Morreu na semana passada, no Philadelphia’s Hahnemann University Hospital, aos 26 anos, a top model Gia Marie Carangi, vítima de complicações em vários órgãos em decorrência de uma enfermidade mais ampla que a acometia há algum tempo. Meses antes, Carangi fora diagnosticada com a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, a qual médicos e cientistas ainda procuram um quadro clínico mais especializado.
A modelo considerada detentora do mais belo rosto da década passada e também desta, o qual foi estampado nas capas de revistas como Cosmopolitan e Vogue, havia voltado para casa, na Filadélfia, após um encadeamento de indisposições, sendo internada no Philadelphia’s Hahnemann com ajuda da mãe. Durante o tempo de internação, os visitantes foram quase nulos, a pedido de Kathleen Adams, a mãe, que não saiu do quarto por dias e noites seguidas. A relação entre ambas fora intensamente conturbada, desde a adolescência de Carangi, quando Kathleen abandonou a família para ir morar sozinha.
Nascida no inverno de 1960, no estado da Pensilvânia, Estados Unidos, Gia Carangi viu a juventude passar como um muro sem reboco aos olhos de uma criança de bicicleta. Partes caiam e todo o resto era cinza. Os pais brigavam constantemente.
Filha terceira do casal Joseph, italiano dono de restaurante, e Kathleen, dona de casa de ascendência irlandesa, Gia e os irmãos testemunhavam combates íntimos violentos armados pelos pais sucessivamente. Quando a única filha mulher completava 11 anos, Kathleen Adams pegava a estrada em busca de uma vida longe da família. Mesmo assim, nunca perderam o contato, e muitos são os relatos de ótimos momentos vividos pelas duas após a separação dos pais.
Aos 12 anos de Gia, David Bowie apresentava seu andrógino alter ego Ziggy Stardust. “Starman”, a faixa que trazia o emblemático trecho “Deixem as crianças perderem o controle, deixem as crianças aproveitarem, deixem todas as crianças tocarem”, do álbum The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars, faria Gia, enquanto estudante, pertencer ao grupo de fãs obsessivas do cantor, sobretudo pelo modelo dúbio e desafiador do ídolo nos palcos, o qual vestia roupas delirantes coladas ao corpo, uma cabeleira elevada pintada de vermelho e o rosto intensamente realçado com as cores mais diversas. Carangi iniciava sua adolescência ao som do glamour rock, ou glam rock, como ficou popularizado. Mesmo que nos Estados Unidos o estilo não tenha alcançado um grande contingente de músicos, os cílios postiços, a purpurina, os batons vibrantes e os saltos altos emolduraram a adolescência da modelo.
Após o afastamento da mãe, Gia, seus dois irmãos e Joseph, o pai, abriram uma lanchonete onde atrás do balcão a menina exercia a função de caixa. Desde essa época a personalidade excêntrica e sua maneira de se vestir, o corte de cabelo arrepiado e suas atitudes tidas como exóticas resplandeciam o que o futuro nos mostraria. Aqueles que a conheceram ainda no balcão contam que a garota com os dólares na mão e um sorriso atraente já evidenciava uma “beleza de cabelos castanhos” extraordinária. Gia fugia dos padrões da moda da época, da estética conservadora e murcha de loiras de pele branca e olhos azuis que há muito tomavam as capas das magazines. Com 1,70m de altura, busto farto de 86,5 centímetros de diâmetro, cintura fina, 61 centímetros, e calçados tamanho 39, ao chegar a Nova Iorque, com 17 anos e pouca coisa na mala, em menos de um ano seu encanto nu faria a atmosfera da moda explodir.
Gia Marie Carangi, após várias sessões de fotos e alguns desfiles, viu sua carreira mudar de patamar ao ser conhecida por Wilhelmina Cooper, dona da agência [ainda desconhecida] de moda onde a modelo construiria seu sucesso. Wilhemina, além de agenciadora, tornar-se-ia uma das melhores amigas da modelo: “minha principal confidente”, escreveria a menina. Sua ascensão ao topo é veloz.
Considerada a primeira modelo a ser fotografa de “rosto lavado”, pois sua pele perfeita dispensava maquiagens, Gia também trouxe às passarelas e aos ensaios [muito] mais originalidade. Ao esconder o corpo ilustre mais atraente da década em roupas masculinas, causa alarme numa sociedade que, mesmo sendo desconstruída pela juventude turbilhante, matinha o velho puritanismo estadunidense que nos acompanha até hoje. Sua facilidade e nenhum pudor em ser fotografada nua, fosse sozinha ou com outras modelos, e também seus traços marcantes, criaram no mundo da moda uma fila de fotógrafos atrás de um clique posado daquela que se tornava uma bomba de Hiroshima sobre as passarelas.
Nomes como Francesco Scavullo, Arthur Elgort e Richard Avedon estavam entre os fotógrafos ávidos por eternizar o corpo de Gia em retratos. Os desfiles da modelo eram aguardados como um presente de ídolo para fã. Carangi era praticamente o camaleão, em tributo ao camaleão-mor Bowie, da alta costura.
Pela fama que criou por ser a primeira modelo a ser fotografada sem maquiagem, ganhou as capas da Cosmopolitan, Glamour e Vogue, esta, o ouro do mercado da moda. Em 1º de abril de 1979, sua foto estampava a capa da Vogue Paris, a mais suntuosa de todas as produções editorias sobre o assunto no mundo. Foi fotografada por Chris von Wangenheim, formado pela Escola Estadual Bávara de Fotografia. Christopher foi o responsável pelas célebres imagens nuas de Gia atrás de uma grade. Os dois mantiveram uma parceria de trabalho e amizade até a morte do fotógrafo em um acidente de carro em 1981. Foi Chris quem apresentou Sandy Linter, sua assistente de produção, a Gia.
Durante esse pouco tempo, Carangi mostra ao mundo o corpo feminino mais fascinante entre todas de sua geração. Seu rosto viraria um produto caro, sendo um dos mais publicados pelas revistas do mundo inteiro. A fama, o dinheiro e a idolatria trariam sérios problemas a uma menina já problemática.
A mãe, cega em alcançar o sucesso imediato da filha, desmonta a autoridade do cuidado. Dava tudo de si para não ver a filha audaciosa jogar com a liberdade que procurava. Mas o showbussines originaria as piores consequências. Uma filha com sorriso de fachada e uma mãe corrompida. Kathleen estaria ao lado da filha durante suas crises de raiva, de drogadição e também nos momentos mais embaraçosos do tratamento contra a síndrome que portava. O diagnóstico dos médicos: tal síndrome se apresenta através da transmissão de um vírus a partir do contato direto da corrente sanguínea com um fluido corporal que contenha o vírus. “Pode acontecer durante relações sexuais ou também pelo uso de agulhas hipodérmicas contaminadas”. Gia se lembrava da agulha contendo heroína que injetou em uma crise de abstinência de cocaína num beco de Nova Iorque.
Destruiu apartamentos, gastou milhares em drogas e álcool, dilatou pupilas, foi affair de conhecidos e desconhecidos, vestiu Yves Saint Laurent e consecutivamente era requisitada pelos estilistas Gianni Versace, criador de sua própria marca, a Versace, intitulada pelos críticos como a mais luxuosa e glamourosa marca da época, e Diana Von Fustemberg, uma das criadoras da moda da década passada.
Chutou a mãe de casa, impactou na passarela, ridicularizou opiniões conservadoras e espetacularizou uma vida de momentos densos. Foi ironizando que disse: “Nenhuma mulher é verdadeiramente mulher se não for loira”. Sua ascensão desmedida a levou ao caminho torto de uma passarela menos sofisticada. Conforme os mais próximos, provavelmente a morte de Wilhelmina, em março de 1980, vítima de um câncer de pulmão, tenha sido o principal desencadeador da entrada da jovem na busca por refúgios químicos.
Tendo o mercado do glamour a seus pés, como Wilhelmina dizia, sua vulnerabilidade psicológica assustava os mais próximos. A falha da presença da mãe parece envolver a biografia e os porquês dos acontecimentos. A bipolaridade entre picos de felicidade e desgraças emocionais nunca foi medicada. A infância e a adolescência numa casa com três homens, e o sumiço repentino da mãe quando criança, podem ter inicialmente contribuído à decadência psicológica da top model.
Em Nova Iorque, com a glória e o passe livre nas principais casas noturnas, Gia se descobria com a conformidade do uso de drogas pesadas. Sandy Linter, seu amor eterno, segundo as palavras da própria modelo, lutava incessantemente pela cura da devassidão da namorada. O caso das duas não resistia a momentos de extrema rebeldia e uso de narcóticos da jovem modelo. Sandy, contudo, nunca deixou de tentar.
A partir desta década os cachês da modelo ganharam cifras abissais, as viagens internacionais tornaram-se hábito, e homens e mulheres, desconhecidos ou famosos, bilionários e artistas buscavam sua atenção. Do outro lado, no escuro de seus pensamentos, uma Gia depressiva e sozinha a derrubava. Com o pai e os irmãos a relação foi cortada, motivada pela rejeição que os homens da família impuseram após sua saída da Filadélfia e pela transformação radical no estilo de vida. Com as contínuas quedas sobre as drogas e o afastamento paulatino das passarelas, Kethleen voltou a ser sua base: as duas foram morar juntas. As frustrações viraram cocaína. A depressão foi injetada. Com o passar dos anos, a inexpressão facial de uma jovem sob efeito de drogas foi usado pelos fotógrafos para ensaios “chapados”. Contudo, as picadas de agulha pelos braços começaram a lhe trazer embaraços e a consequente queda no número de trabalhos. Gia, ou as drogas, deram início a sessões de agressões nos bastidores, fugas incontroláveis da frente das câmeras e descontrole cognitivo.
Há cinco anos atrás Gia foi internada por 21 dias numa clínica para dependentes químicos. O resultado final foi promissor. A modelo havia conseguido limpar o corpo das dependências. Contudo, o ano da primeira internação e da ascendência aparente seria recortado pelo acidente de carro fatal sofrido pelo amigo Chris na ilha caribenha de Saint Martin. Sob pressão psicológica e profunda tristeza, as drogas foram novamente a saída encontrada por Gia para enganar a própria dor. No final de 1981 a modelo tenta contato com Monique Pillard, que a pôs novamente no hall de modelos disponíveis para trabalho. Em 1982, Francesco Scavullo consegue a capa da Cosmopolitan para a modelo. A foto se tornaria um mito no showbussines: Gia mostrava o corpo, mas aparecia com os braços para trás sentada sobre as próprias mãos. A mídia se deliciou com o fato e escreveu: “Os braços não aparentes para esconder as picadas de agulhas”. Scavullo desmentiu afirmando que a pose ajudava na imagem, pois a modelo estaria um pouco acima do peso.
Seria a última capa de revista de Gia. Tempos depois a modelo foi presa na África portando drogas e voltou aos Estados Unidos algemada. Novamente internada, agora em Eagleville, a carreira de modelo chegava ao ponto final.
Ruas, drogas mais pesadas e doses mais altas, perda do resto de dinheiro que ainda tinha, prostituição. Uma forte overdose a leva novamente à internação. Após a crise, Gia começa a ter febre alta e é diagnosticada com pneumonia em um hospital de Norristown, Pensilvânia. Eram os primeiros sintomas da síndrome que a levou à morte. Os milhões ganhos em anos de passarela e fotografia haviam terminado, obrigando Gia Marie Carangi a ser considerada indigente perante o Estado para receber o tratamento contra o vírus HIV. Emagreceu, perdeu os dentes, o cabelo foi deteriorado, tumores foram evidenciados e até mesmo um Sarcoma de Kaposi trouxe lesões arroxeadas por todo o corpo, hemorragias e escarros com sangue.
Na semana passada, exatamente na terça-feira, 18 de novembro, foi confirmada a morte de Gia Marie Carangi em decorrência da AIDS. Seu enterro ocorreu às 10 horas da manhã da última sexta-feira, 21. Apenas Kathleen acompanhou a cerimônia de enterro. Até o final de sua vida, Gia enviou flores aos amigos.
Filadélfia, Pensilvânia, 26 de novembro de 1986.
A data de escrita deste obituário foi fantasiada, pois a morte de Gia só foi exposta à sociedade semanas depois pelo fotógrafo, empresário e amigo Francesco Scavullo.
NENHUMA MULHER É VERDADEIRAMENTE MULHER SE NÃO FOR LOIRA, pelo viés de Bibiano Girard.