Um papo sério com um amigo punk [parte 3]

Arte: revista o Viés.

 Tu conhece bandas de Santa Maria, travou contato com o pessoal que trabalha com música na cidade?
MB: Sim, com certeza. Conheci o pessoal de uma banda chamada Pastor Alemão, o pessoal da Rinoceronte, a gente até trocou uma ideia sobre esse lance de circulação, que na época era meio moeda corrente, eles contaram de shows que fizeram fora do estado e tal. E a gente teve uma visão muito próxima dessas coisas. Já na universidade o público é muito diversificado, tem desde o cara que tem uma banda gauderia com trabalho próprio e também toca cover pra conseguir show, tem o cara que é um puta violonista, outro que quer ser produtor, outro que quer seguir carreira acadêmica, outro que quer montar um estúdio. Tem cara que toca em banda marcial, tem militar. Então é um público que eu acho legal, sai desse meio roqueiro, que ultimamente eu não tenho tido muita paciência. É um público mais arrogante, cai um pouco naquela coisa hippie, “vamos nos encontrar e rolar um som”, mas essa coisa coletiva, se tu não tem uma formação, não tem um diálogo e uma exposição muito clara do que tu quer, tende a cair num senso-comum que é muito pouco interessante. Esse é o grande problema da música hoje em geral.
 O Seu Jorge falou dia desses numa entrevista que gerou polêmica sobre rock hoje só interessar para um recorte muito específico, de branco classe média, e que o gênero perdeu totalmente seu potencial de rebeldia. Tu concordas?
MB: Eu acho complicado porque se o cara não fosse negro e falasse isso, talvez não tivesse o mesmo impacto. Tipo aquele lance de “os Beatles são mais populares que Jesus Cristo”, que na verdade é uma frase completamente descontextualizada. Eu acho que os meios de mídia em geral hoje em dia são máquinas de descontextualização poderosíssimas. Nada é mais sintomático do quanto a gente se habituou com a descontextualização. E sobre esse negócio do rock é muito estranho, porque surgiu como a música mais renegada e hoje é a mais senso-comum. Não mobiliza mais, se tornou meio invisível. E isso se reflete nas bandas que a gente tem visto, porque por favor…
 Tu como professor tens algum conflito geracional com os alunos, sobre onde eles querem chegar e onde tu achas que poderiam chegar?
MB: Não tem conflito de gerações. Eu acho que tem alguns casos, que são muito frequentes na geração atual, de pessoas que tiveram tudo muito fácil. Tipo assim, tem situações que a criança quer atravessar a rua no sinal verde, e ela não pode atravessar no sinal verde. Pra isso não tem negociação, não tem escolha. Mas me parece que é uma geração que foi criada como se aquilo fosse uma opção, tu atravessar só no sinal vermelho. E não é opção. E daí se cria uma contestação meio vazia, sabe? “Ah, mas também pode ser assim”. E nem sempre pode “ser assim”. E num certo momento o diálogo fica muito difícil. Eu não sei quem é o autor, não é ideia minha, mas tem um poeta que dizia assim: “o vale-tudo é quando o nada vale a pena”. E isso define os tempos atuais, porque eu vejo que tu pode mostrar a coisa mais inusitada, mais fora do padrão e as pessoas olham e dizem, “ah, tá”.
 Tu queres dizer que o pessoal não se aprofunda muito, é isso?
MB: É, não se aprofunda. Mas por outro lado, eu tenho alunos que, se eu lanço uma referência que eles não conhecem, eles acessam a Internet na mesma hora pra pesquisar. Internet serve pra isso, é uma ferramenta. Mas aquilo não é uma dispersão da sala de aula. Porque não tem, como, cara, quantas vezes eu lia num livro algo que eu não sabia o que era e eu não tinha como ir atrás. Hoje com a Internet isso é automático, se tu pesquisar alguma coisa tu já vê que aquilo foi inspirado numa outra coisa, e assim vai. E aí tu vai vendo os links, que isso já é um fato para estudiosos do processo criativo, que a criatividade funciona quando duas ideias que não têm nada a ver se chocam uma com a outra. Tu faz uma pergunta, recebe uma resposta que não tem nada a ver, mas tu dá um jeito de conectar. Que é a técnica do Marshal McLuhan, ele começa falando uma coisa no início da frase e termina falando de outra. Quem vai completar é tu, mas aí tu está projetando sentido. O ser humano funciona assim, e a nossa capacidade de projetar sentido simbólico é o que nos torna a espécie mais belicosa e a mais apta à sobrevivência do planeta. A gente não herda as coisas instintivamente. Mas isso não faz a menor diferença, porque a gente continua sendo a mais agressiva das espécies. Inclusive tem teorias hoje dizendo que a extinção dos grandes mamíferos está diretamente relacionada ao surgimento do homo sapiens.
 Fazendo uma reviravolta na conversa e voltando à cena: existe possibilidade hoje de um artista independente viver de música?
MB: Sim. Bom, eu não posso dizer que não, né? Porque eu vivo de música. Já passei por muitos baixos, alguns altos e muitos baixos. Depende do que o cara quer, se ele quiser viver do seu trabalho autoral, ele vai ter que ralar. Mas a gente está numa situação muito nebulosa, e entra naquela questão que a gente volta e meia toca, que talvez seja interessante falar porque eu não falei em outras situações, que o meio musical tem que se convencer que o protagonismo é imprescindível. Pra o cara que decide ser músico, isso é uma definição pessoal, ele não está se sujeitando a normas pré-existentes. E ele vai ter que saber que pra isso aí tu tem que estar com muito gás, senão nada vai cair do céu. Agora nesse encontro em Porto Alegre teve um cara chamado Flávio Silva, ele falou o seguinte: que a diferença principal que ele vê entre as chamadas música popular e erudita, é que o músico popular cria a dificuldade dele. E o músico erudito tem que responder à uma demanda de um repertório standard. Por exemplo, o cara que vai ser pianista vai ter que tocar todos os prelúdios de Chopin, vai ter que tocar sonatas e concertos tudo decor, um repertório que ele vai ter que dominar. Agora, o cara que decide ser pianista de jazz, ele escolhe o que quer dominar, ele se coloca os seus desafios. E aí se o cara está disposto a isso, cria suas próprias dificuldades, e investiga que música quer fazer. Eu refinei a minha ideia original ao longo dos anos. Mas eu sabia onde eu estava me metendo, sabia que eu estava no meu pleno direito de batalhar por aquilo e mostrar que era viável. Claro que pra isso tu tem que ter muita disposição, tem que estar muito convicto do que está fazendo. Tu vai enfrentar muito descrédito. Mas enfim, é assim que as coisas funcionam. Se a gente for ver os grandes artistas que se destacaram na história, eles tinham essa coisa de dizer, “a minha linha de investigação é isso aqui, eu vou fincar pé nisso”. E é claro que teve muita gente que se fudeu em função disso. Ao longo da história a gente vê que são essas as pessoas que dão uma contribuição de fato. Embora geralmente o reconhecimento seja muito posterior. Mas é isso, ou tu vai criar as tuas próprias dificuldades, ou tu vai atender as demandas existentes. Tu pega os Beatles que iam pra Hamburgo tocar em puteiro e dormir nos fundos de cinema pornô, a gente pode citar vários caras que fizeram isso. O Paul Cézanne, por exemplo, mesmo sendo filho de banqueiro, se dispôs a levar uma vida humilde pra saber que era aquilo que queria fazer. E tu vê que esses caras não desistem. O mais emblemático de tudo é essa motivação. E daí tem gente que entra naquela coisa de não criticar porque é amigo, mas qual é o problema de criticar? Eu por exemplo nunca fiquei menos amigo de alguém pelo cara gostar ou não da minha música. Ninguém é obrigado a gostar, seria uma atitude muito pueril. Agora, quanto mais amador o cara é, mais puto ele fica se alguém disser que não gosta. O cara que leva a sério a coisa quer ouvir as críticas. Se o cara sabe identificar as referências que tu usou, a crítica acaba sendo bem-aceita. Teve uma crítica do Hermano Viana na revista Trip muito bem argumentada, e ele falou muito bem do disco, mas me impressionou muito mais o fato que o cara listou uma por uma das referências que eu tinha usado. Cara, ele podia ter me esculachado, que eu não teria como esculachar ele. Mas cada um tem suas prioridades, obviamente o cara que é produtor quer ter retorno financeiro, talvez Marcelo Birck não seja o cara mais indicado pra isso. Por outro lado eu agrego valor aos eventos, mesmo que eu não vá ter um grande público. Porque artistas alternativos em grandes eventos é pra agregar valor, não é pra chamar público. E agregar credibilidade também, claro.
 E o futuro: é apocalipse, é vórtex? O que vem pela frente?
MB: Eu realmente não sei qual é o futuro da música, porque a gente chegou num ponto… Mas uma coisa é imprescindível, se o cara quer fazer um trabalho, se ele quer se motivar para a investigação, ele vai ter que se informar muito. Porque nós chegamos num ponto da história onde as diferenças, que pareciam tão marcadas no início, hoje começam a se diluir. Dá pra olhar a coisa de longe e ver que nos cenários que eram radicalmente opostos conseguiram achar um contexto comum. Só que isso demanda que as pessoas sejam muito bem-informadas. O mundo da Internet não comporta pessoas mal- informadas, a não ser que elas aceitem viver numa cadeia desde que ela seja bem-decorada. Então se tu não acha importante entender o que está acontecendo, dá pra continuar vivendo bem, pagando tuas contas e tal, mas tu vai ser aquele carneirinho no rebanho, aquele cara acomodado. Ok, é uma maneira de viver. Como diria o Xirú Missioneiro, “pra que o mundo seja mundo tem que ter de tudo um pouco”. Mas tu pode escolher anestesiar os impactos e conflitos que chegam, ou tu pode escolher desvelar isso. E saber como surfar a onda. Então nesse mundo de muita informação, existe uma tendência à passividade muito grande. De novo Marshal McLuhan: todo ambiente é moldado pelas mídias que a gente usa. Se tu aceita aquilo passivamente, ok, mas tu está fazendo aquilo que a mídia quer. A grande arte de todas as épocas botava a mídia a seu serviço, subvertia a coisa. A ideia do impressionismo, por exemplo, surgiu em reação à máquina fotográfica. Como que a gente vai seguir pintando de forma realista se a máquina faz isso melhor do que qualquer um de nós? E aí teve toda uma recuperação da percepção acústica do espaço, aí começou a pintura abstrata, o cubismo, a grande aventura do início do século XX. Eu acho que foi um dos momentos de maior radicalismo e que continua válido até hoje. Tu pega coisas que foram pintadas pelo Bosch, que era um pintor da transição da Idade Média pra Renascença, tu olha e pensa “puta que pariu!” Se tivesse pintado ontem, ainda seria um pintor de vanguarda. Essas coisas são muito interessantes. São coisas que mobilizam. Outro cara que eu acho que poderia ser muito mais falado, que é o Piero de Cosimo, ele pega o imaginário medieval e representa isso com a técnica da perspectiva, que era uma técnica nova. Tu vê que os quadros dele chegam a ter movimento. E pô, tu representar movimento numa pintura eu acho muito foda. A questão hoje é como a gente lida com a nossa herança de ponto de vista num mundo em que múltiplos pontos de vista convivem. A assimilação dessa coexistência é dificílima. A gente ainda responde com condicionamentos obsoletos. E eu percebo isso até em gerações mais novas. Eu acho que pra entender a civilização ocidental tem que entender a representação da profundidade ao longo da história. Isso é uma hipótese que eu ainda vou desenvolver, a representação da profundidade. A simulação de profundidade, ou seja, a perspectiva, o ponto de fuga, é isso. Uma simulação de profundidade num espaço plano, e que ocupou a pintura ocidental desde sempre. E outras representações de profundidade não-perspectivistas, por exemplo, o modelo da Idade Média, que é um estilo musical, que se baseia numa melodia grave que se move lentamente, uma um pouco mais aguda, que se move um pouco mais rápido, e uma terceira aguda, que se move rapidamente. Então tu tende a ouvir isso por planos, a melodia mais aguda tu ouve como estando na frente, e o grave e lento tu ouve como estando no fundo. É exatamente assim que a gente observa a paisagem quando está andando de carro, o morro que está lá no fundo parece que não se mexe, a vaquinha no meio do caminho um pouco mais rápida, e a árvore na beira da estrada passa assim, zaz! Ou seja, é uma representação não-perspectivista essa da música, que aliás era uma preocupação do Paul Cezanne, como representar profundidade sem fazer uso da perspectiva. Que ele dizia que era um embuste, uma coisa completamente falsa que condicionou toda a nossa percepção visual. E no momento em que tu entende isso, tu vê que de fato a ideia de profundidade é muito mais uma educação do que uma percepção natural. Hoje já tem vários estudos dizendo isso, que a profundidade não é um atributo da visão, mas do movimento.
 Acho que era isso, né?
MB: Acho que era isso.
 
Parte [1] [2] [3]
Um papo sério com um amigo punk, pelo viés de Atilio Alencar e Bibiano Girard.
 
 

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