Espiando as questões de imprensa na Argentina
O Senado argentino votou há mais de um ano, mas a decisão continua rendendo análises e discussões. É de nove de outubro de 2009 a sanção e a aprovação da Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual, substituta da lei de imprensa constituída e aplicada nos anos de ditadura militar. Popularmente conhecida como Ley de Medios, mexeu com o humor dos grandes monopólios do país. Por estes e pela oposição, é acusada de ser resultado de uma rixa entre o Clarín, principal conglomerado comunicacional da Argentina, e o governo Kirchner. Por grande parte da sociedade, profissionais reconhecidos do meio e por expertos em regimes democráticos, é o início da quebra de grupos hegemônicos em detrimento de uma comunicação mais pluralizada.
A lei foi apresentada publicamente em março do ano passado (2009). Desde lá, sofreu algumas alterações propostas pelos fóruns de debate criados para discussão dos artigos. Em agosto, houve a apresentação ao Congresso Nacional, que não tardou em aprová-la. Em outubro, por 44 votos a 24, a Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual estava pronta para entrar em vigor. Muitos aplausos de um lado. Vaias de outro. Enquanto setores de movimentos sociais e de civis realizavam ato de aprovação à lei nas ruas, os donos dos maiores conglomerados de comunicação ferviam. Em seus canais, veiculavam acusações de tentativa de censura. Falavam de restrição de liberdade e de ataque à democracia. Exaltados. A lei significaria uma redução de seus poderes.
O contexto
O principal alvo ao governo tem base no contexto de princípios do ano de 2008, quando se formou uma grave crise entre ruralistas e o governo Cristina Kirchner. A decisão de aumento na alíquota de impostos sobre produtos agrícolas exportados gerou uma onde de protestos, encabeçados pelos grandes produtores rurais. Cortes de estradas bloquearam a contenção do abastecimento de alimentos à capital. Somou-se aos ruralistas grande parte da população que, ao ser bombardeada com o que mídia chamou de “confisco” (mesmo que a palavra não fosse apropriada e causasse informações dúbias) sobre os produtores agrícolas, tomou partido do grande setor rural.
O aumento, que de acordo com o governo visava a incentivar pequenos produtores e reverter uma parte do enorme lucro dos grandes em investimento no Estado, foi suspenso em julho do mesmo ano. Vitória para os ruralistas. A votação no Senado terminou em 37 a 36. Empatados em 36 a 36, coube ao vice-presidente e também presidente do Senado, Julio Cobos, o voto de minerva. Cobos decidiu pela suspensão da medida. Desde então, ele e Cristina mantém uma quase não-relação. Ela pede a renúncia do vice e ele, que antes de entrar na chapa da presidente era de partido oposicionista, resiste no cargo.
A posição que tomou o Clarín, nessa época, define a atual briga entre o governo e a empresa. No governo de Nestor Kirchner, as concessões para canais televisivos e radiofônicos do grupo foram renovadas por 10 anos. Entretanto, a posição que tomou o Clarín quando a crise dos ruralistas ocorreu foi claramente de ataque ao governo e defesa dos grandes produtores. Por esse motivo, opositores e grandes empresas de comunicação, dizem que a criação da Ley de Medios mais é uma punição ao Clarín. Esses setores acusam o governo de castrador da liberdade de expressão e de imprensa. É verdade que os Kirchner não mantém uma relação harmônica com a imprensa, porém, quando a equipe do Clarín e outros meios resolveram por termos e posições sem embasamento e justificativa alguns, jogou-se na lama qualquer tentativa de relação respeitosa.
A esse panorama de desavenças soma-se a eleição legislativa, prestes a ocorrer na época. A intimidação da imprensa, principal aliada da oposição ao kirchnerismo, seria outro motivo para a criação da lei.
Pesam-se todos esses fatos, mas, na realidade todos eles parecem uma procura por motivos que embasem o reclame dos grandes monopólios. Quando se perceberam ameaçados (perderiam um mimo histórico), começaram a ligar fatos que, mesmo contundentes em alguns sentidos, não significam muito perto da mudança que a nova lei significa na democracia da Argentina. A Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual mexeu com os grandes monopólios midiáticos ao iniciar um processo que, inversamente do que os contrariados afirmam, começa uma pluralização dos meios.
A Lei
O conteúdo da Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual comporta 166 artigos. Os mais relevantes, por motivo de mudança e diferenciação quanto ao antigo regulamento são:
– A diminuição do número de serviços abertos de rádio e televisão mantidos por um só dono, seja ele físico ou jurídico: de 24, passa a ser 10 o máximo permitido (sendo que no máximo três podem estar na mesma localidade), além de que um só grupo empresarial não pode possuir mais de 35% de controle de mercado local;
– A proibição de que uma empresa com canal aberto tenha canal a cabo em uma mesma localidade;
– A inserção de entidades sem fins lucrativos nos meios comunicacionais. Antes ONG’s, movimentos sociais e escolas, por exemplo, eram PROIBIDOS de manterem um serviço radiofônico ou televisivo. Antes, era exigido o fim lucrativo, agora tal setor fica com 33% dos meios radiodifusores;
– A garantia de um canal de rádio FM, um de rádio AM e um canal televisivo terrestre para povos originários, em seu lugar de assentamento;
– A criação de uma comissão mista (civis, profissionais e governantes), que será responsável pela análise de conteúdos dos meios radiodifusores e pela vistoria do cumprimento das novas leis;
– A difusão de, ao menos, oito filmes nacionais em cada canal ao longo de um ano.
A aplicação
A Lei está em vigor desde setembro desde ano (2010), quando foi publicada no Diário da União. O artigo 161 é o que mais provoca os conglomerados. Diz ele que as adequações à nova lei devem ser realizadas no prazo máximo de um ano. Isso signifca que já está em andamento a contagem regressiva para retirarem-se do posto de detentores hegemônicos da informação.
Em abril deste ano, protestos de profissionais e estudantes de comunicação uniram-se a reclames de membros de grupos comunitários, de povos originários, das Mães e Avós da Praça de Maio, de militantes obreiros e de outros setores, além de civis. Aproximadamente 20 quadras de pessoas que compuseram a caminhada pelas ruas de Buenos Aires. Quando chegaram em frente ao Tribunal Superior de Justiça, pediram que a Lei de de Serviços de Comunicação Audiovisual entrasse em vigência.
Seguiram outros dias de reivindicações, as quais eram organizadas principalmente pelas redes sociais da web. O fato mostrou o quanto a questão mídia tem se tornado debate entre a sociedade em geral. Setores da população que antes não discutiam o tema começam a tomar consciência dos perigos da concentração da informação em monopólios.
Depois das agitações, foram mais alguns meses até a publicação da Ley de Medios no Diário da União. Em setembro de 2010 ela entra em vigor, iniciando a contagem regressiva de um ano para a adequação às novas regras. A dúvida, entretanto, é como os conglomerados aceitarão abrir mão do poder que têm. Já respingam algumas certezas, dentre as quais a mais evidente é: antes de se adequarem, lutarão judicialmente alegando mil e um motivos para frear a lei. Atualmente, cinco juízes dão lugar a contestações realizadas pelo grupo Clarín e pelo grupo Vila-Manzano. Ambos alegam que a lei vai contra a liberdade de imprensa.
Entre batalhas e mais batalhas, pode-se dizer que o primeiro passo para uma mudança significativa na desconcentração dos meios já foi dado. À parte de opiniões sobre os motivos que levaram à criação da lei, há a lei, a qual expertos em comunicação julgam ter um grande mérito. É normal haver resistência por parte de uma porcentagem que sempre teve nas mãos o controle majoritário dos canais de mediação entre sociedade e esfera pública. Acostumada em influenciar a opinião pública, na verdade teme o poder que deve ter a sociedade se não coada por seus filtros.
E o que tem a ver com o Brasil?
No Brasil, a maior parte dos canais de comunicação também é controlada por grandes empresas. Rede Globo é a principal delas. Mudam os nomes e os contextos, mas a situação assemelha-se muito. São ricos empresários possuindo, nas mãos, dezenas de meios de informação. Canais televisivos e radiofônicos, revistas, jornais, livros. O debate sobre a inserção de setores minoritários nos meios já é realizado, mas na prática, na lei, ainda não há mudanças. Aliás, atualmente não temos lei de imprensa. Em 2009 foi derrubada por uma votação no Supremo Tribunal Federal. Para ações envolvendo jornalistas, juízes baseiam-se na Constituição e nos códigos civil e penal.
A revogação da lei não mudou muito o cenário brasileiro. Entretanto, a criação de uma nova, atualizada com as demandas de inclusão de setores excluídos e com regulação das novas tecnologias é um tema a ser discutido. No Brasil, assim como na Argentina, também é necessário um primeiro passo para a desconcentração dos detentores da informação. É preciso coragem, pois a decisão pode causar ataques dos grandes e, bem se sabe, as estratégias de comunicação das vozes hegemônicas são ainda aceitas absorvidas por grande parcela da sociedade.
Direito à informação é um dos passos para uma democracia. Informação plural, onde todos possam comunicar suas demandas. Podemos olhar para os hermanos e aproveitar o que se te feito de positivo nesse sentido. Argentina, Brasil e outros países latino-americanos têm passado por fatos históricos nas últimas décadas. Poderia ser um bom contexto para o Brasil dar um passo no sentido da pluralização das vozes em pauta.
E NO VIZINHO…, pelo viés de Liana Coll
lianacoll@revistaovies.com
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