ESTRADAS E ESTADAS

A imigrante de raiz boliviana, coração peruano e chão brasileiro

Um pé aqui e outro ali. Passos rápidos, xingamentos. As bancas para venda de mercadorias diversas são olhadas com desdém e os vendedores, chamando para que se olhe os produtos, apontados como chatos. E a pessoa por detrás da banca passa ao segundo plano (e se é que passa a algum plano). Comércio, centro. Um epicentro fervilhante de ponteiros girando com pressa (e Santa Maria não é uma grande cidade). No meio deles, dizem, há o que não presta. E não? O nosso olhar é fraco e traiçoeiro. Para desfazer isso, só por um momento que seja, dá para parar ali na Praça Saldanha Marinho, naquela banca da moça de olhos negros e puxados, cabelos lisos e longos.

Uma banca de cores, de muitas cores. Toalha vermelha sob artesanato peruano. Bolsas, chaveiros, tabuleiros de xadrez artesanais, incensários, cinzeiros, presépios de pedra. E muitos vermelhos, rosas, amarelos e verdes. E lã, cerâmica, argila, barro e bronze. Tudo marcado por desenhos e paisagens e a palavra Peru assinalada, pintada, gravada ou lapidada. É manhã do dia 4 de novembro e o dia ainda não parece um dia. Nem a primavera parece primavera. Nublado e cinza. A vivacidade das cores da banca é o que se destaca e o que emerge nas pupilas, mas, além disso, atrás do festival de arte e cor, há uma moça de 21 anos que tem sobre as costas a experiência de um (e não qualquer um) ancião.

Boliviana, Sandra Lopez (nome fictício) saiu aos 17 anos do país com destino ao Brasil e à maturidade precoce… Peraí, boliviana?

Sim, boliviana. O artesanato que vende é peruano porque o marido, Jorge González, é dessa nacionalidade e o casal vai a Lima todo ano para comprar, trocar e negociar artesanato na grande comunidade artesã da cidade. Com o passar do tempo, isso fez com que ela se apegasse mais ao Peru do que à Bolívia. Cada vez que vai ao Peru, deixa um pouco de si nas fronteiras do retorno.

E, por que o Brasil? Porque, embora as graves desigualdades existentes aqui, o país é o irmão latino mais próspero. Dentre os países vizinhos, os Lopez optam, sem dúvida, pelo Brasil. É aqui que crêem encontrar a melhor recepção para seu trabalho. “Si, Brasil. Porque trabalhar em Chile non dá. Pobreza. Y também chileno tem fama de ladron. E en Argentina… os argentinos no gastan, non compram da gente. Non valorizam. E em Peru ou Bolívia, tem que se sacrificar bastante mesmo.” A irmã, 10 anos mais velha, já trabalhava com artesanato no território brasileiro. O irmão também já andava por aí. Atravessava as fronteiras em busca de emprego. Ele trabalha como mecânico. No Chile, trabalhou como pedreiro. Não sendo melhor que aquilo que ele achava o pior, voltou à Bolívia. E a mãe, que nunca havia colocado os pés fora do país natal, não resistiu ficar só no aceno aos filhos. Decidiu também imigrar. Veio ao Brasil para ajudar no cuidado aos netos. Três são da filha mais velha, Julia, e um da filha que ainda mora na Bolívia, Maria. Bem, a Maria também já veio para cá e não se adaptou. No retorno, achou melhor deixar a filha no local onde a renda poderia lhe proporcionar uma criação melhor.

Intercalando passado e presente, cá estamos nós no dia 4 de novembro, dia em que, coincidentemente, Sandra completava seus 21 anos. É o tal dia cinza e nublado, o movimento da manhã foi fraco e, como se não bastasse, a boliviana está sozinha. O marido viajou ao Peru para adquirir o artesanato das vendas de verão. Ele também é músico, toca composições tradicionais peruanas. “Fica uma semana, viaja três. Precisa tocar em vários lugares para conseguir mais dinheiro. Meus amigos me dizem que ele non deveria me deixar assim, que deveria comer só pão e água que fosse, mas que non me deixasse assim… no meu aniversário do ano passado também estábamos em função de viagem, mas depois ele cantou parabéns pra mim… e no meu ouvido! Mas hoje (havia passado alguns minutos das seis horas da tarde) non me ligou ainda…”.

Brasil, sul, foi aqui que os dois se conheceram. No coração do Rio Grande, o casal se uniu. A vida no hotel de 200 reais mensais. 200 reais também foi o preço aproximado da regularização da situação de ilegalidade. O processo foi simples devido a acordos entre países integrantes do bloco Mercosul. Pagamento da taxa a apresentação da carteira de identidade. Agora, Sandra e Jorge não temem os fiscais, ainda que alguns insistam em xingamentos e hostilidades. Ainda assim, há a saudade das famílias, a vontade de se estabelecer em algum lugar. O incerto, o aperto, a viagem, o ônibus, o trem. O aceno, o reencontro. Brigas. Ficar ou ir. Pra onde ir? Por onde ir? Viagem, ônibus, trem. Aceno, aperto, reencontros. Falando em idas, cinco dias, aproximadamente, é tempo que se gasta no trajeto Bolívia–Brasil ou Peru–Brasil. E oito ou dez para voltar. Passar pelas alfândegas e fiscalizações tem seu custo. A palpitação, o medo, a humilhação. O fisco, o risco.  “Ah, uma bez, na fronteira de Bolíbia com Peru, nós tibemos que passar por baixo da ponte a umas 4 horas da madrugada.”. Essa fronteira fica na região do povoado de Desaguadera. Por debaixo de uma ponte, atravessando o rio Desaguadero, Sandra e outros imigrantes escaparam da constrangedora situação de subornar fiscais para que não apreendessem o artesanato. Sim, constrangedora. Não é espírito de aventura o que move esse tipo de imigração, mas sim necessidade e fome mesmo. É claro que eles não gostam de ter que passar por isso. Essas pessoas não são personagens de filme de ação, onde risco geralmente é sinônimo de prazer. “Meu marido, coitado, fica muito nerboso nessas fronteiras. Treme e olha para todos os lados. Eu digo: van pensar que está carregando cocaína. Ele diz que não me importo com os riscos. Mas eu me importo si, só que preciso me controlar para non chamar atenção…”. Em Corumbá, fronteira entre o Mato Grosso e a Bolívia, é comum os firmes policiais perderem a rispidez recebendo 40 reais na mão. 40 reais por caixa de artesanato colocada para dentro do território brasileiro. E, como os imigrantes precisam de bastante material para segurar pelo menos três meses de vendas, deixam, a cada passagem na fronteira, o valor aproximado de 120 reais.

Aqui em Santa Maria o casal diz que é bem valorizado. No inverno venderam todas as roupas de lã peruana. Os estudantes, principalmente, gostam do trabalho artesanal e valorizam a música do grupo de Jorge Gonzalez. Quem também conversa bastante com Sandra são os brasileiros interessados na cultura peruana ou que já estiveram pelo território. Ela gosta da simpatia, mas nem sempre do papo. Na verdade, ouvir sobre o país de que se tem paixão, mas de que não se vislumbra condição de volta, causa um sentimento contraditório na moça. E então, já não se sabe se olhos pretos emocionam-se pelo amor à terra ou pelo desgosto de não vê-la fecunda. “O Peru, com tanto ponto turístico deveria ser próspero. Non era pra ser así…”. Para arrematar o assunto, uma senhora, cliente de Sandra e colecionadora dos presépios de pedra peruanos, lembra da vez que foi para Cuzco e “no centro, as crianças vinham com sabonetes, pedras ou o que tivessem para tentar trocar por um par de meia ou sapato nosso”. O comentário é o estopim para que a cabeça da moça Lopez penda para baixo, como se, de repente, dilatasse e pesasse mais.

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No final da tarde, Sandra estava ainda atrás de sua banca em meio a três ou quatro outros expositores artesãos. Veja: sentada, queixo apoiado na mão. Ora ou outra um papo com ocolega do lado, mas maior parte do tempo quieta, o pensamento na Bolívia ou no Peru ou em Florianópolis. Florianópolis é o destino que ela iria tomar dali a dois dias. É lá que a mãe, irmã e quatro sobrinhos moram. Dona Tereza, a mãe, cuida das crianças mesmo quando precisa levá-las a tira-colo para as banquinhas montadas diariamente no centrão da capital catarina. Com 52 anos e algumas dores nas pernas e joelhos, quer voltar ao Peru. Insistiu para que Sandra e o marido se juntassem a elas em Florianópolis. Como mãe e filha não se vêem seguidamente (ainda não se viram neste ano), a ponte telefônica é o meio pelo qual matam as saudades e trocam planos. Os planejamentos são, em sua maioria, voláteis: a incerteza do que é o melhor é uma constante que nunca se esvai por completo.

O trabalho de vendedor é desgastante. Se o consumidor não visita a banca, a banca precisa se deslocar ao consumidor. Na temporada de verão 2007/2008, Sandra, com 82 quilos, juntou-se às mulheres da família na praia. De tanto caminhar para vender os artigos peruanos, perdeu 14 quilos. “Meu marido nem me reconheceu. Ele tava em Caxias e, quandou voltou, achou que não era eu.”. Já na temporada de 2008/2009 o movimento foi fraco, as vendas escassas. “Por isso non queria voltar mais para lá. Não tinha muito turista, acho que por causa das enchentes, né?! Tinha mais era argentino, e argentino non compra nada, non baloriza”. Porém, devido à matriarca estar sobrecarregada com os cuidados às crianças e “cheia de problemas de saúde”, na sexta feira (6/11) ou no sábado (7/11), Sandra vai tirar 94 reais das economias para comprar a passagem, adicionando, assim, mais algumas horas de estrada ao seu itinerário. O marido a reencontrará direto no novo lar, uma casa de madeira de dois cômodos “no úúltimo andar de um morro perto do centro”.

Quanto aos estudos, o desejo do marido era de que Sandra terminasse os dois anos de ensino médio que lhe faltaram para depois cursar faculdade de Medicina ou Arquitetura. “Ele quer que eu faça algo assim… que dê reconhecimento, entende.” Mas se dependesse de Sandra, o plano preferido seria juntar dinheiro, ir para o Peru e montar um negócio próprio, uma “cafeteria muuito chique com panadaria e lanches, (…) tudo muito limpo, porque as coisas mal feitas e sujas me fazem perder o apetite”. Ela não tem coragem de contar isso ao marido – talvez a opressão que sofre uma mulher simples e imigrante sofre possa, muitas vezes, calar sua voz –  e, por isso, delineia seus planos olhando para o céu com um quê de utopia. “Minha vida é sofrida sabe ?!”.

ESTRADAS E ESTADAS, pelo viés de Liana Coll

lianacoll@revistaovies.com

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8 comentários em “ESTRADAS E ESTADAS

  1. Gostei do texto e da reconstrução da oralidade. Ficou fácil e imaginável. Agora, fiquei na dúvida e curioso: num texto desses, seria legal descrever como a vida desses refugiados eram em seu país de origem. Afinal, a vida aqui, para eles e milhões de brasileiros, não é fácil. nada disso. Como pode ser mais difícil lá? Beijos!

  2. Classifico mais como bastidores de pessoas que lutam pela sua sobrevivência…muito difícil,principalmente para as minorias
    nos dias atuiais.
    Bela reportagem,envolvente e emocionante!

  3. Neste mundo de ter, em detrimento do ser, somos focalizados entre o desejo e o poder de comprar, criamos uma barreira a fim de não enxegar aquilo que estamos adquirindo. Ao comprar um objeto em troca de dinheiro, estamos adquirindo também a sua realidade, a realidade na qual ele foi produzido, de onde veio, o direito que lhe foi dado ou negado ao produzi-lo.
    A vida é difícil? Sim! Tem que ser para valer a pena!
    E fechar os olhos para a realidade não a torna mais fácil.
    Brilhante reportagem.

  4. Parabéns pela revista, pela reportagem. Mas também fiquei com a dúvida do Rondon, seria interessante, dá outra reportagem.

  5. Sério.. como disseram, ficou extremamente fácil de imaginar e reconstruir cada fato apresentado.
    Sempre me instigou como vivem esses artesãos e o porquê de terem vindo pra cá, já que o calçadão de santa maria é local de exposição de vários deles (popularmente e ‘desinformadamente’ chamados de “os índios do calçadão”).
    Ótima reportagem e de forma espetacular.. como gosto!

  6. Esta é a realidade de milhares, ou pior milhões de pessoas, que tem que deixar sua terra para tentar sorte melhor, seja no Brasil ou um de nossos vizinhos.
    Muitos em situação de semi-escravidão em tecelagens em São Paulo, por exemplo. Uma População que talvez seja bem maior que a popuação de vários países latinos.
    Ainda temos uma longa caminhada em direção a Pátria Grande.
    Parabéns pela reportagem!
    Roberto
    Comitê Latino Americano

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