Na minha segunda semana em Nottingham, em fevereiro deste ano, resolvi finalmente ir ao supermercado para começar a preparar minha própria comida. Um colega de apartamento me passou as coordenadas e cheguei ao Tesco mais próximo, a terceira maior rede de supermercados do mundo (atrás do Wal-Mart e do Carrefour). Como era de se esperar, encontrei os preços mais baixos, as melhores promoções e também um complexo gigante, de dois andares e de uma quadra de comprimento, de onde se podia montar uma casa inteira. Foi lá, também, que tive minha primeira dor de cabeça ao ter que lidar com infindáveis marcas do mesmo produto. Vagando de corredor em corredor, fui lentamente enchendo meu carrinho não só com aquilo de que precisava, mas com todo o resto.
Placas me indicavam o que eu poderia encontrar naqueles corredores. Havia um deles, no entanto, que muito me chamou a atenção: chamava-se ‘world food’ (algo como ‘comida-mundo’). Havia lá temperos e ingredientes para pratos feitos por todo o mundo. A primeira associação que fiz foi à expressão ‘world music’ (‘música-mundo) e a como ela simplesmente conota a música que não está no grande circuito estadunidense. Em outros supermercados, aprenderia, o nome poderia mudar: ‘world food’ ou ‘ethnic food’ (comida étnica). Àquela primeira placa, franzi e ri, pois, no mesmo supermercado, já tinha passado por açúcar, vegetais e café, produtos que, muito dificilmente, crescem bem – se é que crescem – no Reino Unido, mas que, mesmo assim, estavam dispostos em outros corredores.
Como Ben Highmore vê o trabalho do sociólogo e filósofo francês Henri Lefebvre, esse foi o meu momento de crítica imanente, pois ele foi “de vívido nojo, de choque, de prazer” (Highmore, 2002). Para Lefebvre, há “momentos de intensa experiência na vida cotidiana” (idem) que, de alguma maneira, impressionam-nos e nos levam a analisá-los em profundidade e em contexto.
Ao comutar entre Paris e os Pirineus Franceses durante a maior parte do século XX, Lefebvre podia também comutar “entre o rural e o urbano” (Highmore, 2002) e, assim, experienciou as transformações causadas pela modernidade capitalista. O que o mais impressionou, entretanto, foram as aparentemente pequenas mudanças na vida cotidiana que seguiram a modernidade, como Highmore ressalta: “os bens, o mercado, o dinheiro, com sua lógica implacável, capturam o cotidiano. O capitalismo se estende até os menores detalhes[…]” (Lefebvre, 1988, citado em Highmore, 2002).
Dessa forma, para Lefebvre, encontramos na vie quotidienne momentos que funcionam como marcos do estado maior das coisas, isto é, da modernidade capitalista. Como ele argumenta: “a vida cotidiana está profundamente relacionada a todas as atividades e as contém com todas suas diferenças e seus conflitos; o cotidiano é seu ponto de encontro, sua liga, seu campo comum” (Lefebvre, 1958, citado em Highmore, 2002).
Aquele pequeno momento que eu tive no supermercado me fez pensar se as outras pessoas, que lá vão com frequência, sequer notam o que o nome daquele corredor pode significar. A partir daquele dia, foi bastante intrigante ver como os supermercados britânicos se organizam e notar, dali, a relação que tal organização tem com a maneira que as coisas e as pessoas britânicas devem ser.
Kiwis e abacaxis, por exemplo, nunca cresceriam no Reino Unido, mas estão dispostos com todos os outros produtos. Os britânicos são grande consumidores de frutas, logo elas são postas nos corredores de ‘comida local’. Com base em que se criam estas categorias de ‘comida-mundo’ e ‘comida local’? E se um britânico de origem indiana estivesse a comprar um tempero que sua família sempre usou no dia-a-dia? Ele é um cidadão britânico de origem estrangeira, como grande parte da população do Reino Unido, mas o que aquele corredor lhe diz? “Lembre-se de que tu não és um britânico de verdade”! Enquanto isso, os kiwis e os abacaxis que todo ‘britânico de verdade’ consome vêm do exterior.
O alimento que cresce em outros lugares é tratado como mais britânico do que a maioria dos ingredientes no corredor de ‘comida-mundo’, mesmo que eles sejam produzidos localmente. Isso se dá pelas trocas comerciais globais cujo:
[…]entrelaçamento dos simulacros na vida cotidiana traz mundos diferentes (de bens) para o mesmo espaço e tempo. Mas isso é feito de uma maneira que esconda, quase perfeitamente, traços da origem, dos processos de trabalhos que os originaram ou das relações sociais implicadas na sua produção. (Murphet, 2004).
Alimentos de todo o mundo são trazidos ao Reino Unido, mas não todos são etiquetados ‘comida-mundo’. Não se trata, portanto, de onde o alimento vem, mas de como ele se relaciona com o aspecto de normalidade daquilo que os locais consomem.
REFERÊNCIAS
HIGHMORE, Ben. Everyday life and cultural theory. Londres: Routledge, 2002.
MURPHET, J. Postmodernism and space in: CONNOR, Steven. The Cambridge companion to postmodernism. Cambridge: Cambridge University Press, 2004, pp. 116-135.
TU NÃO ÉS BRITÂNICO DE VERDADE, pelo viés de Gianlluca Simi
gianllucasimi@revistaovies.com
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[Este ensaio foi apresentado à cadeira de ‘Cultures of everyday life’ na Universidade de Nottingham em março deste ano.]