27 horas ininterruptas de teatro
Na Antiguidade,
o Teatro Grego surgiu
no culto ao deus Dionísio,
equivalente ao romano Baco.
– e o abajur?
– tá lá em cima, acharam melhor levar lá.
– ah, tá. E a cadeira, foi pega?
– sim. Ela e a maquiag… ah, a maquiagem.
– eu pego.
As janelas abertas e o interior do ônibus refrescando, aquecendo os ânimos para algumas vinte e poucas horas de olhos sob a luz. A chegada em Vale do Sol, cidade à duas horas de Santa Maria, para o festival das “27 horas ininterruptas de teatro” acontece em torno das seis horas da tarde de 26 de março, com a cidade escondendo-se no anoitecer.
Depois das doze badaladas
[meia-noite do dia 26 para 27]
Sob a luz vermelha do vinho tinto, um tributo a Baco na virada de 26 para 27 de março, dia internacional do teatro. Cada um lentamente se aproxime do centro do círculo, passos lentos, não evitem o choque. Ao tocarem-se sintam o corpo do outro, a respiração, o cheiro. Não evitem, sintam. Sintam. Peguem um copo e degustem o vinho e as uvas.
As sensações individuais em coletivo seguiram com duas danças medievais em um e dois círculos fechados por mãos dadas projetando a sombra do movimento e ecoando o ritmo da música e pés batendo. A peça “D-kréptA”, recém havia sido encenada em trajes rotos, olheiras profundas e vozes distorcidas em um cenário criado pela movimentação dos personagens, uma delas tão incisiva que fez a atriz principal, Isis Peres distender-se logo no início, embora ela não tenha deixado transparecer ao público.
Contrastando com “D-KréptA”, a peça “B612”, do grupo GANJU, de Blumenau, foi apresentada em uma sala de aula. Para que todos entrassem no espaço bastante pequeno e quente, foram necessários alguns contorcionismos, já que o cenário incluía telão com projetor e espaço em quase todo o centro do ambiente para a movimentação dos personagens. A contemporaneidade e os aspectos sinestésicos regiam a peça. Um homem com viseiras e terno calculava em uma mesa com uma lâmpada, no telão uma menina dava piruetas e de repente a menina saltava dando piruetas em nossa frente. A menina é alegre, delicada com trejeitos de Amélie Poulain. Quando se torna uma moça, uma rosa se desfolha no telão e ela vive um pequeno e estranho romance com aquele homem. Mas, como o mundo está mais para a frieza, ela acaba triste e sozinha e nós, espectadores, cobertos de pétalas vermelhas.
Eram aproximadamente 4 horas da madrugada e só de evento umas doze horas. Um dos atores iria para a sua terceira apresentação, outra se desenrolava de seu cobertor gripado para viver uma prostituta desequilibrada e outra ainda procurava a sua voz. Com o cenário montado e os personagens prontos iniciava-se o aquecimento em um palco nivelado às cadeiras dos espectadores, que dali acompanharam todo o pular e se soltar e incorporar dos atores da última peça da madrugada: “O Abajur Lilás”. As prostitutas, o cafetão, o carrasco transitavam e realmente cansados faziam seus personagens exaustos da vida medíocre e suja que levavam.
Enquanto alguns roncavam esticados em colchonetes na pista de boliche, os clowns faziam a recepção de aproximadamente dez ônibus de crianças. O clima do amanhecer era de algodão doce e carrinho de pipoca. Duas peças infantis foram apresentadas, entre elas uma de bonecos, “O Velho Lobo do Mar”, apresentado por Willian Sieverdt, do grupo Trip Teatro de Animação, de Rio do Sul (SC). O riso, os gritos e as canções animadas davam espaço para a libertação das crianças e os montes de pipoca arremessados nos simpáticos clowns.
Durante a tarde aconteciam as oficinas. Os interessados em “clownices” seguiram para tal oficina (de clowns) e através de sons e movimentos gelatinosos do corpo e da face mergulharam em música francesa para encontrar o seu “eu” esquisito que o clown põe a mostra. No campo, com equilíbrio e concentração acontecia a oficina de artes circenses, então bolinhas saltitavam e corpos tentavam se manter na corda bamba. Lá naquela escola onde aconteceu a peça “B612”, outra oficina ministrada pelo elenco dessa apresentação trabalhou com sinestesia e tecnologia, deixando-se levar pela música e mordidas em cebola.
Mais tarde, com o palco na mesma situação que na peça “O Abajur Lilás”, ou seja, nivelado aos espectadores, assistia-se ao monólogo “Os Malefícios do Tabaco”, onde um velhinho muito simpático e contraditório (Gustavo Scherer) falava de toda a sua vida particular e de tudo que o levava a estar ali, só não falava do malefício do tabaco. Vinte minutos de comicidade passados, fomos levados a outros risos.
A peça com bonecos “O Incrível Ladrão de Calcinhas” traz o clima de um filme noir. Um detetive, junto com sua doce e simpática secretária e dois policiais atrapalhados, quer encontrar quem rouba a calcinha da Srta. Velda, uma femme fatale que canta em um bar, e chega a dois suspeitos: um siciliano (que assiste à cantora) e um latino (que trabalha no local). Willian Sieverdt, o mesmo da peça infantil da manhã, ministra todos esses personagens e a admiração se torna obrigatória. As vozes mudando, a sonoplastia, os cenários incrivelmente adaptados e variados.
Um fim de espetáculos genial.
Ah, e para colocar a cereja no bolo, uma esquete do mesmo moço que protagonizou a “B612”, fazendo um missionário de sotaque que passa dos limites religiosos com uma freira. Graças a Deus!
[fim do dia 27]
“O Abajur Lilás” é uma peça do dramaturgo brasileiro Plínio Marcos e foi uma das montagens do grupo “Teatro, Por que não?”, da UFSM, formado por Aline Ribeiro, André Galarça, Cauã Kubaski, Deivid Machado Gomes, Felipe Martinez, Juliet Castaldello, Luiza de Rossi e Rafaela Costa.
O natal, o fim da partida e as lacunas
[anoitecer do dia 26]
Se bem que lá o Natal veio primeiro, bem antes do aspecto religioso da esquete final. Depois de aproximadamente duas horas em Vale do Sol, a primeira peça de Santa Maria foi apresentada: “Então é Natal”. Sendo uma comédia de curta duração, a família matriarcal sustentou bons risos.
O palco trêmulo era estruturado por mesas e coberto com lona preta dentro de um ginásio; com a arquibancada em forma de meia-lua, quase se tinha a impressão de estar no circo, ainda mais quando a diretora de “D-KréptA”, Sara Abrahão, optou em apresentá-la no meio da quadra, dispensando o palco, tal como a posterior “O Abajur Lilás”.
Fora do ginásio estava um campo verde cercado e cheio de quero-queros, algumas árvores e bancos, o local das refeições, os ônibus estacionados e mais longe a escola da peça “B612”. Por esse ambiente as pessoas transitavam, conversavam. O morro surgiu de verdade ao amanhecer, com a neblina se desfazendo e mostrando que a geografia se assemelhava à de Santa Maria.
Um grupo de Candelária não apresentou sua peça por incompatibilidade de horário, já que no momento alguns critérios do cronograma eram modificados, fato lamentado. Porém, esse mesmo grupo de Candelária foi o que apresentara uma das peças infantis na manhã de sábado.
O festival foi acompanhado por alguns dos moradores da cidade que o sediava, no entanto, os alunos de escola foram o maior público. Logo depois de “Então é Natal”, assistiram à “Fim de Partida”, uma peça densa e séria, recebida com estranheza e às pressas. Minutos antes do encerramento, o som das cadeiras esvaziando deixou os artistas e os outros espectadores tensos.
Por mais que “Fim de Partida” fosse puro niilismo e desgostos em seus personagens deprimidos e aleijados, ela não era propriamente o fim de partida, era justamente o contrário daquilo que ela lamentava. Era o fim de partida e o início das jogadas cênicas.
[meia-noite do dia 26 para 27]
A escuridão do retorno foi esmorecendo os corpos, um por um e uma por uma as vozes da cantoria promovida pelas comemorações a la Baco silenciaram. E o bojo do abajur? Estava na cabeça de algum ébrio… de sono.
[madrugada do dia 28]
BACO NO VALE DO SOL, pelo viés de Caren Rhoden e Felipe Severo
carenrhoden@revistaovies.com
felipesevero@revistaovies.com
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Muito maneira a reportagem Felipe, sua mãe me entregou o cartão.
Valeu a pena a visita ao site, parabéns ;D