Opressão
A opressão está em todos os lugares e em todos os níveis da nossa sociedade e é simplista demais pensá-la apenas como o poder que uma classe social exerce sobre a outra. Ela não se dá apenas no campo político e econômico. A opressão ocorre também nas relações interpessoais e nas instituições mais reconhecidas na sociedade: no casamento, na igreja, na família, na polícia, no trabalho…
Aquele homem que se sente oprimido por sua classe social pode, ao mesmo tempo, ser o opressor de sua mulher, de seu filho, de seu vizinho. Gera-se uma cadeia de opressões, que parece nunca ter fim, visto que a força de um oprimido comumente é voltada contra outro mais fraco que ele, e nunca contra o seu próprio opressor.
Parece haver, nesse ponto, uma falta de reflexão por parte daqueles que são explorados, ou talvez até mesmo de consciência sobre a sua posição de submissão. Sabe-se que um dos campos que mais se mostra propício para se levantar esse tipo de pensamentos é a arte. Porém dentro dela também ocorrem vários tipos de opressão.
O Teatro do Oprimido
Para o teatrólogo brasileiro Augusto Boal (1931 – 2009), uma das maiores relações opressivas da arte está no teatro, justamente no contato, ou na falta de contato, entre o espectador e o ator. “Para mim as palavras oprimido e espectador são quase sinônimas”, escreve ele no livro “Stop: C’est magique” (Editora Civilização Brasileira, 1980). Boal pensava que a separação entre a plateia e o modelo de palco italiano acaba gerando uma falta de diálogo, visto que para que isso aconteça é necessário que os interlocutores troquem ideias, e não que seja um especializado em falar e outro especializado em ouvir.
Boal propôs uma quebra de paradigma, tornando o não-ator protagonista do teatro. Trata-se de tirá-lo de sua zona de conforto, colocando-o no centro da ação e fazendo que entenda o teatro através de suas próprias vivências.
“Tudo aquilo que um homem é capaz de fazer, todos os homens são igualmente capazes. (…) Todas as pessoas podem escrever, até mesmo os escritores. Todas as pessoas podem falar, até mesmo os oradores. Todas as pessoas podem fazer teatro, até mesmo os atores”. Acrescento: todos podem noticiar, até mesmo os jornalistas. Não se trata de sugerir o fim das especializações, mas sim de admitir que há diferença entre vocação e profissão, e quando se trata do uso de uma linguagem, como é a teatral e a jornalística, todos podem utilizá-la,embora existam pessoas que se especializem nela e a utilizem profissionalmente.
Com essa ideia, Augusto Boal cria o conceito de Teatro do Oprimido. Nele, a primeira opressão quebrada é a diferença entre ator/espectador, acabando com o “ritual imobilista” que é assistir a uma peça de teatro. Para isso o espectador deve interagir diretamente com a cena, de forma consciente ou não.
Acabada com essa primeira opressão, parte-se para a quebra das demais relações de poder impostas pela sociedade. O teatro de Boal vem como ferramenta de reflexão sobre as relações inibidoras, castradoras e intransitivas que se institucionalizaram na nossa sociedade. Suas peças estimulam o pensamento sobre as maneiras de autoridade e submissão que se estabelecem entre ricos/pobres, homem/mulher, adultos/jovens, heterossexuais/homossexuais, magros/gordos, governo/população, humanidade/natureza e todos os outros tipos de explorações que podem ser detectadas. Trata-se de estimular o caráter subversivo que há em cada um que sofre algum tipo de opressões. É o teatro que busca ser ferramenta contundente na transformação social.
O Teatro do Oprimido é divido em várias modalidades, sendo uma das mais conhecidas o Teatro Invisível, em que o espectador não se sabe como tal. Para começar ele nem sequer sabe que está assistindo a uma peça!
O Teatro Invisível
Não basta que o espectador apenas pense sobre a opressão, como propunha Brecht. Ele precisa agir! Ele precisa assumir seu papel no mundo, ver a ação e colocar-se dentro dela, adotando o lugar de todas as pessoas de sua própria dimensão. Seria como se a peça de Teatro Invisível fosse um primeiro passo para que o espectador notasse a opressão que sofre, e a partir de um primeiro ato, poder repensar todos os seus demais atos sobre o assunto.
A peça é montada como se fosse uma cena normal. Os atores assumem seus personagens e caracterizam-se como tais. Porém ao invés de apresentar em um palco italiano, vão direto aos lugares em que o fato realmente poderia ocorrer. Se a cena poderia acontecer de verdade em uma parada de ônibus, é para lá que os atores dirigem-se. Assim, todas as pessoas que assistirão àquela cena não se identificarão como espectadores, por não desconfiarem de que o que estão assistindo é uma peça de teatro. São pessoas normais vendo um pedaço da vida de outras pessoas normais, o que dá outra dimensão ao ato, visto que, se sentir necessidade, o “espectador” – termo que parece deixar de se encaixar nessa prática – poderá intervir sem o receio que um palco poderia trazer. O espectador pode tornar-se protagonista, pois não está aprisionado à imobilidade que os rituais teatrais sugerem. Se intervirá na opressão que é de repente tornada visível ou se ficará apenas olhando, é uma escolha própria do espectador, e não imposta. A peça de Teatro Invisível trabalha com limites. Limite entre ficção e realidade e entre pessoa e personagem.
Algumas regras propostas por Boal:
- Os atores não devem intimidar ou praticar qualquer ato de violência contra o espectador, visto que o objetivo é revelar a violência da sociedade, e não duplicá-la
- Os atores devem estar preparados para qualquer tipo de intervenção dos espectadores, porém devem ser capazes de desenvolver a cena completa sem as intervenções, caso os espectadores optem por não participar.
- Deve haver atores curingas, que devem provocar o debate sobre a ação central entre as demais pessoas que estão involuntariamente assistindo.
- Nunca devem ser feitas ações ilegais, visto que o objetivo das peças de Teatro Invisível é colocar em voga a legalidade das opressões existentes.
- “Após uma peça do Teatro Invisível nunca se deve dizer à platéia que se tratava de uma peça de teatro por uma simples razão: não era mais uma peça de teatro – era a realidade, era a verdade, era uma ação concreta que engendra todos os perigos de qualquer outra ação concreta, real e verdadeira.”
Boal cita vários exemplos de peças que realizou ao redor do mundo. Porém não é necessário ir longe para achar repercussões de seu trabalho. Aqui mesmo, em Santa Maria, pelo menos duas vezes já foram realizadas peças utilizando os ensinamentos do teatrólogo brasileiro.
O Aborto e Violência contra a Mulher em Santa Maria
No Restaurante Popular de Santa Maria é o maior do estado, com capacidade de produzir mais de 3000 refeições diárias, ao preço de R$ 1,00 cada. O público é diversificado, formado principalmente por trabalhadores de baixa renda, desempregados, aposentados, moradores de rua e famílias em situação de risco.
Em 2010, um casal vestido de maneira simples, como a maioria das pessoas ali presentes, chegou para almoçar. Pareciam estar exasperados um com o outro, discutindo. Com a chegada de uma conhecida da mulher, o assunto esclareceu-se. O casal brigava porque ela estava grávida e queria fazer um aborto, defendendo o direito que tinha sobre o seu próprio corpo. O homem, por sua vez, aparentemente religioso, dizia não permitir que sua esposa matasse uma vida.
Um murmurinho começou a surgir por todo o restaurante. Escutando a discussão, algumas pessoas começaram a intervir, apresentando pontos de vistas diferentes sobre a questão do aborto. Em pouco tempo grande parte das pessoas que tinham ido ao local apenas para almoçar, estava discutindo o aborto. Não sabiam, porém, que tanto o casal (que se retirou logo após acabar a refeição), quanto sua amiga e mais algumas pessoas espalhadas na multidão, e que incitaram o início da discussão com os demais, tratavam-se de atores.
Daiani Brum, estudante do curso de Artes Cênicas da UFSM, lembra de como foi a experiência: “Eu fazia uma das provocadoras. A gente se dividiu em grupos. Tem o núcleo central e os provocadores. O papel dos provocadores é estabelecer um diálogo no início. É assim: Eu sento na mesa e começo a conversar contigo, criar um clima de amizade, pra te deixar à vontade. Aí tu não vais achar tão estranho quando eu falar alguma coisa para a mesa do aborto. Quando se começa a generalizar o debate, por a pessoa ter sido provocada a isso, ela também vai se sentir à vontade de interagir.”
A atriz, defensora da legalização do aborto, assumiu um papel totalmente diferente do seu: o de uma mulher que tem incorporado os preceitos da moral cristã contrária à prática. Ela lembra que a participação dos espectadores foi bem maior do que a esperada, fazendo com que alguns entrassem calorosamente na discussão.
A peça de Teatro Invisível apresentada no Restaurante Popular não foi a primeira a ser apresentada em Santa Maria. Em 2009 já havia sido realizada uma, também com a participação de Daiani Brum, em um supermercado.
“Essa foi mais forte. A gente tava debatendo a violência contra a mulher. Éramos eu e mais dois meninos, mas foi uma experiência infeliz, porque foi mal planejado. Foi a primeira vez que a gente fez, então foi bem punk. Hoje em dia eu não faria de novo. Foi para aprender. Rolou espancamento, rolou agressão. O objetivo do Teatro Invisível é dialogar, então não tem porque fazer alguma coisa que gere agressão. Foi pura inexperiência mesmo, fazer alguma coisa tão agressiva e não buscar o diálogo. Acho que o mais importante é isso: respeitar as pessoas e buscar interagir com elas. Fazer com que elas se questionem sobre as práticas que acontecem na sociedade.”
A cena consistia em um casal que chegava ao supermercado e começava a discutir, até que chegava ao ponto em que o homem agredia a mulher. Porém o resultado não foi o esperado: além de nenhum dos espectadores esboçar algum tipo de reação ao namorado violento, os guardas do mercado expulsaram o casal com violência. Daiani cortou a cabeça, e o outro ator chegou a levar pontos na sobrancelha. Além disso, os seguranças ameaçaram chamar a polícia.
As duas iniciativas partiram do grupo ao qual Daiani fazia parte, um coletivo de moradores da Casa do Estudante Universitário (CEU) da UFSM. Em vários atos, o grupo montou peças, mas não de Teatro Invisível, que foram apresentadas durante algumas vezes na frente do Restaurante Universitário, na Reitoria da universidade e também no desfile de 7 de setembro, levantando bandeiras como a legalização do aborto e indo contra ações como o aumento do valor das passagens do transporte público e a ideia de um sétimo morador por apartamento, na CEU. Além disso, o grupo ofereceu oficinas livres de teatro para pessoas de fora das Artes Cênicas interessadas. Foi com o tempo que surgiu a ideia de usar a o Teatro Invisível como mais uma maneira de contestação, assim como os fanzines, as batucadas e o material que produzem.
Embora o grupo não exista mais, Daiani – que continuou estudando a poética proposta por Boal para compor seu personagem na peça “Maria Metade” – não nega a possibilidade de realizarem uma outra peça de Teatro Invisível. “Dependendo da necessidade, se surgir uma bandeira de luta, com certeza a gente vai se utilizar da ferramenta do teatro. A gente tem isso como prática.”
Augusto Boal escreve em “Stop! C’est magique!”:
“Quando existe uma opressão, imediatamente se estabelece na vida real a relação ator-espectador, que existe no teatro. Essa relação ator-espectador é encontrada ritualizada em todas as opressões, na escola (professor-ator x aluno-espectador), no Exército (sargento x soldado), na religião (sacerdote x fiel) e até na cama (homem x mulher). Finalmente, insisto: é necessário desenvolver um teatro que ajude todos os espectadores a se transformarem em protagonistas, todos os objetos em sujeitos, todos os mortos em vivos, toda gente passiva em criadora. É necessário desenvolver todas as técnicas possíveis para um Teatro do Oprimido – um teatro para a libertação!
E já não insisto mais: não quero ser opressivo.”
UM TEATRO PARA LIBERTAÇÃO!, pelo viés de Felipe Severo
felipesevero@revistaovies.com
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