Veja também fotografias do primeiro dia de manifestações
Os capacetes alaranjados daqueles que trabalhavam em uma construção serviram de panela. Para bater panela. Para bater lata, latão, palma. A meia quadra da prefeitura, aqueles três trabalhadores engajavam-se, a cada pouco, aos gritos estudantis. Enquadravam um tijolo aqui e outro lá durante as nove horas de protesto da quinta-feira, 21 de outubro. Nesse quarto dia de luta estudantil estava claro pelos abanos, pelos gritos e pelos punhos fechados da população nas janelas que a causa não era de uma classe só.
Se o apoio da população pelas sacadas e ruas da cidade contra a decisão do prefeito Cezar Schirmer (PMDB) fundamentava-se principalmente no aumento da tarifa sentido no final do mês, o dos movimentos sociais e estudantis considerava outras questões.
Santa Maria se fortifica com sua população flutuante. Entre 30 e 50 mil pessoas a mais pelas ruas, os estudantes representam uma movimentação extra, bem-vinda e estruturante da cidade às claras. Não sozinhos. A estrutura depende de quem trabalha em pequeno e médio comércio, escolas, universidades e transporte. Transporte este que traz ao centro e leva aos bairros os trabalhadores, os estudantes – interessados em gritar quando uma prefeitura se baseia unicamente em sua relação de dependência econômica às empresas.
As manifestações que ocorreram desde a segunda-feira, dia 18, baseavam-se especialmente em questões de interesse público. O Conselho Municipal de Transporte (CMT) tentou votar o aumento no preço da passagem às pressas, nas dependências da prefeitura, sem a participação da comunidade santa-mariense e utilizando dados atrasados nos cálculos dos coeficientes – o que, para os estudantes e trabalhadores de grupos e movimentos sociais, representa o início das irregularidades.
Uma das reivindicações mais relevantes é a licitação de empresas de transporte coletivo em Santa Maria. A licitação é uma concessão dada pelo poder público – no caso, a Prefeitura de Santa Maria – a uma empresa ou a um grupo de empresas – nesse caso, a Associação dos Transportadores Urbanos (ATU) – em troca de um serviço prestado. O sistema de licitação seleciona o menor preço apresentado pelas empresas concorrentes. Em janeiro, o contrato de concessão das empresas de transporte coletivo foi renovado pela prefeitura por mais 10 anos e sem licitação. A falta desta prejudica a população, por manter o valor que a ATU estipular, e não o menor preço.
Segundo o Secretário do Município de Controle e Mobilidade Urbana, Sérgio Renato Medeiros, em resposta coletiva dada aos estudantes, as licitações em Santa Maria não ocorrem por falta de um Plano Diretor.
O estudante Paulo Montedo questionou o Secretário: “O senhor assume a responsabilidade de realizar um processo de licitação do sistema de transporte coletivo de Santa Maria?”, ao que Medeiros responde: “Vamos deixar claro uma coisa: o prefeito não sou eu. A minha função é fornecer para o prefeito embasamento para que ele faça o que bem entender. Eu não posso exigir do prefeito que seja realizado um processo de licitação agora porque eu não tenho o mínimo embasamento para que se realize licitação nenhuma”.
Rodrigo de Freitas Almeida, estudante de Direito e representante do DCE no CMT, cita a resposta da prefeitura ao Ministério Público – que investiga desde agosto a renovação sem licitação. No documento, segundo o estudante, não é mencionada nenhuma intenção de realizar, como passo final do Plano Diretor, uma licitação do sistema de transporte coletivo. Nesse momento, o Secretário pega o documento e diz “tu leste isso daqui?”. Rodrigo: “Sim, claro. Não diz nada sobre licitação”. Secretário, hesitando: “Bom, pode ser que não diga…”
Medeiros ainda deixou claro que não era sua a responsabilidade: “Quem decide a questão da licitação do transporte público é o prefeito. Eu tenho que dar condições ao prefeito de decidir sobre isso. Eu não sou o prefeito”.
Porém, em um parecer escrito pelo professor da Universidade Federal de Santa Maria Ricardo Rondinel, relator da UFSM no caso de aumento das passagens ainda em 2006, seria preciso salientar que, segundo o artigo 172 da Lei Orgânica do Município, está explícito que “o Executivo Municipal definirá, segundo os critérios do Plano Diretor e mediante consulta ao Conselho Municipal, o percurso, a frequência e a tarifa das linhas de transporte coletivo”.
Esse artigo da Lei Orgânica vem sendo ignorado, pois, se não há Plano Diretor, segundo a lei, não há condições de calcular o percurso, a frequência nem a tarifa das linhas de ônibus. Esta é outra reivindicação dos grupos contrários ao aumento. Para eles, enquanto a cidade de Santa Maria não usufruir de um Plano Diretor, as passagens não podem sofrer reajustes.
Na mesma reunião com os estudantes, o secretário afirmou que a prefeitura não tem todos os dados públicos sobre transporte coletivo da cidade, como trajeto das linhas, número de passageiros, quantidade de gratuidades nem reforma ou troca dos carros em serviço. Esses dados são apresentados para a prefeitura pelas próprias empresas interessadas no aumento da passagem. O secretário colocou também que estudou as planilhas de custo por uma hora, tempo insuficiente se comparado aos dois anos que a gestão Cezar Schirmer teve para confeccionar um Plano Diretor.
Outro questionamento dos estudantes e movimentos sociais é o porquê da rapidez com que os empresários do transporte coletivo e a prefeitura tentaram votar o aumento da passagem. Segundo o estudante de Direito da Centro Universitário Franciscano (UNIFRA) Tiago Aires, “as empresas fizeram o pedido numa segunda-feira, entre um domingo e um feriado. Na quarta, pela manhã, o secretário já havia feito os cálculos básicos e queria apresentar a proposta da prefeitura. A população não ficaria sabendo de nada não fossem algumas pessoas terem ido presenciar a reunião. Parece também que a sociedade fica numa apatia, mas é por desinformação na verdade. Isso fica evidente quando a população não sabe como agir quando o assunto é público”.
Aires fez parte do grupo que apresentou uma contrapartida na reunião do CMT na quarta-feira (13). Naquele dia, a reunião dos conselheiros estipulou o valor de R$2,31 para a passagem, aumentando em 15% sobre o valor atual. Porém, a tarifa proposta só entraria em vigor se fosse aprovada pelo Conselho na segunda-feira (18) – o que de fato ocorreu – e se tivesse o aval do prefeito, que tem liberdade total para fixar o preço da tarifa. Como já era esperado, o prefeito votou um valor abaixo, fixando a tarifa em R$2,20, “desviando novamente a pauta para o Sistema Integrado Municipal”, segundo Aires, “que caminha a passos lentos”.
Cezar Schirmer ateve a tarifa em R$2,20 justificando que as concessionárias responsáveis pelo transporte coletivo da cidade ainda não implantaram inteiramente o Sistema de Integração Municipal, que tem como exigências a passagem integrada, a bilhetagem eletrônica, a diminuição dos custos operacionais do sistema (o que, segundo a ATU, possibilitaria reajustes menores), 55 novos ônibus, menor emissão de gases poluentes e mais transparência nas informações sobre passageiros (possibilitando controle mais rígido da prefeitura), entre outros. Fica estabelecido, no entanto, que se as exigências do prefeito forem acatadas pelas empresas, um novo aumento nas passagens deve ser estudado – que seria o terceiro do governo Schirmer.
Tiago Aires explica que a situação conflituosa dos transportes em Santa Maria é antiga. “É importante entendermos por que se criou esse Conselho Municipal de Transporte. Ele foi criado durante o governo [José] Farret [PP] justamente para afastar o prejuízo real do prefeito em aumentar a passagem. O que podemos notar no Conselho é que basta se unirem as representações da prefeitura com os empresários e já formam uma maioria de votos”, diz Aires. Durante a gestão Farret foi implantada uma lei criando o Conselho e indicando quais representações teriam opção de voto. Essas representações são as mesmas até hoje e Farret é atualmente vice-prefeito de Cezar Schirmer .
Em 2006, quando a prefeitura do governo Valdeci Oliveira (PT) apresentou um pedido de aumento de passagem para R$1,82, o professor Ricardo Rondinel apontou que o decreto assinado pelo então prefeito datava de 2 de agosto de 2006, mas só às vésperas do encaminhamento do novo valor da Tarifa de Transporte Coletivo, 43 dias depois, é que se tornou de conhecimento público, em 13 de setembro do mesmo ano.
O professor Rondinel, na época representante da UFSM no CMT, escreveu um parecer que dizia: “se este Decreto tivesse sido dado a conhecer à comunidade local e, ao menos, ao Conselho Municipal dos Transportes, órgão que de acordo com a Lei Orgânica do Município forma parte da estrutura da Administração municipal, muitas dúvidas e esclarecimentos já poderiam ter sido encaminhados”.
Os dados da época constam que a tarifa de R$1,60 sofreria um reajuste de 13,75%, passando a custar R$1,82. Entre janeiro de 2005 e agosto de 2006, período no qual não houve reajuste da tarifa, a inflação no país foi de 6,26% de acordo com o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), calculado pelo IBGE.
O professor Rondinel foi extremamente contestado por ter afirmado também que no período de junho de 2005 a junho de 2006 a variação no INPC era de 2,79%, enquanto o reajuste nominal de salários do pessoal de operação do transporte coletivo de Santa Maria, valor que conta no aumento da passagem, era de 24%. “A maioria dos trabalhadores brasileiros mal vem repondo as perdas inflacionárias desde 1995, […]; entretanto, a generosidade dos Empresários do Transporte Coletivo de Santa Maria tem sido de tal tamanho que os reajustes salariais tem extrapolado o limite de suporte dos usuários do Transporte Coletivo, que não veem seus salários aumentar no mesmo ritmo”. O professor afirmava que os salários dos empregados das empresas de transporte em Santa Maria, que somam ao valor da tarifa, aumentavam; porém, o usuário não conseguia acompanhar o aumento repassado para o valor da passagem.
Sobre o preço dos pneus apresentados pelas empresas, Ricardo Rondinel expunha que o cálculo tarifário da época levava em conta valores de apenas dois fornecedores, que apresentavam diferença de preço de 18%. Rondinel reivindicava que o empresário comprasse no revendedor mais barato e que poderia haver desconto, já que os valores dos pneus apresentados eram unitários.
A prefeitura havia fixado os coeficientes de lubrificantes no Decreto 177 de 2 de agosto de 2006. Nesse cálculo, foram apresentadas informações de que, em Santa Maria, o valor seria estabelecido pelo coeficiente de 0,0414 l/km (ou 24 km/l). No entanto, o que soou inusitado, foi o cálculo da Secretaria Municipal dos Transportes de Porto Alegre junto com a Empresa Pública de Transporte e Circulação que, segundo uma pesquisa própria, chegou a um coeficiente de 0,00248 l/km (ou 403 km/l), incluindo todos os óleos e lubrificantes. Ou seja, o coeficiente usado em Santa Maria para calcular os gastos com lubrificantes era 17 vezes maior que os valores de Porto Alegre.
Uma das contestações atuais e que, na época, não entraram no cálculo do professor Rodinel são os lucros com o busdoor (propaganda veiculada na traseira dos ônibus). Quando as empresas repassaram para a prefeitura seus gastos e seus lucros com o valor da passagem atual, não estavam inclusos os ganhos à parte com as propagandas nos veículos.
Outro dado coflituoso é a meia passagem estudantil. Os empresários argumentam que a meia passagem prejudicaria as empresas por estas arcarem com os custos. No entanto, os manifestantes argumentam que esse custo seria repassado à prefeitura e, assim, não representariam ônus aos transportadores.
Até hoje, a maior parte dos valores referentes ao transporte coletivo de Santa Maria são apresentados pelas próprias empresas. A prefeitura, por sua vez, também não cumpre o seu papel de fiscalizar os números.
Na última segunda-feira, dia 18, a reunião dos conselheiros foi realocada duas vezes. Enquanto os estudantes esperavam pelo início da reunião no local previamente marcado, os conselheiros subiam para uma sala no 5º andar da prefeitura. Como os estudantes conseguiram mais uma vez impedir que a reunião acontecesse a portas fechadas, o Conselho foi novamente remarcado para a sede do SEST/SENAT no mesmo dia.
Os estudantes continuaram a moblização e caminharam por vias importantes da cidade até o novo local do Conselho, no bairro Nossa Senhora de Lourdes.
Esperando pelos manifestantes, um portão fechado e 40 policiais escoltando 15 conselheiros. Impedidos de entrar no Conselho, os manifestantes aguardavam pelo resultado do lado de fora. Representando os estudantes, apenas os membros do DCE, um representante de diretório acadêmico e dois estudantes de jornalismo da UFSM. No local, ao redor dos conselheiros, trabalhadores de transporte. Durante a sessão, dos 15 conselheiros, 5 votaram contra o aumento para R$2,30 e 10, a favor. Os cinco representantes que votaram contra o aumento representavam a UFSM, DCE, OAB, USE e o Sindicato dos Trabalhadores Urbanos. A favor da proposta do aumento votaram os representantes da CACISM, da ATU, da Prefeitura Municipal e seus conselheiros, do Sindicato dos Contadores, empresas inter-distritais de transporte coletivo, Sitracover, SindiTáxi e Sindicato dos Trabalhadores Rurais. A decisão saiu cerca de duas horas após o início da sessão. Logo após a notícia do aumento, os estudantes organizaram novos atos [leia mais sobre o relato do Conselho no texto “Contra o Aumento da Passagem“].
Na manhã de quarta-feira, menos de 48 horas depois da decisão do Conselho, o prefeito Schirmer sancionou o valor para R$2,20. No jornal A Razão de sexta-feira Schirmer argumentou a favor do aumento: “A passagem de Santa Maria ainda é a mais barata do Estado”.
O maior ato organizado pelos estudantes aconteceu na manhã de quinta-feira e reuniu aproximadamente 500 pessoas no Calçadão Salvador Isaia e na Praça Saldanha Marinho, região central da cidade. Próximo às 11h da manhã, representantes de movimentos sociais, estudantes e população em geral caminharam em direção à prefeitura para protestar contra o aumento. Lá, os estudantes bloquearam a rua Venâncio Aires e a saída do estacionamento da prefeitura como forma de pressionar o prefeito a recebê-los. A bandeira do município desceu o mastro dando lugar à alaranjada do Diretório Central dos Estudantes. O motivo da reunião entre o poder público e o movimento popular era de marcar uma audiência pública aberta na Câmara dos Vereadores.
Má vontade e mãos amarradas – assim esperavam os representantes públicos de dentro de suas salas com ar condicionado e medo de aparecer à janela. Onde estavam os trabalhadores? Trabalhando. Mantendo a cidade, exercendo o esforço. O senhor do posto de gasolina, a atendente da padaria, a avó transeunte, o casal do bar. Todos agradecendo aos estudantes pelo ato, pedindo que se continue a gritar. “Esse prefeito não dá mais”.
Em apenas dois momentos de tensão manifestantes e policiais se confrontaram. Alguns manifestantes foram atingidos por spray de pimenta logo na chegada. Em um segundo momento, o Tenente Coronel Vargas, que viria a conciliar as partes conflituosas horas depois, empurrou um jovem contra o chão.
Depois de nove horas cansativas de espera, a manifestação não recuava. Sentados ao sol, bradando palavras de ordem, dividindo-se em tarefas, alimentando-se em conjunto, o movimento enfim recebeu uma carta, escrita à mão pelo prefeito Cezar Schirmer. Na carta, o prefeito se comprometia em se reunir com a população em data estabelecida entre manifestantes e a Câmara dos Vereadores. No documento, Schirmer argumentava que o seu comprometimento era fruto da preocupação com o “direito de ir e vir” da população – por considerar danoso o bloqueio na rua Venâncio Aires, em frente à prefeitura. Às 18h30min, os manifestantes souberam que a prefeitura já acionava judicialmente a reabertura da rua, que deveria ser realizada pela Brigada Militar. Ao saber da decisão, os manifestantes sentaram no asfalto. Dessa maneira, o Tenente Coronel Vargas, que comandava o Batalhão de Operações Especiais no local, preferiu argumentar com o prefeito contra a ação e conciliou o conflito para uma decisão pacífica – no caso, o compromisso do prefeito em receber a população em Audiência Pública.
Até o fechamento desta edição, a Câmara dos Vereadores comprometeu-se em realizar uma Audiência Pública agendada para às 19 horas da segunda-feira, dia 25. O prefeito, ao contrário do definido na própria carta assinada por ele, já deixou claro que não comparecerá na data. Argumentando que essas manifestações teriam caráter eleitoreiro, Schirmer disse que só poderá se reunir com os manifestantes e com a população depois do dia 31 de outubro, mais de uma semana após a nova tarifa entrar em vigor.
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Qunita-feira, 21 de outubro, 19 horas. A Venâncio Aires, Praça Saldanha Marinho e o Calçadão entram em festa. Contando com a palavra do prefeito, descumprida horas depois, manifestantes gritavam extasiados ao ritmo de galões, garrafas e latas de tinta improvisados como tambores. A vitória, mesmo que momentânea, estava nos rostos daqueles que cederam horas de seu tempo para se manifestar contra um aumento até agora mal explicado. Os cantos, antes tortos e roucos, agora ganhavam tons de carnaval. A manifestação tinha dado resultado.
Não por muito tempo. Só o necessário para recobrar o corpo para continuar lutando.
NEGOCIANDO O DIREITO DE IR E VIR, pelo viés da Redação
As fotografias são de autoria da Redação e da colaboradora Nathália Schneider
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