Lençóis carcomidos, corpo nu. Nas paredes, manchas dos mais diferentes fungos. Ao chegar até a sala, não há praticamente nada; talvez uma TV com programação controlada ou uma grande janela transparente. Nas ruas, uma paisagem destruída e cinzenta onde o lixo se acumula entre as casas. Construções antigas com vidros quebrados e telhas soltas.
No fundo da paisagem, existe uma força que não sabemos exatamente qual é. Pode ser um governo autoritário, uma grande companhia, alguém com poder suficiente para manter o controle sobre a população, mantê-la quieta mesmo nessa realidade miserável.
Neste novo mundo, não há verde nem água, muito menos cultura e arte desenvolvida. O matiz de cores tende ao preto e branco, exclusivamente. A população não é feliz e não sabe o que são sentimentos como amor e felicidade, mas não reclama, assiste insólita àquilo que lhe é disponibilizado e trabalha por um bem que não chega.
Longe dali, alguém está bem, vive com tudo que a vida tem para dar, fechado num mundo maravilhoso, exclusivo para uma pequena parcela de “abençoados”. Esses “abençoados” podem ser megamilionários ou grandes estadistas. O que é certo é que na maioria das vezes são legados a eles privilégios sobre-humanos numa época difícil para quase todos.
Não, não é o novo blockbuster Hollywoodiano, nem um novo Best-Seller. É a mistura de diversos enredos baseados na DISTOPIA, forma de fazer literatura e de prever o futuro.
Dis-Topia e U-Topia – Dois ingleses que falavam Grego
Era o Século XVI e o inglês Thomas More, escritor e advogado de respeito, sonhava com uma sociedade “perfeita”. Onde todos fossem iguais, trabalhassem no campo e se dedicassem às artes e aos livros. Isso tudo num lugar em que as casas fossem semelhantes e onde não houvesse mais conflitos por bens materiais de qualquer espécie. Essa teoria, descrita no livro Utopia de 1516 é até hoje fruto de controvérsias: correntes defendem que fosse um sonho de More baseado nas cartas enviadas por Américo Vespúcio descrevendo a Ilha de Fernando Noronha, já outros teóricos consideram que a obra do Sir inglês era uma alegoria irônica para a situação política da Europa à época.
O que ficou de mais importante dessa obra de Thomas More é a alcunha Utopia – do grego U – nada, não; Topia – lugar. UM “não-lugar“, ou seja, um ponto inatingível de evolução da Sociedade.
Já o termo Distopia foi usado pela primeira vez num discurso do Parlamento Britânico, em meados do século XIX. Gregg Webber e John Stuart Mill comentavam sobre a possibilidade de um Estado inimaginavelmente ruim. Mill se referiu a ele como Distopia, do grego Dis – mal, anormal; Topia – lugar. “Lugar mau”. A distopia ficava, assim, caracterizada como o contrário da Utopia, onde as pessoas fossem governadas por algo ou alguém de forma autoritária e cruel.
Diferente do termo Utopia, que é comumente usada para descrever qualquer coisa que só se vislumbra, um ponto perfeito e inatingível, a Distopia não ganhou tanto valor, figurando hoje no seu estado inicial do discurso de John Stuart Mill – a de uma elite autoritária e opressiva (seja ela um Governo ou uma Grande Organização) e uma população ignorante (ou em vias de se tornar ignorante).
Nos termos vistos, a Distopia seria algo tão inatingível quanto a Utopia. Assim, o termo foi cada vez mais se tornando ficcional, o que deu origem a diversos clássicos da literatura e do cinema.
Distopia vira cultura
Os livros mais antigos que citam um futuro distópico são do Século XIX. Júlio Verne seria o primeiro a tocar no tema, ao escrever OsQuinhentos Milhões da Begun. A história de duas potências, uma praticamente utópica, a outra distópica – chefiada por um tirano que pretendia de todas as maneiras destruir France-ville, a cidade perfeita do livro.H.G. Wellstambém escreveu obras distópicas, sendo o primeiro a pensar realmente num futuro distópico de forma mais concreta. Seus livros: A máquina do tempo e When the Sleeper Wakes também demonstram uma sociedade vil e longe de um futuro brilhante.
O livro Nós, do russo Eugene Zamiatin vai além na caracterização da distopia, prevendo que, no futuro, todos vigiarão todos, através de construções feitas sempre com vidros transparente. A vida humana será controlada por preceitos industriais, não tendo espaço para o amor ou a felicidade. O livro, de 1924, é por muitos considerado o livro-chave para produção de outra obra distópica, uma das mais conhecidas e aclamadas: 1984, de George Orwell. Na Sociedade de Orwell, o mundo é dividido em três grandes nações em guerra. Na Oceânia, país caracterizado pelo autor, a característica mais marcante é a língua – que vai diminuindo gradualmente por ordem do alto comando da nação. O objetivo é acabar com a possibilidade de revoltas populares. Afinal, quanto menor o vocabulário, mais difícil a construção das ideias.
Além dos livros de Zamiatin e Orwell, outras obras do século XX despontam na descrição dos valores distópicos como Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley; Fahrenheit 451 de Ray Bradbury, e Laranja Mecânica, de Anthony Burgess. Todas tratadas como o espelho de um futuro triste.
No cinema, a maioria dessas obras foi adaptada e Philip K. Dick aparece como expoente. Autor do livro Do Androids Dream with Electric Sheep?, que deu origem ao filme Blade Runner, um dos maiores sucessos do cinema distópico. Na história, uma grande companhia fabrica androides – robôs com feições humanas –, a qual, depois de um certo tempo, perde o controle sobre as máquinas, muito mais fortes e resistentes que os humanos. O governo do mundo considera os androides ilegais na Terra (eles poderiam continuar existindo nas outras colônias humanas da época, como Lua e Marte) e, para caçar os eventuais robôs, a polícia cria os Blade Runners, caçadores de androides. O filme tem trilha sonora impecável de Vangelis e atuação de Harrison Ford com muito menos cabelo branco.
Citar todos os filmes que, de certa maneira, trabalham com a distopia seria uma tarefa ingrata – Eu, Robô; Minority Report; Matrix; V de Vingança; Filhos da Esperança e Delicatessen são apenas alguns dos mais recentes.
Entre os que se destacam, aparecem o primeiro longa-metragem de George Lucas, THX-1138 (nele os humanos são controlados por drogas fornecidas pelo governo autoritário que comanda o Mundo), a adaptação de Stanley Kubrick do livro Laranja Mecânica (marcado pelo estilo do diretor, com as coisas não acontecendo num futuro como no livro, mas na época da produção do filme), Alphaville, de Jean-Luc Godard, [1965] (passado não se sabe onde, no Mundo ou até em algum lugar do espaço, sem grandes efeitos especiais, levado muito mais na Nouvelle Vague francesa do que no estilo ficção-científica), e Metropolis, produzido na década de 30 do século passado, considerado um dos melhores filmes distópicos, além de figurar entre os mais antigos (a sociedade humana é dividida em duas partes, os “pensadores” e os “trabalhadores”, o filme narra a visita de um pensador nos subterrâneos dos trabalhadores).
Distopia é Utopia?
(quase um pósfacio)
Como já foi citado, Distopia permanece tendo o sentido original do século XIX. Já a Utopia mudou, tornou-se apenas algo inatingível, mesmo que não seja a perfeição que Thomas More cunhou em seu livro do Século XVI. Sendo assim, será que hoje em dia a Distopia é ainda inatingível? Será ela um ponto inalcançável? Ou estamos caminhando para ela cada vez mais?
Não se sabe exatamente como ou quando começou, pode-se dizer que foi a queda do muro de Berlim, a derrocada da União Soviética ou até os ataques de 11 de Setembro. O que se sabe é que o mundo mudou, como se o destino soubesse que estávamos trocando de século, (e de milênio) segundo o calendário gregoriano, e quisesse marcar essa mudança. O mundo sofreu várias mudanças que poderiam ser consideradas a virada do século e que marcariam uma nova era, afinal, chegamos ao terceiro milênio. Mas como podemos caracterizar nossa sociedade atual? Evoluímos? De que forma deixamos de ser animais “irracionais”?
Desde que o ser humano existe, a competição nos move. Ser melhor que o outro parece ser um impulso incontrolável. E incontrolável é também a criação de estigmas aos outros – aos que não ligam em ter mais, ou demonstrar poder. Os chamam de comunistas, subversivos, preconceituosos, parados no tempo. Mas o que não salta aos olhos é que neste mundo, onde os estigmatizados não têm vez, também não há mais espaço para tanta competição. Não se quer o controle estatal e, sim, o privado, afinal, ninguém quer um Estado que controle tudo – isso seria a Distopia do Capital. Não se percebe que hoje somos controlados por outro poder tão centralizante quanto o dos governos: o Governo da Indústria.
Esse poder, para o qual muitos fecham os olhos, acaba por controlar as nações e é muito mais insensato que a maioria das nações. É só olhar para a crise que entramos no ano passado, mais ou menos na mesma época do ano em que estamos. Fruto da irresponsabilidade de poucos, para o sofrimento de muitos. Isso sem falar de tantas outras irresponsabilidades desses poucos – degradação do meio-ambiente, patrocínio de guerras sem fundamento…E o que fazemos para mudar essa situação? Somos os ignorantes, assinamos embaixo do que nos dizem, somos integrantes deste processo porque não existe mobilização deste lado do jogo. Somos, enfim, igualmente irresponsáveis.
Afinal de contas, vivemos num mundo em vias de ser distópico?
– Muitos vivem numa miséria.
– Poucos desfrutam de regalias.
– O amor não tem mais importância e a felicidade é descartável.
– O meio ambiente não é exatamente algo importante, pode-se viver no cinza.
– Nossa moral é questionável.
Se, em sua opinião, essas características das obras Distópicas se encaixam no mundo em que vivemos, o caminho do planeta não será nada fácil.
UM LUGAR MAU, A DISTOPIA, pelo viés de João Victor Moura
joaovictormoura@revistaovies.com
Bom o sistema esta falido, segundo Freud para cada vontade o ser tem dois caminhos o da razão e o da emoção. Para cada vontade que ele usa a razão ao invés da emoção, ele cria um rancor.
Somos uma caixa de rancor e estrés, forçados a mostrar o que não somos para sociedade, mostramos a razão.
Ou como disse Nietzche “As convicções são cárceres.”
terminei de ler o livro faheinheit 451 e vejo nele uma utopia na distopia. Como a cena final da versão do diretor de Blade Runners. Penso que há sim um mundo ruim mas há , igualmente, a esperança humana, tão absoluta e demasiadamente humana de sentimentalizar os mesmos desertos que nós criamos.
Parabéns pela matéria.
Abraços