Sempre foi por dinheiro, nunca por ética ambiental. Em pauta há mais de uma década no País, guardado na gaveta por Marina Silva enquanto ministra, ciente da contestação que afloraria no país sobre seu trabalho de defensora das causas ambientais, as mudanças no atual Código Florestal brasileiro, formulado durante o período do ditador Castelo Branco, provoca debates inquietantes quanto a preservação dos espaços naturais. O relatório, que propõe alterações ambientais, foi apresentado pelo deputado federal Aldo Rebelo (PCdoB), relator da Comissão Especial criada para dar parecer sobre o Projeto de Lei 1876/99 que dispõe sobre alterações do atual Código.
Os trabalhos da Comissão foram desenvolvidos ao longo de 2010 depois de uma longa e conflituosa briga tanto dentro do governo quanto da oposição com o governo. A bancada ruralista serviu como “comissão de frente” na constituição da Comissão, conseguindo que Moacir Micheletto (PMDB), deputado paranaense que se intitula “a voz da agricultura” fosse aceito na presidência da Comissão. Surgia ali um impasse com os ambientalistas. A indicação do deputado “comunista” Aldo Rebelo e a aprovação unânime para que este tomasse a frente a relatoria da Comissão, que estava nas mãos de Homero Pereira, outro manifesto mensageiro da banda ruralista, foi entendida por muitos grupos ambientalistas e entidades participantes do debate como um alento. Choveu no molhado.
Sempre foi por dinheiro, nunca por ética ambiental. O primeiro código florestal brasileiro foi instituído por Getúlio Vargas em 1934. Nas primeiras décadas do Século XX no Brasil a principal matriz energética era à base de carvão e lenha. A lenha abastecia os fogões das casas, o calor para o funcionamento dos trens, as máquinas industriais à base de vapor etc. Cortar o abastecimento de lenha era como cortar o fornecimento de luz e gerar um apagão.
Na mesma época, o sudeste brasileiro, onde se encontrava a maioria da população e de onde vinham as principais decisões políticas e sociais, iniciava o ciclo cafeeiro, derrubando a Mata Atlântica para dar espaço aos pés de café dos poucos – em relação a toda população-, e abastados fazendeiros da época. Com isso, a madeira entrava em extinção nos contornos das cidades, tornando o transporte da lenha de localidades mais afastadas inevitável. Assim, o custo ascendia. Sendo produto de extrema relevância para o período, garantir que a população, as fábricas, e as demais instâncias da comunidade brasileira tivessem acesso à lenha era politicamente estratégico. Politicamente. Em 1934 ainda não havia o pensamento público sobre conseqüências danosas ao meio ambiente. A lenha tinha que aparecer de alguma parte e de qualquer jeito.
O Estado brasileiro vivia ainda sob a doutrina do uti possidetis, a qual permitia que áreas ocupadas pacificamente fossem empossadas a um dono legítimo. Áreas públicas não eram controladas de forma totalitária pelas dificuldades geográficas e técnicas da época, permitindo que civis tomassem posse de áreas verdes e as desmatassem para fins particulares. A saída mais simples encontrada por Vargas foi obrigar que os donos de imóveis particulares mantivessem 25% da área de sua posse com a cobertura florestal original. A lei ficou conhecida popularmente como “quarta parte”. Sempre foi por dinheiro, nunca por ética ambiental. A imposição estatal brotava da necessidade de dominar o mercado de lenha.
Os índios, contudo, os primeiros especialistas do Brasil em questões ambientais, muito antes dos portugueses dominarem Vera Cruz, compreendiam a diferença entre cortar algumas árvores para o uso em construções pueris e fabricação de canoas, e a pesca hostil em época de piracema na região do Pantanal. Àquela devastava pouco e no lugar da árvore cortada, outra cresceria naturalmente. Entretanto, a noção de não pescar em grande escala em época de piracema, propiciaria maior abundância de peixes nos meses seguintes. Era uma relação de cooperação. Uma árvore por outra, menos pesca por mais peixe.
Os tempos são outros e seria inapropriado perpetrar, em 2011, uma analogia entre como era no passado longínquo e como é agora. Atualmente cortar árvores é questão de cunho capital, de mérito privado, político e de abnegação social de vida em conjunto. Quem mais espaço tiver, mais planta. Quem estiver mais próximo de leitos d’água, melhor irrigação terá. Até aqui estamos embasados em obviedades.
Na prática, um dos motes polêmicos a ser votado faz referência à redução da reserva legal ao longo dos rios nas Áreas de Preservação Permanentes (APPs). A lei atual define que sejam conservados 30 metros de mata nativa nas margens dos rios. Com as possíveis alterações, a extensão preservada admitiria a diminuição para 15 metros caso o lugar já esteja tomado, como exemplo, por lavouras ou ocupações urbanas.
O problema não se limita a ocorrência de moradias próximas a leitos de canais d’água ou sobre declives abruptos, pendentes a deslizamentos, como no último caso ocorrido no país na Serra Fluminense. As alterações no Código Florestal comprometeriam mananciais próximos a grandes lavouras, que são abastecidas por componentes químicos nocivos. Sem a mata que espaça a lavoura do curso d’água, as chances de contaminação de rios que irão abastecer milhões de brasileiros torna-se antevista.
Com a aprovação do novo Código, também topos de montanhas, encostas de morros e serras – lugares geograficamente considerados como impróprios para o uso humano pelo código presente – seriam autorizados para determinados tipos de cultivo. Para liberar ou não a ocupação nessas áreas, os estudos de viabilidade e danos ambientais, hoje exercidos por órgãos nacionais, seriam repassados a institutos locais de pesquisa, nulos ou ineficáveis em muitos lugares.
Em 22 de julho de 2008, o ex Ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, juntamente ao presidente da república, Luis Inácio Lula da Silva, assinou o decreto 6.514/08, o qual regulamentava a Lei de Crimes Ambientais. A partir do decreto, fora fixado um prazo para que os donos de imóveis rurais fossem até os cartórios para autenticar duas áreas de Reserva Legal. Esta é uma área dentro dos espaços rurais que deve ser mantida com a vegetação original.
Hoje em dia proprietários rurais devem conservar uma parcela de vegetação original na Amazônia de 80% da propriedade com floresta nativa, e no Cerrado, 35% da área deve preservar a vegetação natural. Conforme as deliberações do novo Código em curso, a regra persiste, mas os proprietários de uma área menor ou equivalente a quatro módulos fiscais seriam desobrigados de recompor a reserva.
O módulo fiscal não é global, nem nacional, nem regional, e seu tamanho varia de um município para outro. Há locais no estado do Acre em que o módulo equivale a 100 hectares. Para ser mais palpável tal noção, um campo de futebol mede, geralmente, 120 metros por 75 metros. Um hectare equivale a 100 metros por 100 metros. É uma área quase equivalente. A partir das mudanças no Código, propriedades no Acre com até 400 hectares poderiam ficar isentas de recompor reservar legais, ocasionando clareiras em meio a Amazônia. Os ambientalistas temem que propriedades maiores sejam divididas entre donos “laranjas”, criando minipropriedades de 400 hectares vizinhas para burlar a obrigação de cultivar reservas ambientais.
O decreto de julho de 2008 (6.514/08) dava o prazo de 180 dias para que todo dono de imóvel rural apresentasse suas Reservas Legais (RL). Contudo, protocolar uma RL é um processo demorado, a Justiça levaria um tempo muito maior para estudar todos os casos e a grande maioria dos produtores rurais, tanto da agricultura familiar quanto do agronegócio passariam a ser enquadrados em processos e estariam sujeitos a multas diárias. O produtor teria que procurar o órgão ambiental de seu estado e pedir o estudo da localização da área de reserva dentro de seu imóvel. Após a indicação do instituto local sobre a área a ser preservada (depois de um estudo minucioso de georreferenciamento, processo duradouro), o agricultor teria que voltar ao cartório de registro de imóveis e solicitar a averbação da RL em seu imóvel. Os 180 dias do primeiro decreto tornaram-se impraticáveis, forçando então o ex Presidente assinar um segundo decreto, o 6.686/08, prorrogando por mais um ano o tempo para os produtores rurais cumprirem as regras do primeiro decreto.
Enquanto os ministros do Meio Ambiente, Agricultura e da Casa Civil buscavam uma convergência advertida por Lula, um estudo do pesquisador Evaristo Miranda, com chancela da Embrapa, afirmava que unindo-se as Unidades de Conservação (UCs), as Reservas Indígenas, as áreas de Reserva Legal (RL), de Preservação Permanente (APPs) e demais áreas protegidas, sobraria pouco para a produção agrícola. O estudo era a “galinha dos ovos de ouro” que os deputados ruralistas e os aliados esperavam para articular junto ao Presidente da Câmara na época, Michel Temer, hoje Vice-Presidente da República, a criação da Comissão Especial para reformar o Código Florestal.
Os problemas começam a surgir na composição da Comissão Especial. Formada por deputados com interesses políticos pela renovação do Código e pressionados, sobretudo pelo agronegócio e pelos fazendeiros exportadores de grãos, a comissão ultrapassa o bom discernimento do que é “viver em comunidade”. O atropelo e a pressa em votar as novas determinações do Código Florestal virou cenário de lobby, escândalos, insultos, formação de bancadas prós e contras e abriu espaço para ratificar o velho e infundado discurso da bancada ruralista, que há anos vem perdendo espaço e prestígio: “somos o setor que move o país, e se cairmos, o país cai junto”.
Contudo, estudos comprovam que 30% da população rural exerce atividades em estabelecimentos com áreas inferiores a 5 hectares, notavelmente inferiores aos do agronegócio. A informação primordial sobre a propriedade familiar no Brasil ainda é desconhecida pela maioria. Em escala global, o pequeno agricultor abastece 40% da demanda agropecuária. Quando produtos básicos da dieta do brasileiro como o feijão, arroz, milho, hortaliças, mandioca e pequenos animais são calculados, a agricultura doméstica torna-se responsável por 60% da produção. Essa força campesina representa a maioria rural do país, com 4,1 milhões de estabelecimentos no segmento e 13,8 milhões de pessoas que têm na atividade agrícola praticamente sua única alternativa de vida. E se o novo Código Florestal entrar em vigor, quem perde mais? Tudo indica que o pequeno agricultor.
No final de 2009, perante os impasses entre os ministros e com o trabalho avançado da Comissão Especial, o presidente Lula assina então um terceiro decreto, o 7.029/08, prorrogando para julho deste ano a entrada em vigor do decreto inicial, por isso a pressa e o discurso rígido dos favoráveis às mudanças, principalmente latifundiários e empresários do agronegócio, sobre a renovação do Código. Caso não seja votado ou não aceito pela maioria da Câmara, em julho muitos fazendeiros e agricultores rurais passam a ser criminosos perante a lei.
É necessário ressaltar, no entanto, que o relatório apresentado por Aldo Rebelo é integralmente simplista e imediatista, um método que busca vantagem confinante. O texto ajustado procura descriminalizar os atos civis contra o meio ambiente ao invés de propor novos formatos de relação entre pecuária, agricultura, ocupação habitacional e o meio ambiente.
A tarde de quarta-feira, dia 11, passou lentamente em Brasília. Deputados esperaram por quase 12h o relatório final de Aldo Rebelo, e enquanto isso discursavam. Quando, às 22h, Aldo chegou com o texto final – acertado por todos os partidos, menos PSOL e PV – o clima foi de comemoração. A votação do novo Código Florestal estava para começar quando o PSOL entrou com um pedido de adiamento da votação.
O deputado federal do PSOL Ivan Valente subiu à tribuna mais para marcar posição do que acreditando que um partido com três deputados conseguiria mudar os rumos da pauta extraordinária. Apenas PSOL e PV defendiam o adiamento. A bancada ruralista urrava vaias quando o deputado socialista disse que o texto se tratava de “uma visão imediatista, economicista e reducionista com enorme impacto na vida social e ambiental”.
Mas quando a votação se mostrava contrária ao adiamento, o líder do governo federal na Câmara dos Deputados, Candido Vacarezza (PT) subiu ao palanque dizendo que o governo queria o adiamento por entender que o texto havia sido modificado. Um tumulto instaurou-se, pois os partidos mais conservadores não esperam essa atitude de um governo com o qual votariam. Marina Silva, que acompanhava a sessão, tuitou: “Estou no plenário da Câmara. Aldo Rebelo apresentou um novo texto, com novas pegadinhas, minutos antes da votação. Como pode ser votado?!”.
Depois do adiamento da votação a partir de manobra regimental (contagem de quórum) e não por instância em apreciar por mais tempo o texto, Cândido Vacarezza conseguiu evitar uma derrota para o governo. Caso a base aliada se dividisse entre opostos ao novo Código e apoiadores do discurso da oposição ruralista, sufrágio político do agronegócio a partir dos partidos Democratas e PSD, o governo teria uma nova dor de cabeça com seus “aliados”.
O líder do PT, Paulo Teixeira, criticou Aldo Rebelo e seu novo relatório: “ “Recebemos um novo texto e encontramos modificações com as quais não concordamos. O texto que construiu a unidade durante a tarde, não é aquele que foi entregue”. Segundo Ivan Valente (PSOL) “não se pode votar no escuro, estava faltando transparência. O governo estava encaminhando a aprovação de um texto sem sequer ter lido sua versão definitiva, com base na confiança de um acordo firmado com a bancada ruralista”. “Este tema é complexo e pequenas alterações podem ter consequências brutais para a proteção do meio-ambiente. Atropelar a votação sem uma leitura cuidadosa do relatório seria um crime. Felizmente o governo pegou carona no requerimento do PSOL para garantir aquilo que vínhamos pedindo desde a manhã desta quarta: mais tempo para a discussão”.
Enquanto oposição e governo não se entendiam, o líder do PMDB, partido principal da base aliada, Henrique Eduardo Alves, criticou o governo e disse que não votaria mais nada até ocorrer uma definição conjunta. O que permanece claro é que o interesse em aprovar ou não as mudanças partem primeiramente das instâncias de interesse político e capital. Em segundo plano está o discurso de alguns deputados e senadores sobre o que pode ocorrer no país com as mudanças ambientais. “Sabemos que há 60 milhões de hectares degradados no Brasil e 160 milhões de hectares ocupados pela agropecuária muito mal ocupados. Ter pasto na Amazônia para criar um único boi por hectare é um crime ambiental! Esse tipo de rendimento representa um crime contra o futuro do povo brasileiro. É preciso fazer barulho e pedir, em última instância, que a Presidenta Dilma cumpra sua promessa de campanha e não permita a aprovação de nenhum projeto que libere o desmatamento de nossas florestas”, conclui Ivan Valente.
Sempre foi por dinheiro, nunca por ética ambiental.
DESMATAR IS MONEY, pelo viés de Bibiano Girard e contribuição de Mathias Rodrigues
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