O vizinho Uruguai, país ao sul do continente americano, há tempos é reconhecido como uma seara de inovações sociais para os padrões políticos vigentes em grande parte das nações ocidentais. Laico desde 1917, o país foi o pioneiro regional ao permitir o divórcio de iniciativa da mulher em 1913. Em comparação ao Brasil, sobre pautas populares relevantes, o país de Nacho Verrastro aboliu a escravidão quarenta e seis anos antes que o irmão de idioma português. Outro exemplo diz respeito à lei do divórcio: até 1977 brasileiros mudavam-se ou viajavam até o Uruguai a fim de casarem-se pela segunda vez com parceiros diferentes, já que lá o direito ao divórcio havia sido instaurado em 1907.
É um país nanico, mas de leis avançadas. A primeira mulher a votar na América do Sul foi uma brasileira, Rita Ribera, em julho de 1927. Mas seu voto foi depositado em uma das urnas de um plebiscito, que permitia o voto de qualquer pessoa, ocorrido no Uruguai, primeiro país latino-americano a aprovar o voto feminino. A Constituição de 1917 outorgou às mulheres uruguaias o direito ao sufrágio, regulamentado como lei em 1932.
No mesmo ano em que o deputado brasileiro João Campos (PSDB-GO) propôs que a resolução do Conselho Federal de Psicologia fosse mudada, permitindo que profissionais da área trabalhem a “cura gay” (o próprio Conselho repudia tal ação política), como ficou conhecido o projeto na Câmara, a Câmara dos Deputados do Uruguai aprovou, na madrugada do último dia 12 de dezembro, com ampla maioria, o projeto de lei do matrimônio igualitário, que dá a casais homossexuais os mesmos direitos e obrigações dos casais heterossexuais.
Em outubro deste ano, o Senado uruguaio aprovou a descriminalização do aborto até o primeiro trimestre de gestação. A lei estabelece que toda cidadã do Uruguai que desejar fazer aborto seja acompanhada por uma equipe de ginecologistas, psicólogos e assistentes sociais. Após receberem informações sobre riscos e alternativas, as mulheres que optarem pôr fim à gravidez, poderão realizá-lo imediatamente em centros públicos ou privados de saúde.
Nacho Verrastro é estudante de Educação Física e milita pela abertura social do uso, cultivo e comercialização de maconha. Ele veio ao Brasil para debater outro projeto de lei em tramitação no Uruguai que estabelece o país como o mais progressista em toda América Latina. O governo de Pepe Mujica anunciou, há alguns meses, o projeto de lei que legaliza e regulamenta a venda de maconha no Uruguai. Na última terça, dia 18, entretanto, Pepe pediu aos legisladores da Frente Ampla, partido do governo, que freassem a tramitação da legalização da compra e da venda. O presidente reconheceu, com 64% da população contrária, que “a sociedade não está madura para isso”. Nacho esteve em Santa Maria durante o Novembro Verde, atividade realizada pelo Coletivo Verde de Santa Maria, para discutir Drogas, Saúde Pública e Cidadania.
Segundo o governo federal, o objetivo da legalização e da produção pelo Estado é o de combater a criminalidade, o narcotráfico e a pasta base, considerada mais nociva aos usuários. “A droga não nos preocupa tanto. O preocupante é o narcotráfico”, disse o presidente Pepe Mujica em entrevista à BBC Brasil. A provação do projeto busca repreender o narcotráfico, criando um sistema no qual a produção, a venda e o consumo sejam conduzidos pelo país.
Foi sobre este e outros temas que Nacho Verrastro conversou com a equipe da revista o Viés em meio aos debates realizados pelos coletivos santa-marienses sobre o uso, a legalização e a produção de cannabis sativa, trazendo em vários momentos questões como a expectativa referente à aprovação do projeto de lei, o debate e a opinião pública dos uruguaios sobre o assunto. Leia a conversa na íntegra abaixo.
revista o Viés: Nacho, os movimentos no Uruguai, na América Latina em geral, não nos são midiatizados. Os nossos grandes jornais não falam sobre isso e se falam deturpam. Então, para começar, gostaríamos de saber quem constitui o movimento no Uruguai? É um movimento de jovens ou de adultos? Classe média, classe baixa?
Nacho: Há uma clara composição do movimento por parte dos jovens, isso é bastante claro. Se vê e as pesquisas, os estudos de opinião pública mostram que os jovens estão muito mais a favor desta demanda, digamos. Dos meios de comunicação massivos no Uruguai há uma certa cobertura do tema sim, mesmo que às vezes seja tratado de forma superficial. Mas há uma cobertura constante do tema, até porque tem sido um tema dos partidos políticos e os partidos políticos estão sobre o governo – no sentido de agenda pública – dos meios de comunicação. E agora o tema se converteu em um tema de governo, então é muito mais coberto, o presidente levanta esse tema. Há alguns anos não era tão fácil ingressar com esse tema na imprensa. Foi tipicamente tomado pela urna, no sentido de que, por exemplo, quando houve uma das primeiras marchas de legalização, os informes nas eleições eram dirigidos para os “companheiros que estão aí mais atingidos, destruídos pelas drogas”. Estigmatizou o assunto um pouco. De pouco em pouco temos tentado transcender essa forma de ver, ainda que ela permaneça, mas temos conseguido outros canais de comunicação e outros espaços.
: A imprensa, então, está massivamente falando sobre o assunto da legalização da maconha, mas ainda com estereótipos?
Nacho: Sim, às vezes sim, mas já um pouco menos. Isso se mantém, mas também há outro tipo de cobertura dos meios porque está aparecendo [a legalização] como algo possível. E, bom, se é algo possível, então há que começar a falar sério sobre o que pode acontecer. Não é algo que ‘ah, talvez aconteça’. Está se discutindo, temos um projeto de lei que está sendo discutido pelo presidente, então isso tornou-se parte da agenda. É como em quase todos os países: quando o presidente fala sobre, a agenda se quebra, já não é uma agenda só dos movimentos sociais, mas a partir daí se converte em uma agenda de governo. Isso tem coisas muito boas e algumas coisas mais ou menos, porque o governo também se equivoca na maneira como vai introduzir o tema. Mas dentro o tema está dentro da agenda. O presidente, na semana que falou sobre o assunto, foi capa de todos os diários. Faz pouco a BBC de Londres veio fazer uma entrevista com o Mujica em sua chácara. O New York Times também falou sobre isso.
: Era uma pauta do presidente ou os movimentos sociais fizeram o presidente pensar sobre isso?
Nacho: Não, não era uma pauta do presidente. Na realidade, é uma demanda dos movimentos sociais e de alguns setores da esquerda. Conforme a chegada do partido do presidente ao governo, isso foi sendo assessorado e alguns setores da esquerda motivaram-se a fazer um projeto de auto cultivo. No Uruguai, o consumo é legal há muito tempo, desde 1976. Está muito legitimado. Fuma-se nas ruas e se passa um policial ao lado não acontece nada, não é problema. Mas acontece que nenhuma das vias ao acesso da marijuana é legal. Nós costumamos dizer que a única forma de ter é que caia do céu, porque nenhuma forma de acesso é legal, nem a plantação, nem a compra, nem cultivo, nada. Então o primeiro passo foi introduzir uma via de acesso legal, e isso foi um projeto de movimentos sociais e de um deputado que pensava no auto cultivo legal. Esse projeto move um pouco o tabuleiro, digamos. Esse projeto faz pensar na habilitação do auto cultivo, na habilitação da plantação e de uma comercialização e na conformação de clubes de cannabis, que seriam associações civis de vários cultivadores que compartilhariam o cultivo. Essas seriam as três formas de acesso que estão no projeto atual. Mas respondendo a pergunta, anteriormente foi um projeto dos movimentos sociais e de alguns setores de esquerda do partido que integra o governo, a Frente Ampla.
: Há alguma meio de comunicação alternativo utilizado pelo movimento?
Nacho: Tivemos algumas ferramentas alternativas para difundir esse tipo de coisa, como o uso das redes sociais, que começaram a ser utilizadas bastante, e os canais do Estado, que não são uma ferramenta alternativa mas são bastante abertos à proposta. E, como falávamos antes, o Uruguai é muito pequeno, é fácil chegar aos grandes meios de comunicação, é simples. O diário mais importante do país, que se chama El País e é conservador, para nós, que estamos em um ciclo universitário ligado à política, é simples contatá-lo. Não é tão complexo como em outros países, mas claro, a cobertura que fazem sobre o tema é outra coisa… mas fazer com que eles cubram e olhem a notícia é fácil. Nós temos companheiros que trabalharam nesse diário, sempre tem algum amigo que trabalhou ou que tem algum conhecido, então o círculo é mais simples, ainda mais no mundo político. No Uruguai existem ministros que andam de ônibus, senadores, deputados, então é algo mais próximo, mais simples. Depois há o caso de um diário de esquerda, que se chama La Diária, que é um diário que quando assinas chega sempre todos os dias na porta da tua casa. É um diário que veio a ocupar um espaço muito interessante, que estava um pouco perdido, que é um meio de imprensa com um olhar progressista, é um diário que tem realizado uma cobertura bastante constante sobre esse tema e sobre outros que meu coletivo trabalha, como a legalização do aborto, direitos humanos, o tema da diversidade sexual… Estamos tentando conformar uma agenda de direitos que têm algumas coisas em comum. Agora pouco se aprovou uma lei que legaliza o aborto dependendo das circunstâncias, e é um projeto muito bom. Também há uma discussão sobre o matrimonio igualitário que seguramente aprovaremos (já aprovado). Estamos conseguindo alguns avanços importantes.
: Vocês têm uma direita radical que “bate” todos os dias em vocês?
Sim, não é tão radical, mas sim. Não é uma direita radical tão forte, mas claro, é uma direita que está se opondo a tudo isso. Não há uma matriz liberal que ascende a todos os partidos políticos. Nenhum desses dirigentes vai votar a favor do casamento igualitário, como não votaram no projeto do aborto e, talvez alguns por serem liberais, votam no projeto da marijuana.
Entra a população há uma percepção de alguns temas libertários, porque há raízes mais profundas, anteriores. Uruguai foi um dos primeiros países da América que separou a Igreja do Estado, aprovou o divórcio há tempo, o voto feminino, e isso está encarnado na população. Mas, claro, a direita existe e a direita é forte. Agora se aprovou o projeto do aborto e querem referendá-lo, estão juntando votos para fazer um referendo. Mas as pesquisas mostram que 60% da população é a favor do aborto e a direita têm mais que 40% de votos a favor [do aborto]. Portanto, tem gente de direita que vota a favor, há partidos tradicionais que apoiam o projeto.
: Tu falaste anteriormente dos equívocos do governo no que se refere à maneira como está tratando o tema da legalização da maconha. Quais seriam?
No governo, sobretudo, há alguns equívocos de comunicação sobre o assunto. Lançam a proposta, mas é uma proposta que parecia não compreender a força do projeto, não ultrapassava além do que se tinha. Perguntavam ao governo como ia fazer, como ia ser legalizada, como se ia comprar, e aí vários ministros disseram coisas diferentes. Uns falaram que ia ter que devolver a ponta, a bituca, que ia ser numerada, também se disse que não ia ser habilitado o auto cultivo, e na verdade vai sim, então houve distintas vozes que a princípio deixaram a proposta com uma cara de que não estava consolidada, que não era séria. Mas agora há um projeto escrito e esperamos que antes do fim do ano a Câmara de Deputados aprove o projeto, vamos ver, estamos tentando. No ano que vem poderiam votar o projeto a Câmara de Senadores.
Alex Monaiar (estudante de Psicologia): Como pensar uma política internacional de drogas, pensando nos vizinhos e no papel do Uruguai?
O papel do Uruguai para uma mudança na política internacional de drogas tem sido muito interessante e foi mais forte no governo passado do que neste, que quis criar uma imagem com essas mudanças. Conformou-se um bloco com alguns países da União Europeia e com alguns países latino-americanos com a intenção de mudar alguns pontos na política internacional de drogas das Nações Unidas. O Uruguai propôs que a política de drogas tenha um enfoque de direitos humanos. Houve uma proposta feita pelo Uruguai que foi patrocinada por Argentina, Brasil, Bolívia e Chile. E há uma certa possibilidade de gerar um bloco inovador com alguns países da Europa e o Canadá, mas esses ainda são minoria. Para alguns países, a política de drogas é muito complicada. Para alguns países asiáticos há pena de morte ou prisão perpétua, nos Estados Unidos as cadeias estão cheias de usuários, na Europa do leste há muitos problemas com a heroína e ainda não se foi adiante com a política de redução de danos, de substituição por metadona, que é outra droga.
Creio que há possibilidade de armar-se um bloco de trabalho a nível internacional e que, bom, as pequenas mudanças podem ser quebras, sobretudo a nível regional. Acredito que as mudanças no Uruguai podem ser uma quebra a nível regional. Argentina está querendo avançar, no Chile tem gente introduzindo o debate. O Uruguai está muito avançado em relação a outros países. Há estudos realizados por universidades latino-americanas que apontam a aprovação dos países sobre o consumo de maconha. Mesmo que já seja legalizado, no Uruguai a aprovação entre a população é de 32%, deixando para trás Argentina, Chile, Brasil e Bolívia. E também no Uruguai há sobretudo um movimento juvenil, porque esse estudo também mostra a porcentagem de aprovação entre adultos e entre jovens. No Uruguai é onde há a maior diferença: 45% dos jovens a favor e 27% dos adultos. O Chile também tem bastante diferença, mas no Brasil há pouca e na Argentina também. No Uruguai há um movimento juvenil que já vê esse tema como superado. Bom, há possibilidade de mudar a política, mas também é necessário haver um trabalho a nível social. Na Bolívia há toda uma política pela folha de coca que é bastante interessante mas, claro, lá se tem outras raízes, vinculadas aos povos originários, mas poderiam começar a dar-se conta de que as políticas de drogas não têm que estar tão atadas a uma só substância. É necessário haver uma política geral que relacione todas as drogas e que faça ajustes para cada substância. Cada substância tem sua particularidade, mas pode haver uma política geral.
: E a porcentagem da população que é usuária no Uruguai?
Nacho: A população que já usou alguma vez na sua vida ronda o 12%, mas pode ser uma vez na sua vida. E a porcentagem de uso habitual ronda o 4% ou 5%. Podes ver que é muito superior o primeiro dado, pois tem muita gente que decidiu consumir marijuana alguma vez e já não o fazem mais, e o 4% ou 5% que fazem uso habitual jogam por terra o que dizem que uma vez usando se entra ao uso de drogas e há uma escalada como marijuana-cocaína-crack. Esse dado desmistifica um pouco esse assunto de que quem usa marijuana pode vir a usar outra coisa.
: Qual tu achas que vai ser o projeto aprovado? Há alguns tópicos do projeto que podem ser vetados?
Nacho: Não, eu creio que não, tenho esperança de que o projeto vai ser aprovado, mas em todo o caso, pensando num cenário mínimo, o auto cultivo passaria e o resto não, porque a comercialização e a plantação implicam em uma quantidade enorme de normas, como quem consegue a semente, quem controla, quem planta, o tamanho da plantação, que não seria muito grande, claro. A comercialização é um processo muito mais complexo. Eu lhes contava que havia um projeto que queria somente o auto cultivo, queriam fazer o mais simples e o mais rápido para dar uma via de acesso à substância. Nesse projeto haveria a comercialização e os clubes de cannabis. Mas eu creio que a aprovação vai ser integral, se tivermos sorte. E os clubes de cannabis nos interessa bastante porque há algo de uma autogestão, de gerar algum conhecimento coletivo. Esses clubes funcionam, por exemplo, no País Basco e na Espanha, e partilham conhecimento da substância, conhecimento dos riscos à saúde e isso gera uma construção coletiva que para nós parece muito interessante. Não é tanto o caráter individual como o consumo, os clubes parecem interessantes.
: O Uruguai tem também, como no Brasil, um crescimento no uso de crack. A mídia consegue fazer a diferenciação de uma coisa para outra? E os movimentos citam a liberação de maconha como uma fórmula de restringir, de maneira legal, o uso de outras drogas?
Sim, a nível mediático é difícil essa questão da pasta base porque é uma substância que, digamos, pode gerar uma dependência rápida e gerar no usuário algo de violência. Às vezes sucede, mas nem sempre, e se vincula isso a uma atitude de mera violência. O que antes poderia ser um roubo passa a ser um roubo e o ladrão atira no comerciante. Isso complexifica o debate, mas nosso horizonte é de que todas as drogas podem viciar, inclusive as mais amenas, as drogas que geram menos danos à saúde. O que temos que ter claro é que há dois possíveis danos: um é o dano que gera a substância, substância que gera o mesmo dano se continuar proibida; outro é o dano relacionado a como você elege que essa substância te regule. O dano sempre vai existir porque é impossível que se elimine isso. O que temos que decidir é sob qual marco legal essa substância gerará menos danos e menos problemas. Cremos que temos que eleger o marco da legalidade da substância, pois gera menos danos e problemas, inclusive para drogas que causam mais danos à saúde. Sendo legais, provavelmente causem menos danos à saúde. Melhora a própria droga, acerca o usuário do sistema de saúde. As substâncias podem causar problemas, mas se fossem legais o tratamento do usuário seria legal. Ao contrário, o usuário segue sendo um ser escondido.
Debates progressistas e os olhos no Uruguai, pelo viés de Bibiano Girard, Caren Rhoden, Liana Coll e o colaborador Alex Monaiar*.
*Alex é estudante de Psicologia e integrante do DCE-UFSM.
Parabéns galera! Muito boa matéria, muito bom trabalho! E obrigado por essa importante contribuição para o “Novembro Verde” e para o Coletivo Verde!
Abraços
Obrigado Alex! Nós é que agradecemos! Abração.