A ditadura dentro da casa

Vem. Eu só sei dizer vem. Nem que seja só pra dizer adeus.

No dia 5 de maio de 1971, Inês Etienne Romeu, quadro da chefia da organização de contestação Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares), na qual militava igualmente a presidente Dilma Rousseff, foi presa na cidade de São Paulo. Atrás de Etienne, pelas ruas, vagava o distinto delegado Sérgio Fleury, figura inesquecível e presente com pluralidade em narrativas sobre aqueles anos nebulosos.

Inês fora levada, após passar pelo “Hospital” Central do Exército, para uma casa numa cidade serrana fluminense. O endereço era Rua Artur Barbosa, 668. O proprietário, Mário Lodders. Inês permaneceu nesta casa, na cidade turística de Petrópolis, até 11 de maio. Contudo, sua estadia de 95 dias, aproximadamente, em nada tinha a ver com turismo. Assim como Dilma sofrera em outros espaços militares de “conversa” com combatentes anti-governistas, Inês permanecera nesta casa sendo torturada e estuprada por múltiplos dias. Durante este período, a militante do VAR-Palmares arriscou suicídio duas vezes, sendo mantida viva por médicos contratados pelos militares, a fim de que a tortura, os interrogatórios e as possíveis confissões sobre os fechos do grupo VAR-P prosseguissem. Inês sobreviveu.

Tornou-se banal entre a sociedade civil brasileira, após décadas passadas, os vocábulos “tortura” e “ditadura”. Tudo soa superficial e restrito. Para milhões, até hoje, entre 1964 e 1985, estas décadas permaneceram apenas sob um formato diferente de governo no qual presidentes militares sucediam-se no poder sem eleições. Nos países vizinhos, o formato era o mesmo.

A ausência da democracia prontamente assinala a constituição do que ocorrera, de fato, em casas, apartamentos, hospitais, presídios e locais enigmáticos. A democracia vetada e a censura governista foram movedores evidentes da criação da onda de jovens, principalmente de classe média, moradores de cidades importantes da época, alunos secundaristas ou universitários, contrários aos déspotas e suas ordens atrozes, como martírios, as quais se encaixam impecavelmente como delitos contra os direitos humanos. Até hoje, quem perpetrou os crimes em nome do Estado permanece livre de qualquer responsabilidade a partir da Lei da Anistia, a qual privilegiou militares e pessoas ligadas à ditadura com a liberdade e a “amnésia” judicial sobre os crimes hediondos cometidos através dos aparatos do Estado.

Com as determinações dos governos recentes em consentir o silêncio como exclusiva lembrança, tal assunto, as mortes, as torturas e as cicatrizes escancaradas da ditadura permanecem conservadas no escuro da história. Abreviadas no pensamento social brasileiro como um “espetáculo tenebroso que acabou”, as arbitrariedades por parte dos militares foram sendo esquematicamente apagadas da história. Não alcança-se e nem domina-se racionalmente o que literalmente acontecia n’um pau-de-arara. Atualmente, essas histórias aparecem nos roteiros de dezenas de produções cinematográficas, mas muitos dos personagens da época continuam vivos e não receberam o script do final da história.

Como os arquivos da ditadura permanecem enclausurados no breu das gavetas chaveadas, até hoje vários dos perseguidos por Fleury e por outros membros do Departamento de Ordem Política e Social, o notável DOPS, encontram-se desaparecidos. Na certeza enegrecida da história brasileira, todos mortos. Alguns dos nomes dos militantes submergidos sob a imundice lúgubre do regime militar são: clique aqui e leia.

A tortura como forma de castigo e repressão mortificou não apenas o corpo, mas, sobretudo, a imaginação. Transformou em trapo aqueles que o peso do cacetete e a força do eletrochoque, entre tantas outras barbáries, conheceram bem. Arruinou a decência e inverteu a lógica da ética humana por muito tempo na mente dos oprimidos.  A ditadura aconteceu aqui como agora acontece em muitos países, destacadas pela cobertura midiática após os levantes populares contra as atrocidades e a tirania que o Estado domina pelo meio da força, da censura e do medo, assim como aconteceu no Brasil.

A casa de tortura de Petrópolis foi, entre vários dos porões obscuros, um instrumento de repressão, submergindo vidas jamais esquecidas que optaram batalhar por um país livre e democrático. Entre os milhares de prisioneiros políticos de Castelo Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo, há os que escaparam da lúgubre morte heróica dos tantos outros companheiros, não sem traumas, e muitos com desejos de justiça.

Essa é a história de uma dessas pessoas que, por optar pela luta, acabou pagando um preço muito caro.

Inês Romeu foi torturada covardemente na situação de presa política durante meses enquanto esteve presa na casa de Petrópolis. Nem mesmo a morte lhe foi admissível para fugir das garras da condição degradante a que foi submetida. Sua irmã, Lúcia Romeu, jornalista que acompanhou corajosamente toda a situação limite pela qual a irmã passou, teve motivos mais que jornalísticos para relatar com precisão os fatos.

“A existência da casa clandestina de tortura mantida pelos agentes da repressão na cidade serrana de Petrópolis (RJ), nos anos de chumbo da ditadura militar, era de meu conhecimento desde 1971. Naquele ano, de 8 de maio a 11 de agosto, minha irmã Inês Etienne Romeu lá fora mantida em cárcere privado, sendo barbaramente torturada, seviciada, estuprada e obrigada a me denunciar como subversiva. Eu tinha, portanto, uma motivação sobre-humana para revelar à opinião pública toda a covardia e sordidez que ela sofreu quando a oportunidade se apresentasse.

Foi necessária uma enorme paciência. A denúncia só poderia ser feita depois que Inês saísse da prisão para não colocá-la em risco. Ela cumpriu pena até 29 de agosto de 1979, no Instituto Penal Talavera Bruce, em Bangu, no Rio, saindo por força da Lei da Anistia. Foi a última, dentre todos os presos políticos, a ser libertada. Finalmente, em fevereiro de 1981, passados quase 10 anos dos tormentos vividos na casa de Petrópolis, apareceu a oportunidade. A revista IstoÉ, onde eu fazia free-lance, deu-me plena liberdade para apurar e redigir as matérias que foram publicadas sob os títulos ‘A casa dos horrores’ e ‘A torturada fala com o médico da tortura‘”. Este relato de Lúcia Romeu correu as páginas dos jornais logo após lançar tais reportagens. O médico era Amílcar Lobo.

Médico e psicanalista, Lobo é acusado por Inês de ter participado das torturas que ocorreram na Casa de Petrópolis, durante o período em que ela foi mantida em cárcere.

Em 1981, ainda sob o governo militar de João Figueiredo, alguns jornais cariocas publicaram depoimentos de ex-presos políticos apontando terem sido “atendidos” por Lobo quando detidos no DOI-CODI/RJ. Somente em 1986, já no período da “Nova República”, o caso Lobo voltou às manchetes dos jornais. Psicanalistas e médicos de várias áreas levaram à Assembléia presos torturados por Lobo, nos anos de 70 a 74. A psicanalista Helena Besserman Vianna arriscou a vida ao denunciar o médico.

No ano de 1986, o Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (CREMERJ) – não mais sob intervenção federal – abriu processo ético contra Lobo. Em 1988 e 1989, respectivamente, este Conselho profissional e o Federal cassaram seu registro de médico − fato inédito e pioneiro em países que passaram por recentes ditaduras e que tiveram médicos assessorando torturas a opositores políticos.

“Foi a primeira vez que o Jornal Nacional veiculou uma denúncia da ação clandestina da repressão”, disse o jornalista Antônio Henrique Lago, que durante as pesquisas junto à Lúcia, passou de repórter do Jornal Folha de São Paulo para a TV Globo. Contudo, a TV Globo, já líder de audiência na época, esteve sob a sombra da ditadura, escondida e silenciosa sobre os fatos que ocorreram durante décadas por ter um vínculo obstruso com a ditadura e com os presidentes militares da época.

A Rede Globo de Televisão nasceu a partir de investimentos do grupo estadunidense TIME LIFE, corroborando uma situação criminosa, pois, na época, investimentos internacionais na concepção de meios de comunicação era proibido pela constituição. Desde então, o canal poderia ser enquadrado como ilegal, o que não ocorreu. Eis que, após ser formada uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para que o fato fosse apurado, surge então um projeto de lei por parte dos militares para que o contrato entre a Rede Globo e a empresa TIME LIFE fosse considerado legal. Desde então, a Rede Globo de Comunicação passou a funcionar sem noticiar ou sequer citar os crimes cometidos contra insurgentes do regime militar. Assim, o canal mais assistido do Brasil, com capital estrondoso, foi abrindo filiais pelos quatro cantos do país, e seu discurso omisso sobre o que ocorria dentro do aparato do Estado foi disseminado por longos anos.

Mesmo assim, Lúcia Romeu e Antônio Henrique Lago foram atrás dos fatos sobre a denúncia que até então era de conhecimento apenas dos dois através de relatos escritos pela irmã de Lúcia, Inês.

“”Eu estava arrasada, doente, reduzida a um verme e obedecia como um autômato”, disse Inês em depoimento à OAB logo que o caso começou a ser investigado e difundido pela mídia. Inês fora a única presa política da casa de tortura de Petrópolis a sair viva e sua ótima memória foi a base para o início das averiguações sobre o caso e abertura dos inquéritos sobre os médicos que contribuíram com as atrocidades do regime.

Inês, levada com os olhos vendados para a casa de Petrópolis, guardara na mente coisas que ouvia entre dias esparsos. Um dia ouviu que estava em Petrópolis. No outro, conseguiu identificar o número da casa: 668. Ouviu também que o proprietário da casa se chamava Mário. E assim, as peças do jogo foram sendo encaixadas.

Quando liberta, Inês fez um relato e escreveu tudo o que lembrava. Com isso, a irmã, Lúcia, teve os primeiros recursos para ir atrás dos torturadores e assassinos da casa dos horrores.

“Assim, com a ajuda de nossa irmã Geralda, que a acolheu quando conseguiu sair do cativeiro, Inês redigiu um relatório sobre tudo que acontecera. Esse relatório de 1971 foi a base da apuração feita tantos anos depois. O primeiro passo consistiu em descobrir o endereço do centro clandestino de tortura a partir do número do telefone e do nome do dono do imóvel. Por óbvias razões de segurança – além de irmã de Inês, eu respondera a Inquérito Policial Militar –, fiquei de fora dessa fase inicial. Mas uma pessoa teve um papel fundamental: o jornalista Antônio Henrique Lago, que pesquisou em catálogos antigos de Petrópolis, na Biblioteca Nacional, e encontrou o número guardado por Inês, associado ao nome de Mário Lodders”, falou Lúcia em um longo depoimento que fez relatando como chegaram até a casa e até Lodders.

O jornalista Antônio Henrique Lago, no ímpeto jornalístico, subiu a serra e descobriu que Mário Lodders tinha duas casas na mesma rua. Uma onde morava com a irmã, e outra, a 100 metros, a qual emprestara aos militares para tal função: ser um dos centros de tortura do país.

Lago foi até o local, mentindo estar fazendo uma reportagem sobre turismo e fotografou as casas e seu dono. Logo em seguida, mostrou-as para Inês, que acabou reconhecendo tanto o lugar quanto o homem nas fotografias. Foi aí, então, no dia 3 de fevereiro de 1981, que Inês deu seu depoimento à OAB. A Ordem dos Advogados do Brasil deu total apoio à ex-presidiária e organizou uma caravana, levando junto vários órgãos de imprensa, até como forma de segurança, para o local identificado por Inês.

“Com Inês, fomos em caravana para Petrópolis na manhã de 3 de fevereiro, uma terça-feira. ‘A cena foi dramática.’ Assim descrevi na abertura de meu texto para IstoÉ o encontro de Inês com Mário Lodders. Na frente de todos, Inês o reconhecera e ele acabou admitindo, depois de negar, que a conhecia também. As rádios noticiaram, a Band também, e a matéria foi ao ar à noite no Jornal Nacional, já então líder de audiência”, disse Lúcia neste grande depoimento que concedeu contando todas as entranhas da história.

Contudo, mesmo longe da tortura física há anos, reconhecida como uma das principais vozes de luta pela abertura dos arquivos da ditadura e pelo julgamento de tantos que ainda estão livres, Inês foi vítima, recentemente, de um misterioso acidente.

A ex-guerrilheira estava morando em seu apartamento, na cidade de Niterói, Rio de Janeiro, quando avisou o porteiro que receberia um marceneiro na manhã seguinte. O homem, identificado como magro e aparentando 45 nos, permaneceu dentro do apartamento por 45 minutos.

Na manhã seguinte, a faxineira, Zilda Pereira dos Santos, chegou ao local e apertou a campainha. Após esperar por alguns minutos, Zilda, que tinha uma cópia da chave, adentrou o apartamento e encontrou Inês agonizando entre poças de sangue. A polícia do 77º Distrito registrou que Inês havia sofrido acidente doméstico. Já os médicos que a atenderam na Santa Casa informaram que Inês apresentava sinais de traumatismo craniano por golpes múltiplos diversos.

Aquela mente, capaz de identificar por fotos o local exato onde era torturada, seviciada e estuprada, depois do suposto acidente ocorrido em 2003, até hoje necessita de ajuda médica  por limitações neurológicas.

Inês Etienne Romeu faz parte da história viva brasileira. Condecorada com o prêmio de direitos humanos na categoria “Direito à Memória e à Verdade” pelo então presidente da República Luís Inácio Lula da Silva, Inês é a prova viva da luta humana que muitos idealizaram e atualmente muitos idealizam por dias melhores. Companheiros desapareceram, ficaram na memória, outros permanecem doloridos. Mas a luta de todos fez o Brasil reencontrar um pouco do que se pode chamar de democracia.

A DITADURA DENTRO DA CASA, pelo viés de Bibiano Girard

bibianogirard@revistaovies.com

@bibsgirard

4 comentários em “A ditadura dentro da casa

  1. É triste e vergonhoso saber que estes monstros que torturaram, mataram, calaram a imprensa, continue impune; mais triste é saber que nós brasileiros não temos o direito de saber à não ser por depoimentos como estes, porque o estado esconde a sete chaves seus arquivos deste período negro da nossa história.

  2. minha amada, ines etiene romeu, conheço parte da sua história, desde, 1971, eu concordava com a luta contra a ditadura fascista, porém, naõ tinha preparo psicólogico e apoio para agir. aqui fica minha gratidaõ e respeito a todos aos que a enfrentaram. viva o frei tito de alencar lima, o padre henrique, a madre maurina borges da silveira, ao tenente ayrtom adalberto mortati,a maria auxiliadora lara barcelos, a ana maria nacionavic correa, ao capitão wânio josé de matos,ao tenente walter de souza ribeiro,ao sargento josé miltom barbosa, a ysis dias de oliveira, a paulo césar botelho massa, ao major joaquim pires cerveira, ao tenente da polícia de são paulo,josé maria ferreira araújo,lúcia maria de souza,paulo costa ribeiro bastos, etantos outros.um grande abraço e saudades eternas

  3. Não se luta pela democracia tendo por objetivo instaurar um regime socialista. Lamentamos as mortes e toda violência, mas quem começa a guerra, não pode lamentar a morte.É dura a frase, mas a luta armada foi iniciada pela esquerda. Se temos democracia hoje, é por que não viramos uma grande China. Que os mortos, de ambos os lados, descansem em paz.

    1. Concordo que não se luta pela democracia tendo por objetivo instaurar um regime socialista, o que Inês e seu grupo desejavam no país. Mas quem começou a “guerra” foram aqueles que derrubaram pelas armas um governo legitimamente constituído., o que houve foi uma reação armada a isso.
      E nada justificativa o que sádicos e psicopatas vestindo o uniforme das Forças Armadas fizeram a estas pessoas, não há qualquer desculpa moral para isso.

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