O Senhor tem muitos filhos, muitos filhos ele tem. Eu sou um deles, você também… Lafond, aquela bicha desengonçada, não foi computada na lista do Senhor.
“EEEEEEPA! EEEEEPA! BICHA NÃO, VEJA LÁ COMO FALA, SUA SIRIGAITA. EU SOU UMA QUASE VIIIRRRGEM MARIA AFRICANA”.
Um bom número de brasileiros na casa dos vinte ou mais anos deve saber, neste momento, quem foi o grande intérprete de um dos jargões mais históricos da TV brasileira. As noites de sábado, agora melancólicas, eram noites de riso para alguns, hora de dormir para outros. E mesmo que a personagem estourasse purpurina na arena de uma praça de cenário modesto, a malícia transpassava espontaneamente, e os sorrisos dos adultos e das crianças frente àquele negro de dois metros de altura cometendo algazarra demonstravam a naturalidade de uma “quase Adriane Galisteu” em tempos que ser homossexual era motivo de chacota legalizada e repetida. Muitos assuntos e muitos quadros que existiam na televisão brasileira há alguns anos, sem saudosismos, tinham uma liberdade maior de expressão, mesmo que as ofensas fossem corriqueiras e os deboches escrachados. Todo e qualquer ser humano é uma caricatura. Nem sempre brincar com a realidade é insulto. O insulto, atualmente, vem travestido no horário das oito ou na capa da Veja: são personagens criados para ensinar o “politicamente correto” às pessoas, mesmo que o preconceito permaneça instalado nos discursos do padre, do pastor, da apresentadora de televisão ignorante que supõe na “zoologização” a maneira mais apropriada de abrir os olhares de uma sociedade em partes inerte e intelectualmente decadente.
Existia um encanto naquele personagem gigante, de voz grossa, corpanzil de atleta e muita ginga no salto 15. Jorge Lafond fazia a família inteira assistir àquele quadro sem perceber ou chocar-se com a forma estereotipada do homossexual barraqueiro de praça televisionado aos sábados à noite. Vera Verão era mais do que apenas uma deusa negra no palco que deixava qualquer mulher esbelta com fúria, tamanha era a ironia que Lafond retratava a vida, devido ao que conhecera fora dos palcos. Ninguém sambava com a silhueta de uma gringa perdida no sambódromo como Jorge Lafond. Contudo, nos carnavais da vida real, Lafond era destaque da Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense, do Rio de Janeiro. Além de ser um grande ator formado pela Uni-Rio, Lafond era um renomado bailarino, tendo estudado balé clássico e dança afro.
Nascido no Rio de Janeiro que iniciava seus encontros casuais entre artistas da época no que viria a ser chamado posteriormente de Bossa Nova, em 1953, o ator acabou freqüentando os cabarés mais famosos do período, abrindo os shows da meia-noite na boate Flórida, da Boate Escandinávia, da Boate Barbarela e, geralmente, terminava a noite na boate Kiss, às 5h da manhã. Viajou por todo continente europeu como bailarino e, anteriormente, já havia trabalhado como mecânico. Com a fama, fora convidado a estrelar o balé do Fantástico, da Rede Globo, passando posteriormente ao programa Viva o Gordo, apresentado por Jô Soares. Mas, acima de tudo, Lafond tornou-se um comediante memorável para a história do gênero humorístico brasileiro e deixou inegáveis maneiras de fazer rir através da exacerbação dos trejeitos.
Foi numa tarde, durante a apresentação do Programa do Gugu, naquela época ainda apresentado aos domingos pelo canal de Sílvio Santos, que Lafond recebeu uma ofensa pessoal que o pôs cabisbaixo a pensar e mudou, pelo resquício de seus dias, sua beleza de existir. Lafond aguardava o programa começar, fazendo parte de um jogo entre mulheres contra homens. Quem estava no palco era Vera Verão, e não Lafond, mesmo que o ator também fosse homossexual, o que não justifica o acontecido. Eis que a próxima “atração” do programa seria o padre/Professor de Educação Física/Cantor/artista de cinema/showman Marcelo Rossi, que na época fazia estrondoso sucesso com músicas para adorar a Deus e os bichinhos da arca de Noé. Rossi, como um bom filho do Senhor, avisou à produção: “se Lafond seguir no palco, eu não entro”. Uma esperada reação de quem se diz um servo de Deus, difusor de (S)sua palavra e irmão de todos os filhos do Reino. Rossi não queria o irmão gay no palco junto a ele.
A produção, acanhada, chamou Lafond para um canto e explicou o acontecido. O ator, muito abatido, deixou o palco do programa amargamente e foi para o camarim. Arrasado, naquele 10 de novembro de 2002, Jorge Lafond fora retirado do palco de um programa a pedido de Marcelo Rossi. O padre nunca falou sobre o assunto. Eis que Marcelo Rossi cantou “seus animaizinhos” e retirou-se da atração para rezar a missa do domingo aos bons filhos do Criador. A produção do Gugu foi a Lafond pedir que retornasse ao palco, mas já era tarde demais. Constrangido e entristecido com o preconceito sofrido, tanto pelo religioso quanto pelos produtores do programa, Jorge foi embora. Sete dias depois o ator que deu vida a um dos personagens mais inesquecíveis das telas dava entrada num hospital em estado grave conseqüente de problemas cardíacos. Nos dias anteriores à internação, o homem grande e talentoso andara pela casa humilhado. “Foi uma crise hipertensiva”, diagnosticaram os médicos. No dia 28 do mês seguinte, após sua saúde desmanchar-se aos poucos, uma crise renal e seus problemas hipertensivos o levaram à morte. Jorge Lafond subiu a montanha de dois em dois, junto ao elefante e os passarinhos do Senhor. São Pedro deve ter tido muitos problemas para eleger em qual porta colocar aquele filho desgarrado do rebanho indolente. Hoje Lafond comanda o coro de Noé e pinta todas as tardes as nuvens de rosa.
Falecido aos 50 anos, em 11 de janeiro de 2003, Lafond, mesmo morto, fez o Rio de Janeiro ferver. A Polícia Militar teve que ser acionada para conter a multidão de mais de cinco mil pessoas que corriam e acompanhavam como podiam o carro que transladava seu corpo até o cemitério do Irajá, Zona Norte do Rio, no mesmo bairro onde o menino pobre nascera.
LATINOS: VEJA LÁ COMO FALA, SUA SIRIGAITA!, pelo viés de Bibiano Girard
Que maravilha de texto, Bibiano! Tanto em forma quanto em conteúdo. Continue assim.
Um abraço.
D
Realmente muito bom o texto, me fez relembrar.
Buenísimo, principalmente os parágrafos finais. Foram sábados bons. Os futeboleiros e viúvos (?) da personagem ainda abrem um sorriso quando enxergam o sistema defensivo do Paraguai, com Vera e Verón. Voltando a falar sério, parabéns pelo texto.
Simplesmente divino, adorei este seu blog, principalmente relato sob Jorge Lafond, realmente este Pe. Marcelo é um martelo na realidade religiosa..é de doer! Vc foi fantástico…abraços