INDÍGENAS: ELES NÃO SÃO INVISÍVEIS

Indígenas discursam no Dia da Visibilidade. Foto: Ivon Fernandes Nunes

“Eu sou natural de Tenente Portela, mas sempre que a gente tem oportunidade, passa por Santa Maria para comercializar nossos produtos. Temos pessoas acampadas perto da rodoviária, temos guaranis também aqui. Nós fazemos amizade com qualquer pessoa, e muitas pessoas de Santa Maria olharam a gente com bons olhos e nos acolheram para dentro dos lares. Assim, sempre que a gente passa por aqui essas famílias deixam a gente ficar hospedados numa faixa de suas casas. São pessoas muito boas. Não é qualquer pessoa que acolhe a gente assim”.

Com essas palavras, a manhã da terça-feira, 12 de julho, dava as caras em Santa Maria. Ao microfone, permanecia falante uma senhora indígena com os traços fortes que identificam seu povo. Discorria para um pequeno grupo de pessoas que, ou estava ali junto à manifestação, ou passava, sentia a estranheza do episódio e parava por alguns minutos para entender o que acontecia.

A praça principal da cidade estava adornada diferentemente do cotidiano. De mais diverso, painéis com fotografias realizadas nas comunidades indígenas locais. Havia também faixas sobre o viaduto Evandro Behr, junto ao calçadão, apresentando aos desconhecidos o motivo da aglomeração popular naquela manhã: os indígenas pediam para sair da invisibilidade.

Foto: Ivon Fernandes Nunes

Assim, com o ajuda principal do Grupo de Apoio aos Povos Indígenas (GAPIN) e apoio geral de vários movimentos de lutas sociais, sindicatos, partidos políticos, Universidade Federal de Santa Maria, entre outros, a manhã no Centro tornava-se um dia especial. Além de permanecerem sentados pelas redondezas vendendo seu principal trabalho, o artesanato, como cotidianamente, os indígenas estavam munidos de microfone, faixas, cartazes, folders e vontade de falar sobre seus problemas. Falar para uma sociedade que em grande número permanecia cega, indiferente, enganada. Os índios estão em Santa Maria há muitos anos, e exigem respeito. Respeito significa dignidade. Dignidade representa infraestrutura, com condições básicas de vida, como água potável. Dignidade representa também direito à moradia e espaço permanente de vida, como terras demarcadas legalmente.

Todas essas reivindicações e mais outras, apresentadas em uma cartilha distribuída por membros apoiadores da manifestação, haviam sido discutidas há dois meses em assembleia entre indígenas, poder público e sociedade em geral. Prazos foram estabelecidos para que a prefeitura e os outros encarregados pelas mudanças necessárias cumprissem o que prometeram. Infelizmente, as melhorias na condição de vida dos Guaranis e Kaingangs não mudaram desde a reunião. Nada foi feito. O atendimento de saúde não chegou, a equipe de Saúde Indígena não foi criada, a garantia do espaço de comercialização não foi legalizada pela prefeitura, e muito menos as condições de vida cotidiana tiveram algum avanço: “Santa Maria, 153 anos de descaso, 30 anos de lona preta”, estava escrito em uma faixa. Lona preta é literalmente o material usado na “construção” das moradias improvisadas enquanto o poder público não resolve.

“Mas também não é digno tirar os índios debaixo das lonas e colocar naquelas casas-conteineres. É uma vergonha atrás da outra. Isso não pode acontecer”, disse uma senhora que passava rapidamente pelo local. “Eu entendo que eles têm uma cultura diferente. E a cultura deles, por isso mesmo, deve ser muito bem guardada”, respondeu a acompanhante da primeira. “Não podemos disputar espaço, temos que aprender a viver juntos, mas todos com dignidade, o que não acontece com muitos, não apenas índios”, disse um senhor que admirava as fotografias expostas.

Após uma pausa para o almoço, os transeuntes foram aumentando, a população começou a ter interesse sobre o assunto e mais pessoas permaneciam ouvindo as pautas dos indígenas e dos grupos apoiadores que entravam ao vivo na Rádio Índio, improvisada para o ato, com microfones e caixas de som.

Movimento Levante Popular da Juventude deram o tom do ato com seus tambores. Foto: Ivon Fernandes Nunes

Além da chegada dos tambores e dos integrantes do Movimento Levante Popular da Juventude, os quais fizeram a praça ganhar ares de protesto da sociedade em geral, a população pareceu concentrar-se naquilo que era dito ao microfone. Uma senhora passava com uma sacola de compras, serenamente levantou a cabeça, ouviu o que o índio Cesário falava e juntou-se à roda que se formava. Somavam-se mais de 150 pessoas, além das que cruzaram o local e permaneceram por alguns minutos.

A tarde teve ainda uma apresentação das integrantes do Coletivo de Resistência Artística Periférica (CO-RAP), Flavinha Manda Rima e Gabriela Painnes da Silva, a Gabit Box, que improvisaram uma letra e deixaram o convite para o próximo Guerrilha da Paz: “dentro do Guerrilha tem uma oficina que é para os educadores sobre diferenças étnico-raciais. Este ano a gente quer transformar a oficina também num espaço de debate sobre a questão indígena. É bom lembrar também a Lei 11.645, que trata da obrigatoriedade do estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena nas escolas. Mas como é que o professor, o educador, vai conseguir passar por cima de 500 anos de outra história? Como é que ele vai repassar para seus alunos que a polenta é indígena? Como vamos explicar que o chimarrão e o tererê são indígenas se nós não recebemos instrumentos para isso? A oficina do Guerrilha é importante? Claro. Mas mais importante é a gente educar o nosso olhar, porque somos todos brasileiros”, disse Flavinha Manda Rima, que é MC, estudante de Pedagogia na UFSM e articuladora do movimento Hip Hop de Santa Maria.

Outra bela manifestação de apoio às manifestações da tarde ocorreu quando uma senhora que, ao pedir uma música de um CD que ela mesma levara, abriu uma grande bandeira Whipala, bandeira relativa aos povos andinos, lutadores também por espaço na sociedade, e cantou e dançou emocionada o refrão que falava sobre hermanos.

Senhora segura a Whipala enquanto canta música andina. Foto: Ivon Fernandes Nunes

O ato ia ganhando voz e tamanho. O público crescia e os líderes indígenas Kaingangs e Guaranis também foram à Rádio Índio para falar a realidade que as autoridades não assumem.

“Faz 500 anos que somos oprimidos. Seja o italiano, seja o alemão, seja o polonês, o negro, o indígena. O que está faltando é respeito com as diferenças de cultura que existem nesse país. Não só a cultura indígena, mas sim todos que nasceram aqui têm uma história. Hoje, o que nós queremos é respeito entre as organizações. Nós queremos a ajuda da população para pressionarmos os governos para mantermos nossa cultura viva. É muito tempo de opressão. Com muita luta, atualmente, nós conseguimos entrar na universidade”, disse um dos líderes presentes. “Hoje nós podemos formar médicos. Mas nós não queremos formar um doutor e só. Ele vai se formar, mas vai permanecer dentro da nossa cultura, pois a nossa cultura vai além”.

O Dia da Visibilidade Indígena foi de muitos discursos, aplausos, bate-lata, mas, principalmente, serviu para a sociedade santa-mariense abrir seus olhos e notar as causas dos indígenas locais. Muitas pessoas paravam para questionar o porquê da situação, o que estava acontecendo com os indígenas, querendo saber onde residiam e como viviam. A resposta dos manifestantes era um baque para quem ouvia. Marcelino Martins, pajé da comunidade guarani e do Conselho de Articulação Guarani e Karaí (líder religioso) em Santa Maria, explicou para muitos que a luta indígena é por um espaço mínimo de terra, onde tenham luz, água e escola para suas crianças, o que mesmo depois de 30 anos ainda não existe.

Com a aproximação do final do ato na praça, os manifestantes, desde os próprios índios até representantes das entidades apoiadoras e estudantes locais, desceram a Rua Venâncio Aires em direção à prefeitura municipal com o propósito de entregar um documento com as pautas dos Guaranis e dos Kaingangs, as quais foram estabelecidas em maio, mas que não foram cumpridas principalmente pela prefeitura.

Manifestantes em direção à Prefeitura. Foto: Ivon Fernandes Nunes

O prefeito Cezar Schirmer não estava. Após minutos de espera do lado de fora do prédio, sob uma garoa fina que começava a cair, a chefe de Gabinete Magali Marques da Rocha veio ao encontro dos líderes indígenas como representante do poder municipal.

“Estamos aqui, D. Magali, entregando um documento com as solicitações e reivindicações de mais de trinta anos. No dia 12 de maio desse ano foi feita uma assembleia indígena onde a prefeitura e os poderes sociais ficaram responsáveis em nos ajudar com essas providências. São demandas como melhorias no acampamento, melhorias no saneamento básico, na saúde. Em primeiro lugar, D. Magali, saúde significa saneamento básico nos acampamentos. É um direito nosso. Eu gostaria que a senhora falasse alguma coisa para o nosso povo, porque vocês não deram resposta, não resolveram nada. Não praticaram nosso pedido. Esse é um documento que saiu agora com esse movimento, porque mais uma vez tivemos que fazer documentos. No dia 12 de maio a prefeitura e os órgãos públicos ficaram responsáveis, mas não fomos atendidos. Estava presente o Odilo Ravanelo, representando a prefeitura de Santa Maria, e ficou decidido que as providências seriam tomadas”, disse Augusto [coordenador do Conselho de Articulação Indígena Kaingang].

“Lembrando que esse documento de hoje é só um lembrete do que ficou decidido na assembleia de maio. A prefeitura prometeu um diálogo com o estado e com o governo federal, mas nada aconteceu. A gente também alertou a questão do frio. Todo mundo está passando esse frio horrível que está aí, e o frio já fez vítimas no acampamento do Arenal. Isso é muito ruim. Esse acontecimento é sim conseqüência da omissão dos órgãos, principalmente da prefeitura. Que isso fique registrado: é uma vida. Não tem preço. E o que se quer que se faça agora é o que ainda não se fez em trinta anos”, disse Matias Rempel, membro do GAPIN.

“Estou recebendo esse documento e farei a entrega ao prefeito quando ele retornar. Até porque ele [prefeito Cezar Schirmer] não sabia que vocês viriam hoje aqui. Então ele não tinha uma programação de esperá-los. O Odilo Ravanelo, que é o encarregado e interlocutor pelo município para conversar sobre essas questões tem mantido um diálogo com vocês, pois ele sempre passa para nós o que vocês pedem, faz o acompanhamento dos problemas indígenas que vem acontecendo”.

As lideranças presentes e os integrantes do GAPIN discordaram veementemente. “Ninguém da prefeitura veio falar com a gente, nós não sabemos de nada. O Ravanelo não conversou com ninguém”, afirmou Matias.  Magali da Rocha mostrou-se surpresa. “Se não está satisfeito, podemos fazer encaminhamentos ao governo estadual, ao governo federal, porque o município não tem como arcar com tudo isso, até porque os índios não são uma responsabilidade só do município, para isso existem órgãos federais e estaduais”, afirmou a Chefe de Gabinete.

Matias Rempel rebateu: “Porém, eu acho que agora era hora do município, do prefeito, de mudar esse discurso que a gente sempre ouve: ‘não é só nossa responsabilidade’. Eu gostaria de respeito aos ideais os quais assumimos, pois esta [a luta indígena] é nossa responsabilidade. Esse discurso está difícil, sem interrupção. E sem trabalho regrado, pontual, com cronograma de trabalho entre as três esferas [federação, estado, cidade], nada vai acontecer. Pedimos também que dialoguem com as lideranças indígenas, que em toda reunião o pessoal seja ouvido. É isso que eles [indígenas] estão pedindo também”.

“Não estamos aqui pedindo esmola. Estamos solicitando e reivindicando um direito que a gente tem. Que está na lei, está na constituição de 1988. O movimento não vai parar se não nos atenderem”, disse Augusto.

A Chefe de Gabinete tinha poucas declarações a fazer, até por afirmar que sabia pouco sobre as reivindicações de maio, se foram atendidas ou não. Afirmou também que nada sobre a luta indígena tinha chegado até o momento a ela.

Questionada sobre a falta de articulação da prefeitura mesmo depois de passados 60 dias do encontro entre lideranças indígenas e a prefeitura, Magali respondeu que não está na prefeitura para conversar sobre isso. “Eu sou de outro setor. A mim não chegou documento nenhum. A secretária Marta Zanella tem feito uma política quanto a isso [os indígenas]. A gente achava até aqui que o Ravanelo tinha dado apoio, mas se não, nós vamos rever isso. Queremos saber quantas tribos são daqui, quantas não são daqui, que é um questionamento que devemos fazer, como municípios que não estão cumprindo o dever de cuidar dos seus índios. A gente sabe que têm muitas tribos vindo para Santa Maria. Mas muitas vezes as responsabilidades são de outro município, que não assume seus problemas e acabam enviado pra cá”.

“A senhora deveria saber que os índios não são um problema e que eles estão aqui por muito tempo”, disse calmamente Augusto.

“Não. Uns são nossos, outros não”, respondeu Magali.

“Não tem como dizer ‘nossos índios’, temos os direitos de ir e vir. Como é que você vai dizer ‘nossos índios’?”, completou o coordenador do Conselho de Articulação Indígena Kaingang.

A Chefe de Gabinete resolveu não responder, partindo para insultos pessoais contra manifestantes presentes como Matias Rempel. Cruzou a barreira dos seguranças que fechavam a porta e entrou no prédio da prefeitura. Nas mãos, mais uma reclamação popular da sociedade para a prefeitura. Como sempre, os manifestantes têm a mínima expectativa de que o documento seja, pelo menos, conhecido pelos responsáveis do descaso público.

INDÍGENAS: ELES NÃO SÃO INVISÍVEIS, pelo viés de Bibiano Girard

Fotografias: Colaboração de Ivon Fernandes Nunes.

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