Eu gostaria de ter escrito ou produzido. O filme é, com total certeza, uma das maiores amostras do cinema intimista. E ao contrário dos céticos sem graça, intimismo pode ser filmado, sim. Com “Casa de Areia” temos condições que podem parecer insanas, como enxergar a melancolia e o desalento. Dar rosto às sensações. Sentimentos ganham forma e cor, mesmo no branco sepulcral dos lençóis de areia onde se passa a história.
Na verdade, soará mais como clichê, mas a geografia de “Casa de Areia” é também personagem. Não se constrói um filme desses em qualquer lugar, em qualquer dia. É necessário um confronto familiar com o ambiente onde se estrutura uma narrativa tão forte e pesada, uma mistura de fraqueza e desesperança, o questionamento que hoje parece impossível: o que é ser vivendo quase sem modelo? Construir personagens como Áurea, de Fernanda Montenegro, e Maria, de Fernanda Torres, é por vezes tentar imaginar os trejeitos de um extraterrestre. As situações vivenciadas pelas duas são passagens que para nós, humanos pós-contemporâneos, só são possíveis pela recriação cinematográfica fantástica e realista. O homem cru rodeado de nada é o que? Talvez o ser em sua essência, sem a gama de objetos, palavras e condições que nos são oferecidos na construção da identidade. Senti-mo-nos cômodos em uma rua vazia mas não sabemos o que seríamos no meio do vazio que ao mesmo tempo é o todo, o mais natural.
O filme tem frases que resumem cenas inteiras como “aqui ninguém vai para casa” ou “o homem pisou na lua, mãe”, “E o que ele encontrou lá?”, “Dizem…que areia”.
Outro ponto forte do filme é carregar 116 minutos com poucos personagens. Enquanto Fernanda Montenegro vive a mulher mais velha da epopeia de três gerações amarguradas e soterradas pela areia, Fernanda Torres vive a face jovem. No papel de Massu, o homem que Maria (Montenegro) conhece como único vizinho mais próximo, está o ator e cantor Seu Jorge. Para representar Massu mais velho, Luis Melodia.
Há jogadas que o espectador mais observador leva como mensagem. Em uma das várias possibilidades de conseguir fugir das dunas que não acabam, Áurea promete à Maria que as duas irão embora com uma caravana de cientistas que cruza o local. Após um atraso (entre a casa e a caravana levava-se dois dias a pé) as duas ficam desamparadas olhando para a imensidão. É quando Áurea diz para filha: “eles vão voltar, minha filha”. No meio do nada, sobrevivendo cruamente em território sem tempo contado, um dos participantes da caravana realmente volta, porém, mais de dez anos depois.
É assim que se conta “Casa de Areia”, literalmente afundada, incrustada no marasmo. Intimista, melancólico e temeroso. É necessário preparar-se bem no sofá para adentrar de corpo na história. Um filme com cenas trabalhosas e belas, uma fotografia assustadora e representações de alto padrão cinematográfico. Vale conferir e se emocionar.
O filme Casa de Areia nasceu a partir da fotografia de uma casa engolida pela areia. Andrucha Waddington na direção, Luiz Carlos Barreto na produção (foi ele quem mostrou a foto à diretora) e Elena Soarez no roteiro, que demorou dois anos para ter sua forma final fazem parte da composição do filme, estreado em 2005.
O elenco do filme por si só já atrai o olhar dos espectadores: Fernanda Montenegro e Fernanda Torres atuando pela primeira vez como mãe e filha, Seu Jorge, Enrique Diaz, Luiz Melodia e Stênio Garcia. O cenário são os areais marenhenses desde a década de 1910 até o final da década de 1960 e os grandes temas abordados são a solidão e a felicidade. Duas mulheres, mãe e filha, acompanham o marido desta, Vasco, em uma jornada dura até o Maranhão, onde ele havia comprado terras. Ao se assentarem no lugar isolado, onde poucos chegavam e poucos saiam, e serem abandonadas pelos trabalhadores de Vasco, começam uma jornada dupla de sobrevivência no local e, ao mesmo tempo, de tentativa de sair dele. A filha, grávida, entra em desespero e questiona o certo conformamento da mãe que, velha, já não pensa mais em voltar à chamada “civilização”.
A história se desprende dos detalhes e levanta questionamentos a partir da supressão de diálogos e momentos-chave e do foco em situações que parecem menos importantes. As grandes questões que surgem, durante e depois do filme, são as ligadas à vida e aos valores de vida. As falas não abundam, mas da mudez de muitos personagens e da expressão das paisagens sai a verdadeira voz da produção.
Filme: “Casa de Areia” Ano de lançamento: o mesmo de “Diário de um novo mundo” Direção: o mesmo de “Eu Tu Eles” Elenco: Fernanda Montenegro de “O auto da compadecida”, Fernanda Torres de “Saneamento Básico” e Seu Jorge de “Cidade de Deus”.
O QUE CASA DE AREIA CONTA, pelo viés de Bibiano Girard e Liana Coll
bibianogirard@revistaovies.com
lianacoll@revistaovies.com