. Quer dizer, já não é tão sazonal assim”.
Até o ano retrasado, os kaingang passavam alguns meses na cidade, muitos às margens do mesmo terreno ao lado da Rodoviária, mas foi no ano passado que alguns indígenas estabeleceram-se ali, buscando melhorias nas condições para os kaingang de passagem pela cidade. Mas nas últimas vezes em que os kaingang chegavam à cidade, organizavam-se na pequena área próxima à junção das ruas Pedro Santini e João Batista da Cruz Jobim. A porção abaixo do declive também era usada e estava sempre sujeita a alagamentos. Este também é um dos motivos da ocupação, a falta de estrutura do acampamento já montado.
Além disso, como destaca Ramiro, o suposto caráter transitório da presença indígena em Santa Maria é cada vez mais questionável. A Universidade Federal de Santa Maria oferece dez vagas em cursos de graduação via Sistema Cidadão Presente D, específico para candidatos de origem indígena. Segundo Augusto, que esteve envolvido na mobilização de comunidades indígenas para que participassem do processo seletivo, em 2011 a categoria contou com 85 inscritos e a tendência é que o número aumente a cada ano. Por isso, a estrutura de acolhimento dos indígenas no município precisa assumir caráter permanente.
O início da manhã foi tranquilo na ocupação. As únicas movimentações eram as da construção das barracas e da conversa à beira da fogueira, e a grande presença de crianças e mulheres dava um caráter familiar ao novo acampamento.
No final da manhã, entretanto, um homem que se identificava como arrendatário do terreno ocupado apareceu com o intuito de intimidar indígenas e apoiadores. O homem fez ameaças diretas de agressão física aos membros do GAPIN e prometeu colocar fogo nas barracas levantadas pelo acampamento. O que deixou claro que, embora a ocupação decorra do esgotamento da possibilidade de diálogo com o poder público, os problemas dos indígenas não dizem respeito apenas à relação com os representantes públicos.
Esta não é a primeira vez que a situação chega a um estado crítico. Conforme o relato de Matias Rempel, integrante do GAPIN, no mês de outubro mais pessoas foram ameaçadas, inclusive, de morte. Na ocasião, foram feitas denúncias ao Ministério Público Federal e à Polícia Federal, órgãos aos quais compete a garantia dos direitos e da segurança dos indígenas.
Segundo Matias, pessoalmente alvo de ameaças na manhã da ocupação, o homem que se apresenta como arrendatário e defensor da área teria sido contratado pelos proprietários do terreno para fazer a segurança da área. O integrante do GAPIN afirma que esta relação foi confirmada pelo representante dos proprietários do local em reunião com a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), após a ocorrência das primeiras ameaças.
Outro problema primário do local é o acúmulo de lixo, consequência da negligência recorrente por parte da prefeitura. Em setembro, indígenas, estudantes e GAPIN iniciaram os mutirões de recolhimento do lixo que vinha se acumulando há anos nas cercanias do acampamento. Na mesma ocasião, contataram a Secretaria Municipal de Proteção ao Meio Ambiente, que se responsabilizou pela retirada do lixo em, no máximo, dois dias – o que não aconteceu. Os mutirões seguiram, e as dezenas de sacolas de lixo reunidas só foram recolhidas em meados de novembro.
O líder do acampamento kaingang Natanael Claudino sintetiza as reivindicações do movimento, apontando para o acúmulo histórico de necessidades básicas não atendidas: “Tem muitas coisas, né: água, luz, saneamento básico, casas emergenciais. Não era para o kaingang estar debaixo da lona preta. Resolvemos fazer este movimento para que as pessoas que se comprometeram em estruturar melhor o nosso acampamento cumpram as promessas”.
Natanael também considera que a tendência do movimento, com o passar dos dias, é crescer, em função da própria época do ano. “À medida que chegam pessoas, nosso movimento vai crescendo, ganhando forças, e com isso, temos mais forças para pressionar os órgãos públicos”. Perguntado sobre qual a razão para tanta demora na garantia dos direitos do povo indígena no município, Natanael avalia: “Muitas pessoas falam só por falar, mesmo. Não falam de boa vontade. Se fosse assim, não estaríamos nessa situação aqui”.
“ESTAMOS CHEIOS DE PROMESSAS”, pelo viés de João Victor Moura e Tiago Miotto
joavictormoura@revistaovies.com
tiagomiotto@revistaovies.com
Uma luta legitima para quem não teve oportunidade da legalidade representar o seu direito!
Uma luta sem o mínimo fundamento. Vão esperar morrer um atropelado para tomarem alguma atitude.
Parabens companheiros, excelente reportagem. É um exemplo de jornalismo comprometido e que nao se esforça em esconder que tem lado ( e lado certo hehe)!