Cristiano Onofre é professor formado em Letras, desenhista e escritor. O carioca de apenas 22 anos produz “Os quadrinhos mais sujos da face da terra” e esteve recentemente na Universidade Federal de Santa Maria para falar sobre arte marginal, literatura e quadrinhos. Em um espaço proposto pela Semana Acadêmica de Letras – A (p)arte que te cabe deste latifúndio, Cristiano defendeu as publicações independentes e comentou sobre o seu trabalho dentro da área da educação e da arte.
Ressaltando a transversalidade entre as diferentes áreas que transita, o autor criticou a forma de como o atual sistema político mercantiliza a educação e atribui valores à arte. Questionado sobre suas produções e referências artísticas, Cristiano destacou sua relação com o movimento punk rock e revelou o nome de seu primeiro fanzine escrito ainda na pré-adolescência, sob o título “Fuck the System”. Para o professor-artista, as maiores recompensas que ele pode receber pelo seu trabalho é a troca de experiências e o reconhecimento que as pessoas atribuem aos seus textos e desenhos.
Depois da palestra, Cristiano conversou com a revista o Viés sobre a comercialização da arte, a influência de sua produção artística na profissão de professor e a glamourização do que é independente hoje em dia. Confira abaixo a entrevista na íntegra.
Como, a partir do seu trabalho como professor, você consegue tratar essa transversalidade entre educação, arte e cultura?
CO: Na educação é mais difícil, porque você acaba lidando com uma formalidade que, por exemplo aqui, eu não preciso lidar. Porque quando você vai falar com alunos sempre tem que seguir um pouco de padrão de fala, de colocar e tal. Mas é sempre legal, porque, na verdade, as pessoas que sempre estão mais fechadas a isso são as pessoas mais velhas. Porque a galera mais nova, na verdade, ta tão perdida no sentido de produção cultural, produção artística, que ela não sabe o que é arte marginal, o que é produção independente, mas ela faz isso – foi o exemplo que eu dei dos meninos do sexto ano que faziam o zine do “The Walking Dead”. Eles não sabiam o teor político, o teor independente que aquilo ali tinha, mas eles faziam porque queriam. Isso é na realidade, pra mim, é a peça chave pra dali partir pra algo maior, ou pra continuar fazendo. A partir disso o negócio flui dentro de sala de aula. Se você vai conversar com eles, sempre tem alguém que já faz uma poesia, alguém que desenha e tudo mais. Na prática, na sala de aula, eu costumo fazer exposições com eles – sarau, sempre pego alguma aula que já tá mais tranqüila, adianto a matéria e tiro uma aula pra fazer exposição, algo assim.
A respeito das produções independentes e os meios de veiculação, houve uma ampliação da arte marginal com mais essa possibilidade da internet?
CO: Acho que sim, porque na verdade a internet é um meio que não escolhe o público. Por exemplo, um zine que eu pegava em show de banda punk, eu só pegava porque eu estava naquele show; uma pessoa que não gosta desse meio, não vai chegar lá e não vai ter esse zine. Agora, a internet atira sem rumos. Quem gosta dos meus quadrinhos é tanto universitário com pensamento mais de esquerda e às vezes até um empresário apolítico tá gostando – isso é bom e ruim, na verdade. O que você coloca na internet acaba se tornando um vírus sem direção nenhuma e foge do seu controle. A divulgação que você faz na internet foge do seu controle. Chega ao ponto que vai fugir.
Como você enxerga a questão de se conseguir ter um trabalho reconhecido, mas sem cair nesses valores técnicos de “arte padrão” que muitos artistas e professores pregam (e que podemos perceber que hoje estão em falência)?
CO: Aí que tá, às vezes ele cai. Mesmo por eu não fazer questão de cair ou não, às vezes meu trabalho cai em algum tipo de valor. Porque a estética existe, independente de ser arte ou não, se o que eu faço é bem divulgado e tem pessoas que gostam, é porque alguém deu valor estético para aquilo. Eu não me preocupo com valor estético pra fora, eu me preocupo com o que eu faço. Se o que eu desenhar, eu achar que não tá bom pra mim, se eu não gostar daquilo que eu desenhei e eu achar que posso fazer melhor, eu vou fazer de novo. Mas por uma questão pessoal, não por seguir uma estética que eu ache padrão ou que me disseram que é padrão – eu tento ao máximo fugir disso. Hoje em dia, dentro da arte independente existe isso também. Acontece muito de existir uma estética que, quando não é rompida, ela é muitas vezes deixada de lado. Dentro dos quadrinhos, por exemplo, se o cara faz um quadrinho que talvez passe uma mensagem boa, se tem o texto legal, mas é desenhado de uma forma que o cara não consiga se enquadrar dentro do padrão estético – isso realmente vai deixá-lo de fora. É injusto, na verdade. É uma coisa quase inconsciente. Não tou me tirando dessa: se alguém me mostrar um desenho que eu não achar bonito, eu não vou achar bonito por uma construção estética que existe dentro de mim. Só que existe uma diferença entre você não se identificar esteticamente com aquilo e você desvalorizar. Tem muita gente que desenha mal e escreve muito bem, muita gente que escreve mal e desenha bem. São conceitos que não cabem a gente julgar eu acho.
Na sua opinião, quais são os principais desafios dentro da internet pra que hoje a arte marginal e a cultura independente se mantenham e consigam chegar às pessoas? Porque além de todas essas dificuldades, tem um lado que criminaliza muito essas formas de expressão..
CO: Na verdade, hoje em dia a gente vive tempos muito mais fáceis de publicação. Porque a arte independente hoje em dia é muito glamourizada. O fanzine, por exemplo: no jornal O Globo, lá do Rio de Janeiro, acho que todo o domingo tem um caderno chamado “Megazine”, que, segundo eles, é um formato inspirado em zines. Ou seja, aquilo ali não é arte independente, não é publicação independente, mas é uma glamourização do que é independente. Outro exemplo: tem uma amiga minha que trabalha com produção artística e foi chamada pela Redley (marca de roupa), porque a Redley queria fazer uma exposição de roupa com zine. Só que a Redley, na real, tá cagando pro meio independente – quer dizer, eu acho, porque o conceito que eu tenho de megaempresa, de uma multinacional, é que ela ta cagando pra tudo isso, senão estariam aqui, agora, participando de um debate sobre zines, enfim. O que eles estão fazendo: se apropriando desse conceito, dessa glamourização que existe por trás do zine, do independente e tudo mais, pra poder também trazer isso pro lado deles. Esses veículos maiores têm essa questão de sempre se apropriar de coisas menores pra integrar. Mais um exemplo é o grafitti, que está na rua, mas daí você vê uma loja da Nike e tem um grafitti da Nike lá dentro. Ou seja, o cara tira da rua, coloca dentro do conceito dele que é street, porque virou uma moda, um estilo – no sentido mesmo de que o conceito de moda é o independente hoje em dia; é o grafitti, a pixação – até por isso que eu prefiro a pixação, acho muito mais bonito. E a escrita, os quadrinhos também fazem parte disso. Os músicos independentes, porque a música também está nessa: você vê um festival de bandas independentes, um festival de músicos independentes; e o festival, na verdade, não é um festival independente, ele está usando as bandas independentes para o festival, mas o festival é patrocinado por isso, por aquilo. Isso já fugiu tanto de um controle, que eu não sei até que ponto a gente deve achar isso bom ou ruim, porque é muito delicado, na verdade. Você chega ao festival, você vê que eles estão expondo uma galera para um número de pessoas muito maior e tudo mais… Esse caso do evento da Redley: você está expondo os zines para pessoas que não conheciam antes, mas e aí? Até que ponto a gente entra nesse debate “está se perdendo ou não está?”. Eu, sinceramente, acho tão complicado que nem tento mais conceituar essas coisas. Não sei qual seria minha reação se eu fosse convidado para algo assim, espero que nunca aconteça, porque eu não saberia lidar. Realmente é muito complicada essa questão de “até que ponto o independente é independente, até que ponto as coisas são dependentes”.
Como você está vendo os protestos da greve dos professores no Rio de Janeiro? Eles têm apoio da população?
CO: Eu sou professor só há 5 anos e não aderi à greve, porque não sou funcionário público, trabalho na rede privada. Na rede privada não existe greve. Eu participei de algumas manifestações recentes dos professores e acho interessante, porque eu estou vendo, finalmente (não que não existisse antes), estou conseguindo presenciar a educação voltando pro viés político que sempre teve que ter, porque eu sempre enxerguei o professor como política. É legal você chegar e ver isso tudo acontecendo. A única coisa que complica um pouco é a própria mídia, na verdade, que separa muitas coisas. Um jornalista do jornal O Dia, lá do Rio, nunca foi às manifestações, mas é especialista em manifestações: sabe quais são os vândalos, sabe quem é o Black Bloc, sabe quem é o professor; sabe tudo. Isso é complicado. Se você pega um jornal e vê “vândalos destroem não sei o quê”, entra em toda aquela discussão que está acontecendo de junho pra cá: vandalismo ou não nas manifestações – eu sou totalmente a favor, no sentido geral. Acho legal, porque os professores declararam apoio ao Black Bloc ultimamente. Isso foi muito emocionante, porque realmente você vê que sua classe está participando de uma luta, independente de como essa luta é enxergada pelo resto da cidade, essa luta está acontecendo. Greve de professor, manifestação de professor é algo que já virou quase cultural. Todo o tempo você vê professor de universidade em greve, professor em greve, mas dessa vez eu enxergo um diferencial (não desmerecendo a luta ate então) – no fato de que se aproveitou o momento de fervor no Brasil para, finalmente, entrar nesse mérito da educação. Agora não dá mais pra ser, vai ter que mudar isso aí. A gente está em greve, mas não é só pra voltar. A gente não quer mais voltar, não está dando pra trabalhar, a gente não tem recurso pra trabalhar, não tem dinheiro. Eu acho que está pra mudar – eu não costumo ser otimista com as coisas, mas realmente consigo enxergar essa luta como uma luta de avanço, porque está acontecendo há muito tempo e o apoio social está sendo muito grande dessa vez.
Na época das manifestações de junho, eu não entendo porque tava ali pessoal que beijava mão de polícia – eu não consigo compreender isso acontecendo dentro de uma manifestação, de um movimento social. Na verdade, o movimento social não fazia parte de nada daquilo…Alguns faziam, mas eram totalmente engolidos por toda uma massa de manobra. Hoje em dia, percebo que essa galera da massa de manobra voltou pra casa, “o gigante” voltou a dormir e agora está só a galera que realmente quer, junto a outras pessoas que estão se identificando, estão apoiando. Eu consigo enxergar um futuro nisso aí, espero que esteja certo.
Como você acha que a arte pode ser uma ferramenta para levar o debate contra-hegemônico para questões sócio-políticas que envolvem, inclusive, o mercado da educação? Como você enxerga o papel da arte nesse sentido?
CO: Bom, como eu disse, tudo é muito pessoal que eu faço, mas chegou um ponto que eu tava sendo muito divulgado. Eu percebi que (não eu, necessariamente) aqueles quadrinhos estavam servindo como formadores de opinião. Aí sim eu enxerguei a importância de fazer alguns quadrinhos que tivessem o cunho mais político, mas eu tento nunca me forçar a fazer isso. Sempre quando for espontâneo, acho que espontaneidade é o grande segredo que eu uso pra fazer o que eu faço. Eu acho legal isso acontecer, porque acaba levando para pessoas que nunca tiveram esse tipo de pensamento. Uma pessoa que simplesmente gosta de quadrinhos, se um dia ela abrir a página e ver um quadrinho que fale sobre a situação social atual, sobre as manifestações, sobre tudo isso – por mais que na hora ele ache só que é um quadrinho ruim, pode ser que alguma dessas perceba que existe uma discussão acontecendo. Acho que a importância está nisso aí. Eu não sou um Latuff que exatamente pega nesse ponto, mas eu enxergo a importância desse ponto e tento sempre deixar claro.
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