“Assim como há os crimes de hoje em dia, estes que assistimos pela televisão, havia muitos antigamente, até mesmo recentemente, mas não eram tão divulgados como agora”.
Essas são as palavras da historiadora e professora Elza Rubens Martins, formada em 1979 pela Universidade Federal de Santa Maria e, desde o ano conseguinte habitante da pequena Rosário do Sul, no pampa gaúcho. Elza Martins é uma das únicas pessoas aptas e audaciosas a explanar sobre o sucedido do inverno de 1985 e sobre os trâmites e dúvidas da justiça e da população rosariense sobre o episódio do trucidamento da senhora Djalmira Fagundes Freitas, segundo fontes até hoje julgáveis, ocorrido na madrugada do dia 19 de junho, chuvosa e fria.
Djalmira Freitas era enfermeira formada pela Universidade Federal de Santa Maria e trabalhava no hospital Nossa Senhora Auxiliadora, em Rosário do Sul, desde 1980, onde, em 1983, alcançou o posto de Chefe da Enfermaria. Era uma mulher acidentalmente bonita, diferente dos pais e do resto da família, e bem quista por boa parte da sociedade que a conhecia. “Tinha lá suas características extravagantes, as quais a faziam ser popular por onde passava, como andar vestida de verde e amarelo durante as copas ou até andar com toca de Papai Noel pelas ruas em pleno mês de dezembro distribuindo balas e sorrisos pelo comércio, pelas casas. Talvez a extravagância da Djalmira fosse um incômodo para alguém, o que nunca se descobrirá”, disse Elza.
Nascida em 1954 na cidade vizinha, Cacequi, de onde partiu com os pais e o único irmão, Josias, em 1964, para Rosário do Sul, Djalmira fora aluna do Grupo Escolar Marçal Pacheco até o quinto ano primário (como funcionava a educação da época) sendo depois admitida à Escola Plácido de Castro para o Ginásio Escolar.
Desde nova Djalmira já se mostrava avessa a conceitos, conservadorismos e tradicionalismos patronais. Vivera a juventude nos anos 1970 em Santa Maria onde cursava a faculdade de enfermagem e participava, com pretensão e garra, do Movimento Estudantil Santamariense. Era organizadora de passeatas e encontros da juventude para debates sobre a liberdade de expressão e a “liberação da mente, como dizíamos”, conta a amiga Andréia Del Monte, rosariense de nascença, mas que conhecera Djalmira apenas quando as duas tornaram-se colegas em Enfermagem. “A Djalminha, como a chamávamos, era pra frente, era muito mais moderna do que nós, suas amigas de movimento. Enquanto saíamos atrás de ‘um bom partido’, ainda com aquela mente arcaica da primeira metade do século passado, a Djalminha já andava com vários garotos durante um ano inteiro, entende? Ela não era assim, largada, tu me entendes? Só era uma jovem mais aberta, que ‘ficava’, como vocês dizem hoje, e no outro dia dava apenas um abano para o rapaz da noite anterior. Nós nos divertíamos muito com as situações”.
Contudo, os anos de ouro de Djalmira começavam a ter um fim, sem a então Enfermeira profissional saber. Em uma dessas noites de “ficada”, Djalmira acabou conhecendo um jovem alto, moreno, de olhos puxados e de descendência indígena. Luis Carlos Adélio de Freitas, mais conhecido por Dédo, era rosariense, filho de rosarienses que tinham na árvore genealógica a marca indígena em gerações bem antigas.
Luis Carlos Adélio era diretor administrativo do campo de enlatados na remota fábrica Swift, extraordinário pólo industrial da cidade até o término dos anos 1980. Para termos dimensão do que Dédo geria, números parcos avaliados apontam que o empreendimento inteiro empregava mais de 4 mil pessoas durante a alta-safra. A linha férrea, meio de transporte de carga utilizado em maior escala na época, cruzava o pátio do lugar e uma comissão especial do Corpo de Bombeiros tinha um galpão especial para o batalhão dentro das instalações que ocupam até hoje, em estado de decomposição, uma pequena colina ao sudoeste da cidade.
Djalmira e Dédo iniciaram o relacionamento amoroso em Santa Maria e logo se transferiram para a cidade de onde os dois haviam partido anos atrás. A enfermeira foi logo contratada pelo único hospital de Rosário do Sul e Luis Carlos Adélio, posteriormente ao curso de Administração concretizado na Universidade Federal de Santa Maria, prosseguia assalariado da abissal Swift. Adquiriram uma residência na Avenida João Brasil, número 1346, próxima à fábrica e foram aos poucos retornando ao convívio social dos clubes locais e arquitetando uma vida prosaica, porém quase perfeita para um casal recém constituído.
A historiadora Elza Martins, gesticulando com as mãos enquanto as pernas finas permaneceram cruzadas durante toda a conversa, explica que três anos foi o tempo vivido pelo casal em paz. Entre 1980 e 1983, o relacionamento permaneceu na santíssima paz da qual o padre, que os casou na igreja católica, pronunciou e ordenou que os seguisse pelo resto de suas vidas. Em 1983, após mostrar-se capaz de ser dirigente da área de enfermagem do hospital, Djalmira fora promovida para o cargo mais alto da área e tornou-se participante da cúpula administrativa do hospital.
“Haveria alguma ligação entre a promoção da Djalmira com o que logo ocorreu? O juiz da época deu relevância ao caso. A Djalmira partiu para receber um salário que hoje pode ser avaliado em R$3.100 enquanto problemas administrativos ainda desconhecidos da população rosariense vinham acontecendo entre as paredes da administração da Swift”, diz Elza Martins.
Seis meses depois da promoção de Djalmira, um contingente de trabalhadores da fábrica que enlatava e vendia toneladas de carne em vários tipos de corte, matando a marretadas 800 cabeças de gado por dia, perdia o emprego. Nesse contingente, boa parte da administração, principalmente brasileiros, fora demitida. Dédo era um deles. A fábrica da Swift viria a ruir em anos, tornando-se um grande cemitério de paredes e um cartão-postal de fealdade e desgraça para a cidade. Tudo mudou em pouco tempo. Hectares de edificações, móveis, carros, objetos industriais, fornos, geladeiras, freezers e até mesmo o relógio e o apito que avisavam as horas de saída, entrada e almoço (que regulava a vida de outros rosarienses por ouvirem há mais de um quilômetro o som do apito) foram sendo retirados do local. Os telhados foram depenados, as paredes derrubadas, as janelas roubadas, portas despencaram, as “ruas” do pátio interno da fábrica esburacaram. O trem não mais cruzou por ali.
Mas para o rosariense de longa data, é difícil esquecer a hora em que a fábrica soltava o popular “guamo”. Em determinada hora da tarde, as ruas e aléias da cidade, de sul a norte, de leste a oeste, eram “aromatizadas”, por assim eufemizar, por um cheiro tenebroso, ardente e enjoativo lançado da indústria em grandes valas e poços. Era expelido, naquele momento, todo tipo de lixo produzido por uma fábrica que tratava com sangue, carne, couro e demais frutos e produtos químicos usados na fabricação dos enlatados e das carnes.
Bem, na tarde de 19 de junho de 1985, às 18 horas, o guamo dispersou pela cidade o cheiro que enojava até mesmo cachorro faminto. A justiça nunca conseguiu provar, a polícia nunca encontrou provas e a população ficou estarrecida em imaginar que naquele guamo estavam também pedaços do corpo de Djalmira Fagundes Freitas, a Djalminha. Era a barbárie abraçando uma família cotidianamente normal, um casal que, mesmo em tempos difíceis, manteve a pose que ainda se solicitava aos casais em processo de separação interessados no sossego e não na fofoca alheia. Era melhor ser discreto. Mesmo casado com Djalmira.
Na mesma madrugada, uma chuva forte lavou a alma e o negrume que se abateu sobre a pequena cidade. Os córregos encheram, as ruas eram canais de água marrom e barrenta, fria, de um inverno mais gelado do que os outros. Djalmira e o coração frio de Dédo. As portas se fecharam, o luto de muitos chorou com as nuvens, o medo e o horror de muitos outros gelou a noite.
Na manhã seguinte, surgiria uma testemunha. A rádio Marajá anunciava cedo que a testemunha seria ouvida ainda naquela manhã pelos órgãos que cuidavam do caso. Djalmira não havia sido jogada ao esgoto da Swift, como imaginavam.
Um “saco preto pesado e contendo algo enrijecido, deformado” havia sido encontrado na tubulação da antiga “Sanga do Lixo”, um córrego atualmente todo canalizado que joga suas águas no Rio Santa Maria, que, quilômetros depois abastecerá a vizinha Cacequi, de onde Djalmira partira com a família para o encontro com a vida real. Os meninos do quarteirão onde a tubulação encontrava-se trancada pelo saco, avisaram a polícia, que já havia cercado o lugar.
Enquanto as autoridades interpelavam a testemunha, uma ex-faxineira que, na madrugada do dia 19, teve que permanecer no local de trabalho, uma casa que servia para os encontros de um grupo de senhores caridosos, a chuva alargava. A mulher teria visto um homem, no breu da noite sem luz pela tempestade, jogar um saco preto que aparentava pesar, retirado do porta-malas de um corcel cinza, igual ao carro do principal suspeito, Luis Carlos Adélio de Freitas, na “Sanga do Lixo”, próximo ao hospital da cidade.
Feitas as buscas, retirado o saco das águas fétidas do córrego, colocado sobre a rua de chão batido para análise dos peritos, uma ninhada de gatos mortos fora retirada do saco despertando ainda mais a curiosidade dos fatos. Todos os gatos estavam decapitados e um vestido pertencente à Djalmira, de cor escura, amarrava-os unidos em forma de trocha.
A testemunha, que havia sido liberada horas antes da retirada do saco plástico da canalização, sumira da cidade não se sabe por onde e nem por quê. Luis Carlos Adélio de Freitas foi preso por precaução e encontrado morto na cela na manhã seguinte com um recado escrito com o feijão servido na noite anterior alertando que a culpa de tudo aquilo não era dele.
A testemunha nunca mais foi encontrada.
“A fixação dos rosarienses por este caso é tão grande que, dizem as más e as boas línguas, como eu estou te falando agora (risos), que, depois dessa tragédia, a Swift realmente não conseguiu encontrar uma maneira de sair da crise pela qual passava e hoje é aquilo que podemos ver de vários pontos de Rosário: um monstro de tijolos com uma chaminé apontando para os céus”. Nunca fora encontrado o corpo, nem pedaços no guamo, nem partes ou ele inteiro nas águas do córrego que, em seguida, anos depois, fora aterrado. Hoje, Djalminha vive no imaginário das pessoas e sua morte recebe uma versão as pessoas mais velhas a cada quarteirão que se caminha. “Até versões que passam longe do que realmente pode ter acontecido, histórias fictícias, são contadas pelos mais novos, assim, da tua idade”.
Como este texto, que não passa de uma história de ficção, onde todos os personagens são fictícios e as coincidências são meros acasos da vida, os lugares citados realmente existem, mas em nenhum deles ocorreram as cenas acima descritas. Esta história é inteiramente armada.
ONDE FOI PARAR O CORPO DE DJALMIRA?, pelo viés de Bibiano Girard
bibianogirard@revistaovies.com
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