Sobre um menino de voz fraca e uma sociedade vendada
“Uma moeda, tio!”
A voz é fraca, o olhar não se arrisca em topar com o de quem ali entra. O corpo é frágil. O pé veste chinelos e uma sujeira de quem vai todos os dias de bicicleta ao centro com a missão de ajudar na renda da família. Pedalando, da vila do garoto até o local das pessoas com moedas, são 15 minutos. Caminhando, são quase 60. “Hoje eu vim a pé, o pneu da bicicleta furou… meu pai vai tentar me dar outra”. É necessário juntar as frases dele com atenção. Para escutá-lo mesmo, melhor sentar ao seu lado na escada; a fala não chega a mais de um metro de distância, e ele não está acostumado com pessoas que não desçam as escadas com pressa.
São sete degraus para chegar aos caixas eletrônicos do Banco do Brasil da Rua Coronel Niederauer com a esquina da Floriano Peixoto. Entrar, sacar o dinheiro, ver o saldo, tirar um extrato. Ali dentro, ações mecânicas. O intuito é pegar as notas e depois usá-las nas necessidades do dia-a-dia. Ou não nas necessidades… Colocar dinheiro na carteira é, muitas vezes, prenúncio de queixa: “Meu dinheiro sumiu, com o que será que gastei mesmo?”. E da lamúria às maquininhas que cospem uma notinha a mais que seja, é um instante, um caminho de traço decorado. Nesse entra e sai da agencia bancária, muitas vezes nem se ouve a voz do menino sentado ali pelo terceiro degrau. Um trocado, a moeda esquecida para o garoto esquecido. Apenas um trocado. Para ele, atenção é riqueza rara.
Ele tem nove anos e digamos que se chame Roger. Pois bem, Roger desde os sete tenta ajudar nas despesas de casa. Atualmente, ganha “19… às vezes 20 reais por dia”. No estojo que carrega consigo – e que é quase um apêndice do corpo – deposita parte do arroz, do feijão e da carne das refeições familiares. Outra parte vem do irmão mais velho que, na frente do Banco…
“Tá bem reparado, viu moça?”
…concorre com os parquímetros e investe no que os inimigos não têm: a fala. É cuidador de carros e do irmão pequeno, ainda que ele mesmo não tenha chegado na idade de poder legalmente ser responsável por alguém.
Ambos chegam juntos ao centro por volta das 17 horas e voltam para casa à meia noite, aproximadamente. O banco fecha às 22 horas e Roger vai para a rua esperar. A espera não é espera, pois ele ajuda o irmão, nessas duas últimas horas, a conseguir uns trocados a mais. Fechado o dia, pegam a bicicleta (ou a sola dos chinelos) e, entre as subidas e descidas da Santa Maria, seguem para casa.
“Quando eu chego em casa? Eu durmo…”
Roger chega às 8 horas no colégio e não falta – não quer e não gosta de se ausentar.
“Não tenho matéria preferida, eu gosto de todas. Não quero parar de estudar.”
Pela manhã, escola; o sonho de um ofício. Pela tarde, brincadeira de esconde-esconde com os amigos da vila Conceição; o jogo de uma criança em desenvolvimento. Pela noite, choque de realidade; a incorporação de uma rotina imposta pela desigualdade. Pelas falhas do nosso sistema é que Roger vai todo dia para o terceiro degrau daquela escada por onde circulam descaso, desprezo e, muito raramente, um olhar de atenção. Mesmo com chuva, o menino vai diariamente da casa ao centro.
“Ontem e sábado (21 e 22 de novembro) nós tomamo um banhão de chuva, mas olha! Achei um tênis no caminho.”
Roger olha orgulhoso para os pés calçados com uma botina que um dia foi bege clara. E, de pé coberto, na segunda-feira (23 de novembro), quando o sol já se pôs há algumas horas, o menino de aproximadamente um metro e meio caminha até a calçada para cuidar dos carros. Perto do horário de fechamento do banco, as pessoas vão ficando escassas. Afinal, elas têm que ir para a casa e descansar – ou, então, prolongar o seu happy happy hour. Além da falta de movimento, de uns dias para cá outras crianças apareceram nas escadas do banco com o mesmo intuito de Roger. Raiva por dividir as moedas? Não.
“Eles são meus amigos. Tá vendo aquele ali? Ele mora na minha vila e brinca comigo de tarde.”
Há algumas semanas, o Conselho Tutelar havia retirado todas as crianças do local. Baixado a poeira (e aumentado as dificuldades financeiras dentro de casa), Roger voltou para lá. Seguido dele, mais uma menina. E mais um menino. E depois outro. Pouco adianta a eficiência do Conselho na fiscalização, se políticas públicas para a melhoria da condição de vida das famílias não são implantadas.
Roger não pede moedas porque gosta. “O que eu mais gosto de fazer? Hum.. estudar.”. Ele está na quarta série e já ultrapassou o irmão, que parou exatamente nessa fase para ajudar o pai no trabalho de construção. Roger quer ser bombeiro. O porquê: “Por que sim!”. Talvez porque salvar vidas seja meta de quem tenta se socorrer diariamente. Enquanto se adere com afinco às campanhas do tipo é feio dar esmola! a causa da falta de oportunidades, que lança um contingente de indivíduos às ruas, cai no esquecimento. Feio é tapar os olhos para a exacerbada competição que exclui uma maioria de pessoas hostilizadas por esse modo de vida maquinal e frio. O centro, e o que nele pipoca, torna-se a opção das pessoas que moram em mundos à parte do tal mundo globalizado. Às campanhas: muito bem! De fato, algumas são eficientes. Porém, sozinhas não bastam. Coexistindo a elas, são urgentes medidas concretas de melhoria de vida a essa população. Do contrário, Roger e outras tantas crianças voltarão todo o dia para casa com um punhado de moedas, um estômago roncando e uma satisfação ainda pueril por ajudar nas contas da família
POR UM POUCO MAIS DE UM TROCADO, pelo viés de Liana Coll
lianacoll@revistaovies.com
os Extras da reportagem
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Mais um de muitas vítimas do descaso! Adorei a reportagem!
Através dos olhos da escritora podemos e devemos perceber que atras da mão pedindo tem uma vida cheia de esperança e anseios próprios…Parabéns pela sensibilidade!!!
Parabéns!
Ainda bem que ainda existem pessoas sensíveis!Fico feliz!
Sem esse exercício de sensibilidade, viver não faz sentido!
beijo
Maravilhoso!!!!Sinto muinto orgulho pelo que tu faz e pela tua sensibilidade
BJS
Por mais que vidas como esta sejam corriqueiras a nossos olhos, geralmente as vemos como simples paisagens. Reportagens que mostram a vida dos marginalizados “no osso” são essenciais para sensibilizar quem esquece os sentimentos em casa na correria do trabalho, ou, nega-se a acreditar que existem pessoas “vivendo” na completa miséria.
Seja por um caso ou por outro, importantíssimo trabajo – volto a ressaltar.
As informações obtidas foram bem trabalhadas. Assim, este breve esboço de uma vida pôde colorir um quadro de emoções em nós leitores.
No más.
Besos