“Agora vamos contar
A história de uma viagem
Feita por dois explorados e por um explorador.
Vejam bem procedimento desta gente:
Estranhável, conquanto não pareça estranho;
Difícil de explicar, embora tão comum;
Difícil de entender, embora seja a regra.
Até o mínimo gesto, simples na aparência
Olhem desconfiados e perguntem
Se é necessário, a começar do mais comum.
E, por favor, não achem natural
O que acontece e torna a acontecer:
Não se deve dizer que nada é natural
Numa época de confusão e sangue
desordem ordenada, arbítrio de propósito
humanidade desumanizada
para que imutável não se considere
nada!”
(Bertolt Brecht)
O prólogo da peça didática A exceção e a regra, de Bertolt Brecht, traz uma exortação ao público. A peça parte do caráter de classe da Justiça para discutir um tema ainda mais complexo: a sua aceitação cultural. Em busca de petróleo, um comerciante, auxiliado por um guia e um empregado que carregava seus objetos atravessa o deserto. Ainda antes de chegar ao deserto, desconfia do guia e o demite, seguindo o caminho com o carregador. Perdidos no deserto e à beira de morrerem de sede, o comerciante mata o empregado por suspeitar que ele o estava atacando, quando, na verdade, ele se preparava para lhe oferecer o restante da água que carregava. A notícia do homicídio chega à viúva, que busca a condenação do comerciante e uma indenização pela morte do marido. O comerciante é então processado e absolvido por legítima defesa, justificada pelo fato de ele pertencer a uma classe social mais alta, e por isso ter motivos para se sentir ameaçado pelo empregado de classe inferior.
Diante da reflexão do caráter “normal” de tal julgamento, já que os ricos costumam ser considerados inocentes e os pobres culpados, Brecht convida o público a refletir sobre o normal que, no caso, contrapunha a regra – todos são iguais perante a lei – e confirmava a exceção – uns são mais iguais do que os outros – transformada, contudo, em regra.
Não por acaso, a peça data de 1929/1930, período de ascensão do nacional-socialismo na Alemanha de Brecht, e polemiza com o teórico do Estado de exceção, Carl Schmitt. A preocupação com a generalização da exceção e a excepcionalização do cumprimento da regra cai como uma luva nos debates empreendidos hoje no Brasil, no ano do cinqüentenário do golpe que roubou dos brasileiros o mais básico de tudo: os direitos humanos.
O artigo 5º da Constituição Federal de 1988, elaborada durante a abertura política, prevê os direitos e garantias individuais. Vários de seus incisos, contudo, estão gradualmente se tornando excepcionais.
A exceção: Inciso IV – “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”.
A regra: Somente será livre a manifestação do pensamento favorável à manutenção do status quo, especialmente no que tange às estruturas de propriedade e poder.
A exceção: Inciso LIV – “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.
A regra: Em caso de perigo à segurança da nação e à ordem – definidas por quem no momento detém o poder de decidir o que é perigo, o que é segurança, o que é nação e o que é ordem – permite-se a privação da liberdade e dos bens daqueles que o personificam sem a necessidade da presença de advogados, e a partir de acusações que se resumem a delirantes teorias da conspiração sobre ataques terroristas. Elisa Quadros, a Sininho, Camila Jourdan, Igor D’icarahy e outros 18 acusados em processo penal ligado às manifestações de junho de 2013 o atestam.
A exceção: Inciso III – “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”.
A regra: Toda pessoa que carregar consigo o estereótipo do criminoso, especialmente se for homem, jovem, pobre e pardo ou negro; ou que expuser seu pensamento contrário à ordem admitida pelas autoridades policiais e judiciárias, poderão ser submetidas a tortura e a tratamento desumano e degradante. Amarildo de Souza o atestaria.
A exceção: Inciso XLVII – “não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84 [da Constituição, Inciso] XIX;/ b) de caráter perpétuo;/ c) de trabalhos forçados;/ d) de banimento;/ e) cruéis”.
A regra: A declaração informal de guerra por veículos de comunicação, secretários de justiça, e demais agências do sistema penal contra o tráfico de entorpecentes nas favelas, o vandalismo nas manifestações, ou simplesmente contra indivíduos rotulados como não-pessoas, configura condição suficiente para a aplicação de pena de morte sumária a todos aqueles que pareçam estar perturbando a ordem social. O cumprimento de pena de privação de liberdade em celas inundadas de esgoto e superlotadas de gente, insetos, ratos, tuberculose e AIDS não será considerado pena cruel. Os 600 mil brasileiros encarcerados e, especialmente, os 240 mil presos provisórios o atestam.
***
Este é o primeiro de uma série de textos que buscarão expor várias dessas novas regras que o povo brasileiro vem admitindo sem a necessária mudança da lei. As novas regras passam pela censura ideológica, pelas prisões arbitrárias, execuções sistemáticas por oficiais do sistema penal, torturas e desaparecimentos, além do enterro vivo de pessoas em manicômios, 13 anos após a aprovação da lei de reforma psiquiátrica, dentre tantos outros.
Quando a violação se torna tão comum que a opinião pública a apoia, torna-se absolutamente necessário refletir sobre a exceção. É nesse momento que o arbítrio pode imperar, por parte daqueles que têm o poder de decidir o que significam a ordem pública, a segurança e o perigo. Ou, como termina Brecht no epílogo da mesma A exceção e a regra:
“Vocês viram e ouviram.Vocês viram e ouviram.
Vocês viram o que é comum, o que sempre torna a acontecer.
Mas nós pedimos a vocês:
No que não é estranho, encontrem o estranho!
No que é comum, encontrem o inexplicável!
Com o que é normal, vocês devem se espantar.
O que é a Regra, reconheçam como abuso
E onde vocês reconhecerem o abuso.
Busquem remediar!”
A Exceção e a Regra I: Prólogo, pelo viés de Marília De Nardin Budó*
*Marília é formada nos cursos de Comunicação Social – Jornalismo e Direito na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), com especialização em Pensamento Político Brasileiro na mesma instituição. É Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e Doutora em Direito na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professora do mestrado em Direito da Faculdade Meridional (IMED) e do curso de Direito no Centro Universitário Franciscano (Unifra). Autora do livro “Mídia e Controle Social: da construção da criminalidade dos movimentos sociais à reprodução da violência estrutural”.