Se vivo fosse, Miles Davis faria 84 anos no fim de maio de 2010. Miles já se foi, mas seu legado continuará influenciando artistas por muito mais que 84 anos.
Miles Davis sempre foi uma exceção. Quando criança não era pobre, passou sua infância num bairro branco em East St. Louis, no estado de Illinois, Estados Unidos. Filho de um dentista e de uma pianista, Miles Davis não enfrentou metade das dificuldades apresentadas aos seus contemporâneos, como Louis Armstrong (que viveu longe de seu pai e conviveu com a prostituição de sua mãe) na América segregada do início do século passado. Sua família, no entanto, não era tão bem estruturada. Seus pais brigavam muito e foi graças a uma provocação de seu pai que Davis ganhou seu primeiro trompete – sua mãe detestava o som que o instrumento emitia.
Já sua característica mais destacada, como trompetista, veio com as aulas que teve com Elwood Buchanan. Utilizando uma régua, Elwood dava tapas nos dedos do aluno Davis a cada vibrato – técnica de oscilação de uma nota utilizando o diafragma do instrumento. Elwood dizia que Davis já tremeria bastante quando estivesse velho, não precisava vibrar as notas como era de costume no jazz da época.
Aos 18 anos Miles Davis pôde sentir pela primeira vez a intensidade do jazz. Charlie Parker, o Bird, e Dizzy Gillespie são considerados os pais do bebop, gênero saído do jazz, e que dava aos solistas maior liberdade de experimentação e improvisação. O estilo ganhava ares de arte, e as bandas passaram a desencorajar a dança na plateia. O jazz virava música para ser apreciada. Miles, assim como boa parte dos jovens jazzistas americanos, via a dupla de pioneiros com grande idolatria. Conhecer os seus músicos preferidos vira realidade em 1944, quando a banda formada pelos dois e mais três músicos vai tocar em St. Louis.
A sorte bate a porta de Miles quando, por causa de uma doença que acomete Buddy Anderson, a banda dos ídolos sai a procura de um músico local para substituir o terceiro trompetista. E é assim que Miles entra no grupo dos ídolos. Ao fim da turnê pela cidade Miles não pode continuar ao lado do grupo, pois sua mãe o proíbe. Precisava terminar os estudos.
E assim Miles Davis fez. Em pouco tempo saía da high school, e no mesmo ano, 1944, já embarcava para Nova Iorque com a missão de conseguir uma bolsa na Juilliard School. Chegando lá, não cumpre aquilo que dizia aos pais, mas se envereda no mundo do jazz.
Com o passar do tempo, Miles fica como praticamente membro do grupo liderado por Charlie Bird Parker. Aí começa seu real contato com as drogas, que atormentariam boa parte de sua vida. Primeiro foi a cocaína, sobre ela Davis declarou anos depois: “Corria a ideia de que o uso de cocaína podia fazer a gente tocar tão bem quanto Bird”. Anos mais tarde Miles passaria maus bocados graças à outra droga, a heroína.
Depois de alguns anos no grupo de Bird, Miles Davis encontrou outro grupo para tocar. Em um noneto duas coisas fugiam do padrão bebop. Primeiro, uma formação maior que a comum, com nove músicos. Segundo, a presença de uma trompa e de uma tuba, instrumentos não tão comuns no bebop naquela época. O grupo conseguiu um contrato com a Capitol Records e a partir daí viria a primeira grande revolução de Miles Davis.
No álbum Birth of the Cool , como o próprio nome diz, nascia o cool jazz. Com os arranjos de Gil Evans, que acompanharia Davis em diversas obras, o grupo se reuniu no Royal Roost Club para algumas apresentações. Nem dinheiro ou reconhecimento vieram com elas, e o grupo logo se dispersou. Tempos depois, Miles Davis e mais três músicos da primeira formação (Bill Barber, Lee Konitz e Gerry Mulligan) executaram as mesmas obras nos estúdios da Capitol, e aí sim nascia o cool. Birth of the Cool se tornou o ponto inicial da primeira revolução musical capitaneada por Miles Davis, além de ser um dos discos de jazz mais vendidos da história.
Se Miles não era tão inventivo ou rápido quanto Charlie Parker ou Dizzy Gillespie no som ininterrupto e original do bebop, com o cool jazz compassava as notas e alterava o pioneirismo de Birdpara se adequar ao seu som mais lento e seco.
Depois do álbum lançado Miles vai à Europa, onde se sente revigorado pela aceitação francesa ao cool jazz. Lá, o novo ritmo não era tão criticado como nos Estados Unidos. No ano seguinte, nos bares e ruas de Nova Iorque Miles se encontra pela primeira vez com a heroína. O vício deixa o músico fora de si por algum tempo.
É só em 1954 que Miles reencontra o que sabe. Em apenas dois dias quatro discos são gravados e Miles se vê livre da sua gravadora da época, a Prestige. Depois disso, é durante o Newport Jazz Festival, em 1955, que Miles Davis renasce para a crítica e o público, com o disco de standards (regravações, releituras) ‘Round About Midnight e a presença ilustre de Thelonius Monk, outro grande ídolo do jazz.
É com esse disco que Miles inaugura seu casamento com a gravadora Columbia e junta seu primeiro quinteto, chamado assim para diferenciá-lo do outro quinteto de Davis, que estava por vir. O primeiro quinteto era formado, além de Miles Davis, por músicos que depois ficariam famosos no jazz: John Coltrane, saxofone tenor; Red Garland, piano; Paul Chambers, contrabaixo; e Philly Joe Jones, bateria.
Com diversos trabalhos subsequentes Miles aprimora a técnica, principalmente com o uso da surdina, uma ferramenta usada na ponta do trompete, deixando o som mais brando e sóbrio. Outras grandes obras saíam com a assinatura de Davis, mas seu quinteto, depois reformado em um sexteto com a presença do saxofonista Julian Cannonball Adderley, nunca foi estável. E aos poucos vai acabando.
A heroína atingia boa parte do grupo, num movimento parecido com que Charlie Parker inspirava com a cocaína. Enquanto isso Miles produzia a trilha sonora do filme Ascenseur pour l’échafaud, uma nouvelle vague francesa do diretor Louis Malle. E Milestones é a última obra importante do primeiro quinteto.
E é com Miles Ahead que Miles volta ao seu parceiro, que chamaria de “melhor amigo” tempos depois, Gil Evans. Com o arranjador produz algumas de suas obras mais importantes. Num arranjo da peça de George Gershwin Porgy and Bess sai o disco de mesmo nome. O disco é produzido com uma big band, formato bem conhecido do jazz, com um grande número de músicos. E depois veio aquilo que é considerado o maior álbum de Miles Davis, superando Birth of the Cool, aquela que seria a segunda revolução do músico, Kind of Blue.
Em matéria sobre os 50 anos do disco, em fevereiro de 2009, a revista Bravo chega a abusar das comparações. O “dream team do jazz” como é chamado, poderia ser comparado à uma formação de rock nos seguintes moldes: Mick Jagger nos vocais, Jimi Hendrix e Eric Clapton nas guitarras, Neil Peart (do Rush) na bateria, Ray Manzarek (do The Doors) nos teclados e Sting no contrabaixo. Todos eles tocando versões da dupla Lennon/McCartney.
Só isso já é suficiente para mensurar o tamanho da obra. Com os músicos John Coltrane (saxofone), Julian “Cannonball” Adderley (saxofone alto), Wynton Kelly e Bill Evans (piano), Paul Chambers (contrabaixo), Jimmy Cobb (bateria) e, claro, Miles Davis no trompete, a obra “funda” o chamado jazz modal, que dá mais liberdade aos músicos desprendendo-os da progressão de acordes, usando combinações harmônicas mais livres que a tonal, mais tradicional. O pianista de jazz Marc Sabatella, no livro Uma Introdução à Improvisação no Jazz cita as diferenças entre a improvisação no bebop e a improvisação modal: “os improvisadores do bebop podem enfatizar as extensões dos acordes em seus solos, enquanto os improvisadores modais tendem a enfatizar as notas básicas dos acordes. Os músicos do bebop são geralmente mais inclinados a preencher todos os espaços com notas para definir completamente a harmonia, enquanto os músicos modais são mais propensos a usar o espaço rítmico como um elemento estruturador melódico”.
Kind of Blue se tornaria o disco mais vendido da história do jazz, e entraria em diversas listas dos melhores discos de todos os tempos, como o da revista TIME e da revista Rolling Stones.
Com Gil Evans, Miles produziria outros discos importantes, como Sketches of Spain, que traz músicos contemporâneos de origem hispânica, numa mistura com o jazz modal e a música clássica. E até mesmo um disco, lançado sem autorização dos dois, de bossa-nova, Quiet Nights, com versões para Corcovado e Aos Pés da Cruz, entre outras.
Miles não perdia tempo. Se alguns músicos por vezes pararam num tipo de música e pouco foram inventivos com o passar dos anos, Miles Davis partia para outras áreas sempre que podia.
Depois de álbuns com música hispânica e latina, Miles juntou aquilo que ficou conhecido como segundo grande quinteto. Com eles Miles Davis gravaria diversos discos, como Miles Smiles, Nefertiti e Files of Kilimanjaro, se aproximando de uma improvisação ainda mais livre, o que foi chamado freebop, ou time no changes, com um som que transgredia ainda mais o bebop. As músicas a certa altura se tornavam uma só, com cada uma juntando-se à outra, sem parar. Esse modo fluido seria usado por Miles até 1975, quando ele se retira da música por algum tempo. Nos últimos discos dessa fase já começam a entrar baixos e pianos elétricos e até guitarras no som de Miles, um prenúncio daquilo que ainda viria, a terceira revolução de Miles Davis, Bitches Brew, de 1969.
Miles tinha um temperamento forte, e não gostava do contato com fãs ou de conversas desnecessárias. Não apresentava seu show ou contava piadas, apenas entrava e tocava aquilo que sabia. Kenneth Tynan, afamado crítico inglês, no perfil do músico incluído no livro A Vida como Performance descreve Miles Davis como uma pessoa “que odeia ser tocada, física e emocionalmente (…) detesta qualquer invasão de sua privacidade artística”. Miles tinha poucos amigos, além de sua família e parceiros de música. Assim foi por toda a vida.
Em Bitches Brew Miles Davis consegue novamente surpreender. Sua gravadora, a Columbia, quer atingir o público jovem fruto de Woodstock. E Miles também quer. Não por causa da gravadora, como declarou anos depois, mas porque aquilo era o que ele queria fazer. Kenneth Tynan narra uma cena em que Miles demonstra que não gosta de fazer favores a ninguém, não gosta de dever nada a quem quer que seja, comprovando a tese de que ele não faria nada pela gravadora de graça. “Há alguns anos não aceitou o convite para posar para Richard Avedon, não porque não gostasse do fotógrafo, mas porque a gravadora com que tinha contrato havia pedido especificamente que ele aceitasse. ‘Quando as pessoas pedem que você faça alguma coisa’, explicou ele para mim, ‘tudo que você pode dizer é não’. Disse isso como se fosse óbvio”
Na sua terceira revolução Miles Davis fugia novamente do padrão e criava o fusion, uma mistura do jazz com outros sons, influenciado principalmente por Jimi Hendrix, Sly & The Family Stone e James Brown. Os dois primeiros ele inclusive conhecia, por intermédio de sua esposa na época, a cantora Betty Mabry.
O fusion era uma mistura do jazz com outros gêneros como o rock, o rhythm & blues e a música eletrônica. Luis Fernando Veríssimo, em uma de suas crônicas organizadas no livro Banquete com os Deuses sintetiza essa fase da carreira de Miles usando uma das maiores paixões do músico, o boxe: “Um homem tem direito a fazer quantas revoluções por vida? Há quem diga que a última revolução de Miles Davis acabou em farsa, que o quase careca de túnica colorida fazendo fusão com a rapaziada não era nem uma sombra, era a múmia do antigo Miles reduzido a espasmos de som. Mas também há quem diga que o Miles da última fase era de uma coerência fulgurante, o velho boxeador na ponta dos pés e ainda fazendo história”.
Foram mais seis anos fazendo música, se aproximando do funk e tocando com músicos como Santana e Keith Jarrett, até que em 1975 Miles decide parar. Está cansado e doente, tem anemia, depressão, bursite e úlcera. São seis anos sem Miles. O cantor cai novamente no mundo da droga, passando a maior parte do tempo jogado no sofá de casa, saindo apenas para conseguir mais droga.
Em 1981 Miles volta aos palcos, mas sua “embocadura” não é a mesma e o músico passa a usar o wah-wah, um pedal capaz de selecionar a frequencia de som emitido, na maior parte do tempo, tornando o som mais escuro e sintético. Na sua última fase Miles vê o som que havia criado, o fusion, enveredar-se para o new wave. Em dez anos grava mais alguns discos, entre eles Tutu, considerado o Sketches of Spain moderno. Esse álbum lhe dá um Grammy em 1987. Em 1989 lança, em parceria com Quincy Troupe, sua autobiografia. Miles continua moderno, em um de seus discos, You’re Under Arrest, faz versões de Human Nature, de Michael Jackson e de Time After Time, de Cindi Lauper.
Sua autobiografia termina com positivismo: “Me sinto forte criativamente… Sinto que o melhor ainda está por vir”. Quem sabe o que Miles Davis seria capaz? O músico que nunca se acomodou durante a carreira, dá uma pista no álbum (lançado postumamente) Doo-Bop, com sons que se assemelhavam ao hip-hop.
Miles morreu aos 65 anos, no dia 28 de setembro de 1991, por complicações de uma pneumonia e insuficiência respiratória, agravados por um AVC (acidente vascular cerebral), em Santa Mônica, Califórnia.
Talvez a melhor definição sobre Miles Davis ainda seja a de Kenneth Tynan, mesmo décadas depois de seu perfil sobre o músico: “Os espanhóis tem uma palavra, duende… que denota a qualidade sem a qual um cantor de flamenco ou um toureiro não consegue alcançar o pico de sua carreira. A capacidade de transmitir uma emoção profundamente sentida para uma plateia de estranhos com um mínimo de estardalhaço e um máximo de moderação. É o atributo que diferencia Laurette Taylor de Lynn Fontanne, Ernest Hemingway de John O’Hara, Tennessee Williams de William Inge. Ele pode não ter outras coisas , mas Miles Davis tem duende.”
A VIDA E AS REVOLUÇÕES DE MILES DAVIS, pelo viés de João Victor Moura
joaovictormoura@revistaovies.com
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Muito válido divulgar o trabalho desse Mestre do Jazz. Kind of Blue é um marco na música, sem dúvida. Qualquer um que goste de música instrumental merece conhecer Miles Davis. Baita matéria!