Lobos ou cordeiros?
Todo mundo já está cansado de ver surgir em jornais, revistas e sites na internet, inúmeros protestos, comentários, balelas e discussões a respeito de brutalidades cometidas – não por um, mas por centenas de pessoas – e que no entendimento do público (que acompanha pela tela da TV ou do computador) trata-se de pura barbárie.
Embora sejam casos e causos que aparentam nortear o caos e a violência da sociedade contemporânea, esses fenômenos, que hoje chamamos de “barbárie”, são mais velhos que andar para trás.
A barbárie não é o fato em si: o suposto (friso o suposto, pois ainda não temos provas concretas) assassinato de um gato no campus da Universidade Federal de Santa Maria, o vestido rosa muito curto e tachado de “imoral” ou o rebaixamento do seu time para a segunda divisão do campeonato. Todos esses acontecimentos, independentemente de terem incitado a violência por si próprios (como o fato recente das brigas de torcidas no final do campeonato brasileiro), instiguem o repúdio (como o caso do gatinho) ou simplesmente provoquem inveja ou afetem o “moral” dos próximos, provocaram uma onda de revoltas e de protestos. O espaço é curto para analisarmos com precisão cada um desses casos, até porque a culpa e a responsabilidade pela violência insurgida depois de ocorridos têm diferentes níveis em cada um deles. Mas uma coisa é certíssima desde já: o bicho homem acua, e gosta de acuar, outro bicho homem. Mas por que ele faz isso? Ou melhor: o grupo pode modificar o comportamento de cada um?
O fenômeno é uma avalanche. Por que jovens universitários, ditos esclarecidos, bradaram palavras de ofensa à jovem-do-vestido-curto? Ou ameaçaram os rapazes da Zootecnia (UFSM)? Ou por que raios uma torcida inteira parece passar dos limites, agredindo torcedores, jogadores e policiais praticamente ao mesmo tempo?
Não estou aqui para fazer mais algum julgamento moral a respeito de qualquer um desses acontecimentos. Aliás, julgamentos são coisas que contribuem para essa incitação em massa da violência. Estamos aqui para entender por que e como um grupo pode fazer pessoas, dos mais diferentes segmentos sociais, optarem pela violência. Por que é mais fácil, na Era da Internet-Mãe, praticar a “violência” de demanda?
Diga-me para quem torces…
Você é um ser provisório. Esse jeitinho aí de ler, de pensar na vida, de acordar de manhã cedo ou de dormir até bem mais tarde, de ser bastante atencioso ou de ser facilmente dispersivo são características de certa posição que você assume com você mesmo. O seu comportamento é determinado por diversos fatores e entre eles estão: sociedade, família, você mesmo e o seu caráter. Pois bem. Mesmo que você possa jurar de pés juntos que o seu comportamento é assim e é assado, em qualquer situação, uma coisa é quase impossível que você mesmo negue: o grupo em que você está inserido, seja atemporalmente ou apenas durante os 90 minutos de um jogo de futebol, tem o poder imensurável de transformar a forma como você pode vir a se comportar.
Quer um exemplo mais concreto? Pois bem. A respeito das torcidas de futebol: aqueles grupos imensos de cores e de paixão, que podem gritar e torcer por minutos ininterruptos, podem ser analisados dentro de um contexto maior conhecido como psicologia das massas. A identidade de grupo, nação, raça ou profissão é tão ou mais forte do que a sua própria identidade pessoal – aquilo que faz de você uma pessoa única, de certa forma. Porém, pensemos mais em um conglomerado enorme de pessoas, tais pessoas com seus preceitos e com seus princípios individuais, partilhando de uma suposta mesma identidade. A repercussão disso é poderosíssima. A partir de determinadas situações, um individuo pode assumir a postura daquilo que Freud, o papai da psicanálise, denomina como instinto social. Querendo ou não, você e todos aqueles torcedores assumem um comportamento que não necessariamente é aquele que confere todos os dias. É uma forma de promover certos comportamentos peculiares em determinadas situações específicas. Quanto mais pessoas estiverem fazendo a mesma coisa, mais pessoas se juntarão e passarão a fazer a mesma coisa. Ao repetir certo comportamento ele vai ganhando mais força. Mas á claro que a situação não é apenas de “siga o mestre”: o torcedor quer que o seu time ganhe. São intenções coletivas também.
Os conhecidos hooligans, ou mesmo as torcidas organizadas do Brasil, são casos extremos de paixão e de sentimento de grupo que são capazes de alterar o comportamento de indivíduos, transformando-os em unidades de um grupo, de uma massa, em um contexto de extremos e de violência bem maior. É, de certa forma, uma descaracterização de um e uma formação de unidade de muitos. A máxima da guerra: a diferença entre nós e entre eles.
Bom, o que podemos afirmar com propriedade é: não é possível negar que cada uma daquelas pessoas, individualmente, traz uma carga própria de vivência social. A violência que acontece em estádios de futebol pode não ser consequência de uma demanda de um grupo que instiga essa violência unicamente. Sabemos que sujeitos violentos trazem da vida, por si próprios, cargas violentas. Mas o que se pode provar, empiricamente, é que o comportamento agrava, acentua diante de uma multidão de barbudos berrando “juiz filho da p!”. Ou seja, aquele cara que vai ao jogo pra meter a porrada leva consigo uma violência que é assegurada por um grupo. Aquele cara que começa na boa, só comendo um cachorro quente, e termina quebrando assento na cabeça do juiz pode muito bem estar seguindo as regras de um outro jogo – o do efeito demanda.
A Prisão é de Vocês
Recentemente, a revista Superinteressante do mês de dezembro trouxe em um dos segmentos da revista, uma explicação para o caso de Geyse Arruda, a moça que foi hostilizada por seus colegas de faculdade por usar um vestido curto para ir à aula (Ok, esse discurso você já conhece de cor e salteado). A revista trazia o caso e, mais importante do que isso, uma comparação e uma explicação por parte da psicologia social para o efeito demanda ocorrido na Universidade no mês passado, que consistia na motivação insurgida no grande grupo para a violência contra a jovem. Pois bem, dentre os fatos citados e que aqui serão ressaltados: o caso do experimento em Standorf, o pesquisador Philip Zimbardo e o tal do efeito demanda.
Philip Zimbardo é um psicólogo que realizou no campo da psicologia social experimentos caracterizados, digamos assim, por serem um tanto quanto incomuns. Apesar de extremamente radical, o experimento realizado por Zimbardo, conhecido como experimento de Standorf, foi importantíssimo para comprovar a sua teoria, ou nem que seja fomentar a dúvida, sobre o porquê de pessoas aparentemente pacíficas (ou de fato pacíficas) assumirem outro comportamento diante de questões como hierarquia de grupos. Como é possível desenvolver a violência através de grupos?
O experimento de Zimbardo consistia em recrutar jovens universitários, na década de 70, para interromperem temporariamente a sua rotina social e fazer parte de uma prisão – que era pra ser de mentirinha. Foram selecionados 24 estudantes, que receberiam em média quinze dólares por dia. Saiu no cara-ou-coroa: uma parte dos estudantes seriam os guardas; outra parte, os prisioneiros. Aí começaram as caracterizações pra valer: os presos passaram a ser conhecidos por números, usando roupas pesadas e que os padronizassem de certa forma. Zimbardo advertiu: a violência física não entrava no programa. O objetivo era proporcionar tédio, muito tédio, um determinado sentimento de submissão e a perda gradual da individualidade, com a consequente descaracterização de todos eles.
O experimento deveria durar duas semanas. Porém, os presos se rebelaram, sem que nenhum deles tivesse abandonado o projeto (apesar de não sofrerem nenhuma pressão direta para que permanecessem). Os policiais de mentira ficaram preocupados e perguntaram a Zimbardo o que deviam fazer. “A prisão é de vocês. Só não vale violência física”.
Assim que receberam as ordens, os guardas foram desenvolvendo um comportamento cada vez mais sádico, passando da tortura psicológica para a violência física também. Em questão de dias, os guardas (os mesmos universitários e colegas dos supostos presos) tornaram-se crueis. Fotos que divulgam o experimento provam: de nada aqueles jovens aparentemente pacíficos têm de diferente dos guardas de Abu Ghraib (a prisão iraquiana sob o domínio dos Estados Unidos, que há pouco tempo foi palco de torturas realizadas por parte dos soldados norte-americanos e expostas ao mundo inteiro).
O caso ficou preocupante e Zimbardo teve que encerrar o experimento. Além dos agravantes psicológicos que se sucederam em prisioneiros e da perda da “razão” por parte dos guardas, Zimbardo também se viu como um cientista experimental, que, ao não interferir diretamente, acabou contribuindo para que o negócio de uma bolhinha virasse um bolão de neve.
Zimbardo defende que “as coisas de fora” são mais influenciáveis que as coisas que estão dentro de nós. Para ele, há momentos em que as circunstâncias externas nos sobrecarregam e fazemos coisas que jamais imaginaríamos fazer.
Continuando na linha de pensamento de Zimbardo, existem circunstâncias para que a “maldade” seja propriamente exercida. Nesse caso, a maldade estaria relacionada ao poder e, é claro, ao grupo. O psicólogo enumera sete principais processos sociais que fazem com que alguém prefira escutar o diabinho:
1) dar o primeiro (mesmo que pequeno) passo sem pensar – de grão em grão… toda a maldade pode começar pelas pequenas coisas.
2) desumanização (ou coisificação) do outro – no caso de Standorf, prisioneiros eram números. É como se fosse mais fácil fazer o mal sem olhar a quem.
3) desumanização própria – em meio a uma multidão, você é só mais um. Sofrendo ou não violência (como no caso das torcidas de futebol) ou apenas estando na plateia daqueles que preferem profanar (no caso da Uniban) você faz parte de uma massa. Deixa de ter a responsabilidade exata pelas palavras que diz, uma vez que elas estarão diluídas entre tantas outras…
4) difusão da responsabilidade social (quando um criminoso é linchado, por exemplo) – a responsabilidade é do grupo, não sua apenas. Funciona como uma divisão de carga, sabe?
5) obediência cega às autoridades – o nazismo, o fascismo, a própria e suposta “guerra contra o terror”. A justificativa sempre é “estou cumprindo ordens”.
6) adesão passiva – as normas do grupo são as suas normas. É a história do efeito demanda. Espere um fazer para ver se não haverá muitos outros o seguindo…
7) tolerância (e passividade) com a maldade – mesmo não sendo o praticante, você admite. O velho quem cala consente.
Recentemente, uma nova versão (só que alemã e, talvez por isso, um pouco mais pesada) do filme A Onda saiu em DVD. A história consiste (baseada em uma situação real ocorrida em Palo Alto, nos EUA) no caso de um professor de história, adorado pelos alunos e com presença carismática, que decide “experimentar”, ou melhor, recriar facetas da ideologia nazista na sala de aula. De fato, passam-se semanas e alguns deles já estão obcecadíssimos. É lógico que o experimento não atinge a todos da mesma forma (no filme ainda há uma menina que sequer se deixa dominar), mas, ao chegar ao fim da experiência, o professor planta a dúvida permanente em seus alunos. Já no primeiro dia de aula ele pergunta: “Seria possível que sistemas extremistas, como o nazismo, acontecessem de novo?”. O nazismo, propriamente, não aconteceu. Mas o professor provou que é bem possível chegar perto disso.
Para o pesquisador e psicólogo Zimbardo, tanto os casos de Standorf, que estava sob sua custódia, como os aparentes e semelhantes maus tratos em Abu Grhaib são demonstrações clássicas de como a situação social distorceu identidades individuais. Zimbardo defende: não são as maçãs que são podres, é o cesto.
Entre o Bem e o Mal
Mesmo depois de anos após as pesquisas de Zimbardo, a dúvida persiste. O caso só pode ser aplicado no caso de um “coletivo maligno”? Pesquisas mais recentes dizem: embora um grupo possa levar seus semelhantes a se comportarem de forma brutal, o contrário também acontece. Após a realização de outros experimentos e de pesquisas na área, hoje se acredita que o papel social que um indivíduo desempenha em um grupo pode exigir dele uma determinada postura, que não necessariamente negativa. Crenças pré-condicionadas (no caso de Zimbardo, incitar em seus guardas que provocassem autoridade) podem levar fácil-fácil ao abuso.
Enfim, discordâncias existem aos milhares. Mas em uma coisa os pesquisadores e psicólogos da área concordam: o grupo influencia, sim. Imerso no coletivo, a coisa pode ir pro bem e pode ir pro mal.
A dinâmica dos grupos coloca as pessoas em situações, às vezes, extremas. Ao mesmo passo em que podemos nos converter em fanáticos pela ordem e pelas ideias falsas da supremacia de uma raça ariana, podemos nos atirar na água para salvar alguém que jamais vimos anteriormente. O ser humano não é mau porque anda em grupo. E nem bom apenas por isso. São agravantes e atenuantes. Não podemos esquecer, em hipótese alguma, o holocausto e os genocídios contra as mais diversas etnias, religiões, comportamentos.
Embora exista esse pensamento solidificado de medo e receio com relação aos grupos sociais e exista a ilusão de que apenas um grupo pode fazer com que o indivíduo cometa atos irracionais, é impossível desvincular as maiores conquistas da história das ditas mobilizações sociais. Um grupo também pode ter uma voz de direito. A queda do Muro de Berlim, a conquista dos direitos humanos, dentre tantos outros exemplos. De alguma forma, o ser humano sobrevive e necessita das suas interações em grupo. Apesar das coincidências animalescas em situações de brutalidade e hostilidade, de selvageria e covardia, não podemos negar que as relações sociais delimitam grande parte das condições e dos preceitos morais e psicológicos de um indivíduo. O outro lado também pende na balança: alguém pode aliar os seus interesses aos interesses de um grupo e, dessa forma, acabar fundindo um dos lados. Alguns assumem totalmente os interesses coletivos, colocando-se até mesmo em segundo plano. No passado, sociólogos e psicólogos acreditavam que as pessoas que pertenciam a mobilizações sociais eram, na verdade, lobos em peles de cordeiro (ou melhor, egoístas pintados de altruístas). Mas não é assim tão preto no branco. A coisa não funciona apenas em custo-benefício, em perdas ou ganhos simplesmente.
O professor de psicologia Bernd Simon, em um artigo publicado na revista Mente&Cérebro, afirma: “Hoje em dia, sabemos que a maioria dos membros é motivada por sua auto-imagem coletiva. Alguém que saiba como influenciar essa autocompreensão coletiva é capaz de liderar as massas a grandes feitos, como Martin Luther King Jr., mas também de desencaminhá-las. Essa habilidade é o que sustenta o carisma de líderes de seitas e revolucionários”.
Para as pessoas, no geral, é muito mais fácil quando o grupo aparenta encorajá-las. Os guardas podem muito bem ter assumido a posição de violência extrema por perceberem o respaldo que receberiam entre eles mesmos.
Fama & Anonimato
A internet também é um meio que pede receio e cuidado. O anonimato é uma arma poderosa. As mobilizações virtuais são muito mais presentes em nosso cotidiano “conectado” do que as possíveis mobilizações em carne e osso. Pressões e denúncias, bem como xingamentos e protestos contra políticos corruptos, são a representação de uma nova ordem de agrupamentos e demandas sociais. Podemos ficar de olho, mas ainda assim há os que preferem seguir a onda. FORA SARNEY é acompanhado por milhares de seguidores do twitter, o microblog das mensagens concisas. Enfim, desses milhares, quantos estão realmente cientes da situação a que o político brasileiro se submeteu nesses últimos meses? Esse é o efeito demanda. Toca pedra na Geni, não importa quem ela seja, ela é feita pra apanhar e ela é boa de cuspir.
Leitores, não me entendam mal. Em hipótese alguma estou defendo atos do Sarney, ou recentemente de políticos da direita nacional, mas a questão que fica é: quanto da internet serviu mesmo para esclarecer e elucidar?
Os casos de violência pela internet só aumentaram no país. Calúnia, injúrias e difamações. O recente caso na Universidade Federal de Santa Maria, em que dois universitários estão sendo acusados por outros universitários de terem matado um gato no campus da Universidade de forma brutal. Não cabe a mim, e eu diria que a ninguém em um primeiro momento, dizer o que é certo ou errado. Nem julgar ou mediar o peso da vida de um humano ou de um animal. Mas o fato é: além dos e-mails que correram com a suposta denúncia, comunidades e perfis no orkut são bombardeadas com mensagens e protestos. Os rapazes estão sendo ameaçados e impedidos de entrar na Universidade, em detrimento das tais ameaças. A que preço? Quantas dessas pessoas estão preocupadas com o gato ou com os direitos dos animais e quais estão apenas fomentando a briga através da internet e da conversa informal? O mais perigoso é que não há provas. A violência ainda é gratuita. Até que se prove o contrário, qualquer ofensa é uma calúnia. Os riscos existem. As redes de relacionamentos transportam características do mundo real e a violência é uma delas. É preciso bom senso.
Pode-se dizer que é incontestável que as pessoas venham a fazer coisas terríveis, preconceituosas e impensadas quando estão reunidas. Mas mesmo assim, nem todos aqueles grupos que estão “no comando”, como nem todos os guardas ou torcedores de futebol, são brutais. Quando é proposto que exista um fator inerente à psicologia das massas que a torne essencialmente cruel, desvia-se o foco de fatores específicos que fazem com que certos grupos tornem-se tirânicos e perversos. O efeito demanda existe. Os grupos sociais podem influenciar na forma como você ou como os seus amigos irão se portar em diferentes situações. Por causa disso, o importante não é criar um estigma e, sim, uma consciência. Quando as pessoas estão suficientemente esclarecidas, é bem mais difícil que encontremos intolerância. E é bem mais fácil viver em grupo.
A VIOLÊNCIA DOS GRUPOS, pelo viés de Nathália Costa
nathaliacosta@revistaovies.com
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Olá Nathália! Bom texto, mas creio que podemos ir mais a fundo nessa análise. Veja bem, o homem – na minha opinião, é claro – é fundamentalmente bom. Concordam (ou eu concordo com eles) comigo diversos pensadores. O que acontece – na minha opinião, repito – é que o homem já (e só) é social por causa de uma crônica fragilidade biológica: precisa se agrupar para tornar-se forte e aumentar suas chances de sobrevivência. Não há muito tempo, os homens viviam em tribos, clãs e grupos isolados…com uma curta existência devido às intempéries e predadores. De repente, uns 3 mil anos depois, estamos aglomerados em cidades, pavimentadas, cimentadas e estruturadas em uma sociedade dividida entre lucro e prejuízo. Ou você tem, ou você não tem. O que faz o homem? busca justamente o grupo e a sua identidade para justificar-se como membro de algo maior (e melhor) que sua própria carcaça. É assim os times, as equipes, as nações… Junta-se identidades para o apoio mútuo. Nessa busca, o que diferencia um desempregado de outro? O fato do outro ser estrangeiro, ser negro, ser mexicano ou nordestino. O que importa é que cada grupo comporta seus critérios. Sou miserável, mas não sou homossexual, ou sou homossexual, mas não sou miserável. O conceito de nação é justamente isso, assim como a necessidade de rituais, de símbolos, bandeiras, condecorações ou medalhas, assim como hinos etc. Temos, de qualquer maneira, defender NOSSA pátria, por que nascemos aqui, a ela devemos tudo, inclusive a nossa vida.
Esse padrão filosófico de nação vale da esquerda para a direita. Quando, no entanto, a crise se avoluma… os conceitos gerais se desmancham (esqueça o ridículo Baumann e sua modernidade líquida) nas necessidades primárias e somos forçados a apelar para subgrupos dentro da própria sociedade (que deveriam nos satisfazer no referencial da identificação), para nos defender, ou ao menos, para atenuar as conseqüências de um sistema falho. Falo de direitos tolhidos e nunca entregues. A tríade educação, alimentação e saúde, que abriga um grande número de outras necessidades. “Sou praticamente um analfabeto, desempregado”, ou “sou um formando sem perspectivas sociais”… O que importa é que participar da partilha do bolo social não nos é dado o direito, que é – notoriamente – apenas para alguns poucos. Já que não consigo me agrupar, trato de ir para grupos menos exigentes, mas que me confortam. Ou dão sentido a uma segurança, mesmo que superficial. Não sou apenas um fracassado (já que o sucesso, em nosso mundo, é a ascensão leviana na sociedade), mas divido com outros a mesma identidade. Levo a vida, quero dizer.
Quando as torcidas entram nos estádios, a identidade do futebol se sobrepõe a regras sociais que não funcionaram e que oprimem o cidadão: lá, no campo, as regras são claras e a justiça é aplicada no mesmo momento. Ali, não podemos perder, por que somos os melhores justamente por que é por isso que estamos juntos. Em uma sociedade como a capitalista, o mercado da bola se beneficiou em criar condições para a substituição de um mundo por outro, mais lúdico. No futebol, podemos nos afirmar como melhores, como raça (veja as expressões utilizadas nos noticiários esportivos) . O próprio linguajar adquire uma motivação militar, bélica, de confronto: artilharia, capitão do time, tiro ao gol etc. De confronto, justamente por que essa é a motivação que se reverte em lucro. Lembro que, na década de 70, uns militantes políticos quiseram passar uma mensagem ao público do futebol, colocando uma faixa “Abaixo a Ditadura” em pleno Fla-Flu, no Maracanã. Não foram trucidados, mas ignorados, já que a política externa não tinha qualquer ligação com a que se jogava ali. Aquela história do “pão e circo” foi apropriada, de tal modo que saiu do controle: agora os enfrentamentos e a violência atinge o bolso dos patrocinadores e os lucros que virão com a copa. Enquanto a explosão da violência não feria o sistema, era propositalmente incentivada. Agora, não.
O grande risco, e isso não é mencionado em nenhum lugar, é que o incentivo a esse fanatismo (que toleramos em nossos vizinhos colorados, gremistas, palmeirenses etc) se configura como uma vertente para o fascismo, para a manipulação das massas, exatamente como são descritos nos livros e filmes de Orwell, além de outros. Os próprios hitleristas não teriam jogado o mundo em uma carnificina de anos, se não tivessem alimentado o culto da raça, superioridade e estimulando os referenciais de identidade como grupo. A guerra apenas se concretizou, porque outros grupos (Churchill, por exemplo, achava que Hitler não ameaçava a Grã Bretanha, mas apenas o comunismo soviético, e os EUA apenas se meteram após verem os lucros que seu “grupo” teria em entrar num conflito lucrativo).
Quer um exemplo local: o caso do gato na zootecnia. Se dois alunos estão envolvidos, aonde estão os demais que presenciaram a história e nada fizeram. Será possível que apenas o distanciamento nos indica que aquilo é maldade, sociopatia etc? Não, provavelmente, ocorreu ali o tal “espírito de grupo”, que tolera o mal por que, aparentemente, para que eu faça parte daquele grupo, aquilo Não é o mal, mas o natural, por mais duro que possa parecer. Temo que entre outros da zootecnia, veterinária… tenham outros que ainda agora pensem que fazer uma sangria (ou seja, matá-lo) num gato, simplesmente pelo fato dele estar aparentemente doente, não é nada demais. Vejo problemas nesses sujeitos, que não foram superados pela educação familiar, muito menos pela vivência universitária. Ou seja, os limites das regras e escrúpulos não foram definidos… ou aceitos. Somente três semanas depois do caso acontecer (3 semanas!!!), uma(s) pessoa(s), de fora do grupo, tomaram uma posição de enfrentamento.
Já escrevi demais por algo que preocupa. Fico pensando que, imagine, se todo esse levante em Curitiba por causa de um time que baixou para a segunda divisão (francamente, alguém crê que isso muda em alguma coisa a vida das pessoas?), tivesse sido canalizado para motivações políticas, por direitos humanos…os políticos não pensariam duas vezes antes de votarem por interesses pessoais, em roubar, etc.
O que acontece, minha amiga, é que a “cadela está no cio” (desculpe-me, não me lembro que escreveu essa expressão), estamos guinando para uma sociedade desigual, injusta, desequilibrada, dividida em grupos, pequenas tribos bárbaras, que tanto podem ser um estudante (Meu Deus, a decadência da pós-graduação …) de zootecnia que supostamente se diverte com o sofrimento de um felino, de um alucinado que mata os colegas no trabalho ou torcedores de futebol que se voltam gratuitamente para violência…
Tudo isso aponta para uma sociedade preparada para ser cativada por um Hitler, Mussolini ou Stalin. Qualquer um desses, nos levará à barbarie.
Desculpe-me voltar, mas tenho minha cisma com relação a essa história de consciência. Precisamos de consciência para não dirigirmos bêbados? para cuspirmos no chão? transarmos de camisinha? de respeitarmos os mais velhos? Eu creio que não, por que essas são regras baseadas na sensatez que nos faz viver no coletivo. Eu não consigo admitir que, em pleno racionamento de água, alguém tenha que ter consciência (que assume um papel de luz divina) para economizar o líquido. É algo que a lógica humana rapidamente absorve e se transgride, tem perfeitamente o conhecimento disso. Logo, a saída não é a consciência, mas a da transformação da sociedade em algo mais justo. Sabes lá o quê…
Vejo essa sua cisma como, na verdae, uma birra, pois a consciência pode ter se tornado um jargão comumente usado, como a tal da cidadania, mas isso não exclui o significado da palavra em si. E consciência é tudo isso que o senhor citou: essa lógica que faz com que as pessoas absorvam uma certo juízo sobre certas ações. Consciência é uma faculdade moral compartilhada.
Consciência é, sim, pelo que a Nathália roga. Cismas linguísticas à parte.
Já foi dito, na Grécia antiga, que “o homem é um ser social”. Na Alemanha da época de Wagner, um bigodudo disse que “A loucura nos indivíduos é quase nula, nas grandes massas, quase completa”. Essas duas frases formam um composto interessante e um tanto desolador.
Só isso já nos mostra o quão cabeluda é essa questão…