Poucos são aqueles que – por um único fulgor emergente da fama – alcançam a casta dos inesquecíveis na memória social. No caso de Sylvia Kristel, quem jamais a esquecerá teve na juventude seu primeiro encontro com o charme de uma mulher belíssima, que entrelaçado ao mistério galante de sua personagem de maior sucesso, viu gerações e mais gerações envolvidas pela sensualidade de Emanuelle, a protagonista ingênua da mais celebrada franquia de filmes eróticos da história.
Só o primeiro “Emanuelle” ficou treze anos em cartaz na França, dando origem a uma centena de continuações e pequenos filmes. Ao todo, a franquia esteve em cartaz, em um cinema da Champs Elisées, a ilustre avenida parisiense, por mais de quinze anos.
Sylvia nasceu em Utrecht, nos Países Baixos, no dia 28 de setembro de 1952. Colocada pelos pais num pensionato religioso aos 11 anos, sonhou ser professora. Extremamente bela – como seu rosto aos 60 anos ainda demonstrava – Sylvia viu a vida deslanchar num piscar de olhos. O sonho de lecionar deu espaço ao posto de Miss TV Europa de 1973. Aos 22, estrelando o filme de maior sucesso francês no ano de 1974, uma película erótica dirigida pelo fotógrafo Just Jaeckin, transformou-se num mito, na linha dos mais populares. Fez tremer gerações. Para meninos e meninas de uma época sem internet, aguardar Emmanuelle era mítico. Seu corpo foi o primeiro sorriso de espanto da sensualidade juvenil.
Poucos anos depois, Sylvia arriscou afastar a imagem de atriz de “pornô soft” da carreira para trabalhar em outras produções cinematográficas. Quase em vão. Contracenou com Gérard Depardieu em “O gangster, de Francis Girod. Dois anos antes, em 1974, atuou entre renomados da sétima arte no filme francês “Um Linceul n’a pas de poches”, dirigido por Jean-Pierre Mocky. Entretanto, contratos pré-assinados com os produtores de Emanuelle levaram a atriz aos cinemas, em 1976, com “A antivirgem”, no mesmo ano do filme de Girod. Em 1979, interpretou uma aeromoça ao lado de Alain Delon em “Aeroporto 80 – O Concorde
Mas a lenda era Emmanuelle. Pessoas viajavam do interior da França para assistir uma de suas produções. Ao chegar ao Brasil, a fita teve que ser renomeada de “Emmanuelle, a verdadeira”, visto que Emanuelles (com emes a menos) pipocaram pelo mundo em imitações cinematográficas. Assim como em alguns países, aqui a película foi censurada. “Os ministros da Justiça nunca têm senso de humor”, disse a atriz.
Pelo estilo encalistrado das cenas e enredos frouxos, a mistura de erotismo – um pouco brega – com romances gratuitos, sem pé nem cabeça, deixavam a obra a desejar. A única exceção restava à mítica cena da vagina fumante de Bangkok. E só. Por pornográfico não passava. Por romance cinematográfico, muito menos. Mas foi essa a receita do sucesso.
Ficou a cargo da televisão sua eterna popularidade. Em 1993, gravou a série que ganhou espaço nas madrugadas carnais da TV. Com títulos como “Emmanuelle no Sétimo Céu”, “O Segredo de Emmanuelle”, “Beauty School; O Perfume de Emmanuelle”, “A Magia de Emmanuelle”, “O Amor de Emmanuelle”, “Veneza com Emmanuelle”, “A Vingança de Emmanuelle” e “Para Sempre Emmanuelle”, e uma trilha sonora original – que no Brasil até mesmo marcava as duas horas da madrugada -, Sylvia se transformou no rosto, e no corpo, do privê chique.
Passadas décadas desde o estrondoso auge da sequência de filmes, “ser” Emmanuelle representava ultimamente menos do que foi um dia. O símbolo sexual das décadas de 1970 e 1980, há anos vivia modestamente em Amsterdam. Em 1981, Kristel reencontrou Just Jaeckin para filmar o romance de D.H. Lawrence, “O amante de Lady Chatterley”, mas sua sina era forte. Não houve fôlego para outras produções.
Na década de 1990, com o uso excessivo de drogas e álcool, sua carreira esmaece. No final da vida, depois de residir na Califórnia, mudou-se para Amsterdam, onde pintava e expunha suas obras. A menina de pele excessivamente clara, que não gostava de tomar sol, envelheceu como sempre fora: uma mulher discreta. Em 2012, fez sua derradeira participação no telefilme “Le Ragazze dello Swing”.
Sylvia Kristel impressionou a todos com a vida de fora das telas. Recatada demais, pálida e nervosa, causava incômodo. Era de uma beleza de boneca. Foi casada com o diretor de cinema Philipe Blot, mas não teve sorte com sua vida particular. Teve vários casos, e vários divórcios. Nos últimos anos, uma crise financeira e sua saúde, que vinha piorando, a deixaram mais debilitada.
Sylvia deixa o filho Arthur, fruto do relacionamento que teve com o escritor belga indicado ao Nobel de Literatura Hugo Claus. Ao longo de 30 anos de carreira, Kristel atuou em mais de 50 produções interacionais. Trabalhou com Alain Robbe-Grillet e Claude Chabrol. “Ficou conhecida pelo trabalho erótico, mas podia fazer mais do que isso”, disse Marieke Verharen, sua agente, momentos depois de seu falecimento.
A atriz, que sofreu durante meses com um câncer no esôfago – interrompido nos últimos dias – morreu dormindo, aos 60 anos, na noite de quarta, 17.
A DAMA DAS SENSUAIS, pelo viés de Bibiano Girard