“Duas coisas são verdadeiras sobre o transporte coletivo de Santa Maria. A primeira é que ele sempre foi muito bem avaliado pela população”. É assim que começa o vídeo da ATU (Associação de Transportadores Urbanos de Santa Maria) para divulgar o Sistema Integrado Municipal. E assim segue: “A segunda é que, para continuar assim, ele precisa mudar”.
Quem anda de ônibus em Santa Maria poderá avaliar melhor as condições do transporte: lentidão, poucas linhas, poucos horários, ônibus cheios e com problemas estruturais visíveis. A primeira das premissas divulgadas pela ATU em seu vídeo institucional mostra-se falsa assim que o usuário embarca no ônibus, ou até antes, quando tem que percorrer a distância entre a sua casa e o ponto de ônibus mais próximo.
Já a segunda premissa do vídeo institucional é verdadeira: sim, o ônibus em Santa Maria precisa mudar.
Santa Maria, cidade situada no centro do estado do Rio Grande do Sul, tem algumas peculiaridades: por sediar uma das maiores universidades do sul do Brasil e o segundo maior contingente militar de todo o país, mantém uma grande população flutuante, de estudantes e militares que vêm com prazo para sair da cidade. Outra característica da cidade é sua urbanização: a extensão leste-oeste da região urbana é bem maior que a extensão norte-sul, dando à cidade um desenho de losango com as pontas laterais bem mais distantes que as pontas inferior e superior. Por conta dessa última característica é que se torna primordial um Sistema Integrado de transportes na cidade.
O atual sistema de transportes santa-mariense tem como eixo primordial o centro da cidade e a rodoviária. São de alguns pontos do centro e da rodoviária que sai a maioria das linhas urbanas e é para esses pontos que se dirigem as linhas iniciadas nas regiões periféricas. Essa fórmula faz com que milhares de pessoas tenham que se dirigir ao centro da cidade para depois seguir ao seu destino final. Sendo assim, a integração do transporte seria uma grande economia para os usuários.
A concepção de transporte público
Um conceito fundamental está incutido no termo “transporte público”: o seu dever é prestar um serviço de transporte o mais barato possível e que atenda às necessidades da população, sob a administração pública, que deve zelar por essas obrigações. No entanto, a realidade mostra outra coisa. O serviço deixou de ser administrado em primeira instância pelo poder público, que, como em Santa Maria e em diversas outras cidades brasileiras, passou a tarefa à iniciativa privada. Mesmo assim, é a prefeitura que segue tendo a obrigatoriedade de fiscalizar as empresas em defesa dos interesses públicos, da população.
Dessa forma, é obrigação municipal estabelecer licitações públicas e contratos bem acabados, que, ao menor sinal de irregularidade, possam ser revistos ou revogados. Nada disso é cumprido atualmente pelo poder público.
Já é de conhecimento público, por exemplo, que a planilha de custos do transporte santa-mariense é realizada pelas próprias empresas e que essas planilhas não são fiscalizadas minuciosamente. Como já lembrado pela revista o Viés em outras ocasiões (ver Negociando o direito de ir e vir, novembro de 2010), em uma avaliação mais criteriosa, o conselheiro da Universidade Federal de Santa Maria no Conselho Municipal dos Transportes (CMT) em 2006, professor Ricardo Rondinel, achou diversas irregularidades nos cálculos da ATU.
Esses cálculos são baseados em uma extensa planilha, “Instruções práticas atualizadas do cálculo de tarifas de transportes urbanos”, produzida pelo GEIPOT, Empresa Brasileira de Planejamento dos Transportes, órgão em processo de liquidação. O complexo cálculo da planilha tem quase 300 variáveis, entre o preço de um chassi de ônibus, passando pelos salários de motoristas, cobradores e fiscais e levando em conta até o lucro da empresa responsável pelo transporte, estabelecido em 12% do faturamento.
Em 2006, o professor Rondinel já atentava para os erros de cálculo – que, invariavelmente, tornavam mais cara a tarifa. Entre eles: o estabelecimento do preço dos pneus, peças automotivas e aditivos baseada no preço por unidade, ignorando que, em uma compra por atacado, eles sofreriam descontos; o uso do tacógrafo dos veículos para apuração dos quilômetros rodados, ignorando o fato de que, mesmo que de forma ilegal, os ônibus possam ser usados fora do expediente municipal dos transportes para excursões e uso particular das empresas; ignorar que, depois de utilizados, os ônibus podem ser revendidos a terceiros.
Tais denúncias, feitas por Rondinel no CMT em 2006, não foram capazes de barrar o aumento naquele ano. Anos depois, poucas correções foram realizadas pela ATU, que faz o cálculo, e o aumento foi promulgado em diversas ocasiões, como pode ser visto no gráfico:
Mais aumento?
O aumento proposto este ano é o terceiro em quatro anos, uma média de um aumento a cada 486 dias, ou um ano e quatro meses – isso se contarmos que não haverá mais aumentos este ano. E cada aumento, a não ser este último proposto, de R$2,20 para R$2,30, foi superior à 10% (o aumento atual é de 4,34%).
Nesse período, a inflação na cidade nunca passou de 7% e o reajuste do piso salarial dos empregados das viações não passou de 8%. Veja no gráfico:
A concepção de integração
Há muitos anos, cidades como Curitiba iniciavam o processo de “integração” do transporte público. Na época, a tecnologia dos cartões magnéticos ainda não era usada. Assim, a “integração” era feita em um sistema de “terminais” urbanos. Ao pagar uma passagem de ônibus, o usuário ganharia “passe livre” nos terminais, que serviam como ponto de baldeação.
Outros sistemas adotam regras semelhantes, com o uso de terminais, e acrescentam ainda a possibilidade de o usuário, ao sair do terminal, manter seu “passe livre” por mais algum tempo, como em Florianópolis.
Não que os sistemas usados de exemplo sejam perfeitos nem que devam ser seguidos à risca em Santa Maria. Eles servem aqui como exemplo do “conceito de integração”.
Vários motivos podem ser enumerados para que o sistema de transportes santa-mariense seja integrado: a possibilidade do SIM servir como norma para a licitação pública dos transportes (que um dia há de ser realizada), a visibilidade que essa integração pode dar ao prefeito nas eleições municipais do ano que vem, a visibilidade que a integração pode dar às empresas nos meios de comunicação e, claro, a tal “satisfação dos usuários”.
Mas, em comparação com outros modelos de integração de fama nacional, o sistema santa-mariense mostra-se pouco competente e de pouca utilidade. Senão, vejamos o sistema proposto pela ATU e ratificado pela prefeitura:
– Ao invés de integração total no preço da passagem, o sistema prevê que haverá desconto ao usuário em 50% até certo período depois do ônibus chegar ao ponto final da linha. Assim, o usuário teria somente um espaço de tempo já estipulado para embarcar no segundo ônibus:
– Para que o usuário possa usufruir da integração é necessário um novo requerimento – no primeiro dia da “implementação” da integração, ainda em caráter de teste, apenas 180 usuários (conforme dados do ATU fornecidos ao Diário de Santa Maria) poderiam usufruir do serviço. Os demais usuários, mesmo que utilizando o cartão magnético já cadastrado na ATU, pagariam o valor total da passagem. Ou seja, a ATU coloca mais um empecilho burocrático para que a população usufrua do transporte público.
– A integração também não vale para linhas complementares. Por exemplo: um usuário que embarcar na linha Universidade não poderá, mesmo dentro do curto prazo de 40 minutos, pagar meia passagem na linha Camobi, que faz a rota contrária à linha Universidade.
Assim, dados da própria ATU consideram que pouco mais de 10% dos usuários farão uso da integração diariamente. Já o aumento de 4,34% sobre a tarifa de R$2,20 e de 11,5% sobre os R$2,00 cobrados até o fim do ano passado será sentido por todos.
A integração justifica o aumento?
Já passaram vários anos desde que a possibilidade de integrar o sistema de transporte de Santa Maria vem sendo estudada. Desde o aumento de 2009, de R$1,80 para R$2,00, a integração figurava entre as contrapartidas exigidas pela prefeitura, como pode ser visto no jornal A Razão de 12 de março de 2009: “Para o reajuste de R$ 0,20 [de R$1,80 para R$2,00], porém, Schirmer fez uma série de exigências para as empresas como pré-requisito para validar o decreto. Há uma semana, as seis concessionárias assinaram documento e assumiram compromisso de implantar a passagem integrada…“. No entanto, o documento assinado e o compromisso assumido não foram cumpridos.
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Não é difícil perceber o embuste no aumento da passagem e na dita “integração”. Na verdade, para percebê-lo, não é necessária muita retórica. As contradições podem ser vistas ao primeiro relance. É só subir no ônibus.
SIM – SISTEMA INTEGRADO DE MENTIRINHA, pelo viés de João Victor Moura
joaovictormoura@revistaovies.com
Leia mais sobre o assunto na revista o Viés:
NEGOCIANDO O DIREITO DE IR E VIR
ENTREVISTA COM O PROMOTOR ADEDE Y CASTRO
ATO CONTRA O AUMENTO DE PASSAGEM, CRONOLOGIA (fotos)
ÔNIBU$ EM SANTA MARIA: ASSEMBLEIA POPULAR (fotos)
Para ler mais reportagens acesse nosso Acervo.
Parabéns pela reportagem, João, está muito boa. É interessante que há uma espécie de contradição em termos nas próprias frases que estão no vídeo: se o transporte sempre foi muito bem avaliado, por que raios ele precisa mudar para continuar sendo? É uma firula retórica tão pobre que demonstra a qualidade da argumentação da ATU para defender este projeto de integração fajuto. Espero que as ações no Ministério Público sejam encaminhadas logo à Justiça para que algo possa ser feito neste nebuloso setor de nossa cidade. Abraços.
parece que a ATU terá que sofrer algumas perdas financeiras para começar a respeitar os usuários do transporte público de santa maria.
Parabéns pelo conteúdo e por pautar este tema, que a mídia financiada pela ATU não faz! Só quero registrar que em 2006 primeiramente nós barramos o aumento. Conseguimos chegar a 20 meses sem aumento da passagem, de janeiro de 2005 atá o final de 2006.
Ou seja, o relatório do professor Rondinel foi importante para barrar o aumento proposto em abril de 2006, embora não tenha sido o único fator. Naquele momento obtivemos uma vitória única da votação contra o aumento na história do CMT, por um voto de diferença.
Foram muitos fatores que possibilitaram aquela vitória: mobilização social (inclusive o trancamento da Medianeira em 2005); eleição do Cláudio Scherer, da CUT, para presidente do CMT (com o Rodrigão da UAC ou a prefeitura ou a ATU na presidência, o Rondinel não seria nomeado relator por exemplo); a própria pressão do DCE nas eleições para reitoria de 2005, onde o professor Lima se comprometeu em colocar a universidade como parceira; a articulação e pressão política (pressão mesmo, visto que havia um ambiente social favorável) com os conselheiros para a votação; a batalha judicial que sempre se arrasta, etc.
A votação foi a seguinte, à época
sim (R$ 1,60)
UFSM
DCE
UAC
OAB
APDC
CDL
Sindicato dos trabalhadores Rurais
Sociedade de Economia
Sindicato dos trabalhadores Urbanos – voto de minerva por ser o presidente
não (planilha de R$ 1,80)
ATU
SMTTMU
Procuradoria Jurídica do município
Escritório das Cidades
SINCAVER
SITRACOVER
Associação das Empresas Interdistritais
USE
A partir desse momento, a prefeitura e ATU partiram para ofensiva para aprovar novo aumento. Editaram decreto alterando a forma de cálculo da tarifa (na prática regulamentando a ilegalidade), e formou uma comissão para elaborar nova proposta de licitação (que na minha opinião caiu no esquecimento por pressão da ATU) a ATU pressionou sobre a posição da CACISM/CDL e demais conselheiros ” seus amigos”; a ATU gastou muito em publicidade em tudo que é mídia, desde as grandonas ao Claudemir Pereira; o Secretário de Transporte Carlos Félix foi demitido e assumiu Genil Pavan, houve pressão pessoal e profissional sobre o Rondinel e reitoria e houve muita pressão sobre os demais conselheiros. Enfim, no final de 2006 aumentou a tarifa, deois de muitas batalhas.
Obrigado pelos elogios e pelas informações, Roberto. Eu desconhecia essa votação, de fato histórica vista a formação do CMT. Infelizmente, naquele mesmo ano um novo aumento foi promulgado, assim como em 2008 e 2010.
Abraços, João Victor Moura.
segue o parecer de vistas do DCE:
https://docs.google.com/document/d/1UMLt90V51PeYQNjoZWAokSvX89Evl7sLpFssyXBiPKs/edit?hl=en_US#