Cacos da história de um castelo pelotense
Uma palma, duas palmas, três palmas – clap, clap clap!
– Oi, posso ajudar?
(Chuva)
– É acho que não vamos conseguir entrar hoje, mas amanhã…
(Amanhã)
– Ah, hoje sim tá um sol, né?
– Sim! Já vou buscar a chave.
A construção é da década de 1930. O estilo, fruto dos caprichos de um major aposentado, é moldado pelo feitio dos castelos baixa idade média (período que foi do século XI ao século XV). Antonio Duarte da Costa Vidal era o nome dele. Um gaúcho de muitas terras e posses voltando ao Rio Grande do Sul depois de lutar no nordeste baiano na Guerra de Canudos. Dizem que era poeta, político. Alguns falam que era bem mau. Outros dizem que a mulher dele ela meio louca… Mulher? Mulheres. Antonio teve três oficiais, pelo menos. Em 1897, depois de ajudar na esmagadora vitória do Exército contra Antonio Conselheiro e seguidores, o militar, àquelas alturas reformado, voltou ao sul. Por volta dos anos 1910 mandou construir um castelo em Itaqui e, aproximadamente duas décadas mais tarde, comprou terreno em Pelotas para erguer o segundo. É, tem um em Itaqui, já viu fotos? Parece que tá bem demolido também.
Em Pelotas, o castelo têm cinco pavimentos. No segundo, não há tanta pavimentação assim. No terceiro: vista para o quarto. É só olhar para cima. O de cima, por sua vez, tem apenas alguns metros de chão – o resto são armações de madeira e metal, que lutam contra mau tempo e pressão para segurar as paredes frágeis do local. O último “andar” é uma torre circular, destino final da alongada escada em caracol que se estica desde o andar mais baixo. Na torre, corre um vento forte – é que além da altura, as janelas são buracos e o telhado já não é uma proteção tão confiante.
Por ser homem muito viajado e não querer perder o hábito, Antonio acabou atrasando o processo de construção.
Eu não sei, tem tanta enrolação. Fui procurar as escrituras quando entrei com o processo de usucapião pra colocar o castelo no meu nome e achei três: uma de 1927, outra de 1928 e outra de 1931. Qual é a data da construção? Não sei… Como o terreno é grande, supõe-se que essas seriam as datas de aquisição das partes dele.
Demorou alguns anos para ver a ideia materializada. Pelos cálculos do historiador Mário Osório Magalhães, um dos únicos – senão o único – a descobrir fragmentos da história do castelo e de seu dono, em 1936 estava pronta a elegante silhueta cinza chumbo. Combinava com o clima gris sombrio e úmido da cidade, mas destoava das casas construídas na época. Ponto semelhante entre estas, no entanto, era a cópia da arquitetura dos ricos-países-modelos. Bolsos cheios nunca significaram criatividade. A cópia de modelos arquitetônicos europeus (para não falar dos próprios modelos de gestão política e econômica) sempre foi moda em Pelotas e em muitas outras cidades que viveram um apogeu emergente e, pena, não muito durável. Margarete, no entanto, nunca fez parte da elite.
Lá pelos anos 1980 conhecia a atual dona do castelo, que já não tinha nada a ver com a família Vidal. Olha, dizem que o filho do seu Vidal se matou dali, se jogou daquela torre (baixa frontal). E, por isso, abandonaram o castelo e nunca mais quiseram saber dele. Parece que não quiseram nem ouvir falar mais disso aqui. Ninguém da família quer saber. Nunca procuraram. Nessa época, várias portas e janelas originais foram vendidas, deixando esses buracos que a gente vê. Depois que a senhora proprietária foi-se embora, Margarete alugou a construção. Os anos foram passando, a família foi crescendo. Ninguém queria sair. Vinte anos se passaram desde esse tempo. Há dois que, depois de processos judiciais e muitas confusões, Margarete é a proprietária oficial do antigo castelo do Major. Mas eu ando tão esgotada… E não tenho dinheiro. Já tô em processo de negociação pra venda do castelo. Queria que alguém que tivesse dinheiro pudesse dar um jeito nisso.
Alguém com dinheiro e com consciência patrimonial, infelizmente, não é o comum. O município de Pelotas viveu um auge, chegando a se autodeterminar Princesa do Sul. Rendas, casarões, elite, pompa e narizes empinados. Frutas, compotas, charque, escravos, exploração. O fim do auge das charqueadas, exatamente em trágico declínio nos anos 1930, tira – assim como que com a mão – a importância ímpar da cidade. Porém, em queda não havia entrado o apetite por saliência da elite pelotense. E sabe-se lá, até hoje, o porquê das elites falidas insistirem em habitar patrimônios riquíssimos quando mal conseguem mantê-los em pé. É, eu também não tenho condições de manter isso. E fica difícil, porque entram aqui, por essas janelas sem janelas, e ficam fumando aí dentro.
Voltemos ao major. Antonio Duarte da Costa Vidal, então, encanta-se com a oportunidade de morar em um castelo e de, talvez, sentir-se o rei da cidade – vá lá, quem sabe apenas de sentir-se o rei da rua. Fato é que não se sabe muito da personalidade do senhor, mas que ele tinha gostos refinados e era apaixonado por artes e pela vida social. O que não é ruim, de jeito nenhum, mas parece que os círculos sociais é que fomentavam o gosto pela arte, e não o próprio valor e significados que ela possui.
Capricho ou não, hoje, na Rua XV de novembro com a esquina Conde de Porto Alegre, figura um castelo decadente.
“Olha, cuidado! Esse chão tá cedendo e só o que segura é a armação de ferro que tem em cada andar!”
Os muros são um misto de material antigo com tijolos laranja e reboco novo. Levemente inclinados, fazem os caminhantes optarem pelo meio da rua, e não pela calçada estreita em frente ao castelo. Eu limpo, a gente constrói uns muros. Agora estamos construindo um portão ali na frente. Aliás, a calçada é esburacada, cheia de água parada nos sulcos do concreto e tapada por folhas caídas da imensa seringueira cravada no pátio frontal da edificação – vale lembrar que em Pelotas poças são constantes: a cidade é a segunda mais úmida do mundo e quando não chove o tempo seguidamente insiste em fazer cara feia. As paredes parecem balançar quando assustadas por temporais. Nunca se veem reformas, apenas retalhamentos. Margarete lamenta não ter o dinheiro necessário para tais investimentos. Mas imagina. Meu sonho era ver essa torre de cima com as janelinhas bonitas, cheias de vidrinhos coloridos, que nem aqueles de antigamente. Mas…
Mas toca-se um tijolo aqui, outro ali, tapa-se (às vezes) os buracos, e não se consegue seguir o rastro da origem das rachaduras. Estranho é a Prefeitura não ter tombado ainda o prédio. De uns dez anos para cá, várias casas foram consideradas patrimônio cultural. Porém, casa tombada não significa ajuda de custo em obras, mas sim isenção total ou parcial de imposto predial e territorial urbano (e um punhado de caras obrigações com a manutenção de estruturas). O castelo não foi lembrado na lista de obras patrimoniais. Eu já pedi ajuda da Prefeitura. Mas… se me atenderam? Hum, é, vou pedir de novo. Tá certo que isso tá velho, mas deixar ficar pior eu não quero. Pinturas, reformas bem planejadas. Conservar o esbanjamento de outrora, no mínimo. Conservar o que foi história, ainda que a história não tenha sido tão feliz e contenta.
Os cômodos grandes e a estrutura pseudo-medieval atraem atenção. Nos três últimos meses de 2009, uma companhia de teatro alugou o prédio de Margarete. “Castelo do Terror” era o nome do espetáculo que encenavam nos minutos das noites de finais de semana. Pintaram os muros internos, escreveram frases típicas de cenas de terror. Sangue cenográfico, gritos, monstros, fantasias, pessoas espetadas (encenava-se cenas de vodu). A peça tinha como trama uma suposta família que teria sido dona do castelo. Um sucesso, ao que se sabe. Só esqueceram de levar o material utilizado e de limpar os cenários construídos. Olha, depredaram até a pedra das escadas. Tá vendo as janelas? Colocaram essas placas aqui pra tapar as coisas que quebraram. Quando entrei aqui até me assustei. Acho que eles só cumpriram o contrato com os patrocinadores e nem quiseram mais voltar aqui. Agora eu venho pouco a pouco limpar o que consigo.
Um pouco mais conservada, a pequena torre retangular em frente ao corpo principal do castelo parece estar sentada olhando para o nada. Uma velha resignada, sem soldados ou vigílias para ocupá-la. Apesar de estar situada na parte alta da cidade, em pleno centro, a frustrada torre parece nunca ter servido para a observação dos perigos vindos de longe. Nada de revoluções feudais – talvez somente o medo de assalto que a sociedade menos abonada, digamos, causava. Se tivesse rosto, na testa do quadrado de concreto estaria estampado um aviso de que ali vivia alguém importante, acima dos outros. Importante ou não, a trajetória de Antonio Vidal o jogou para longe de seu mimo. Tem muito mistério, muita história estranha. Muitas especulações e poucas certezas. Agora, espera-se que o possível novo dono não compre o castelo apenas com o intuito de construir algo mais rentável no grande terreno daquela esquina em pedaços.
O CASTELO EM FRAGMENTOS, pelo viés de Liana Coll
lianacoll@revistaovies.com
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Bem boa a matéria. Interessante o desenrolar e o leitor se sente acompanhando a descrição…
Liana!!!
Adorei, parabéns…
ahhhhhhhhh, não me é estranho este castelo, não sei se passei por ele…
mas pesquisando no google maps, é relativamente perto da Católica, não??
acho que darei uma passada por lá, quando estiver aí na “princesa do sul”…
beijos e mais uma vez, parabéns!!!
Liana, só agora parei pra ler a tua matéria… Puxa, MUITO boa (assim como as fotos também)!
Parabéns 🙂
Liana.. teus textos são construídos de forma que, independente do tamanho, prende o leitor do início ao fim.
A sensibilidade para transcrever os relatos da moradora e a forma que passas na escrita só poderia ser de alguém que morou por anos em Pelotas, o entendimento do pensamento local, etc, coisas que só a gente sabe.
É triste o mundo de ilusões que algumas “famílias tradicionais” pelotenses ainda vive, assim como é triste também o mundo de esperanças frustras dessa senhora que gostaria tanto de ver o castelo bonito como já foi e realmente não pode.
Parabéns, parabéns..
Assim como é triste também o mundo de esperanças frustradas desse povo que gostaria tanto de ver a cidade bonita como já foi e realmente não pode…
eu nasci nesta cidade linda, minha vó ainda mora nesta mesma rua! hoje moro em sapucaia, sou casada e tenho filhos, consegui mostrar a eles a beleza da cidade. nada faz eu esquecer os olhos do meu filho eric de 5 anos e da minha enteada quando chegaram perto !!!!!!! era medo, era alegria, tantas perguntas, tipo que princesa que morou ali se tinha bruxa!!!! nossa fiquei tonta, tantas perguntas! tiraram fotos. eu mesmo não tinha ideia da historia. só me lembro do medo de passar na frente quando a vó me mandava no mercadinho ali próximo . bjs, adorei tudo!!!!!!!!!!!!!