Nas cidades, em muitos momentos, nos sentimos solitários e passageiros. No mês de junho deste ano, especificamente, um movimento surgiu nas ruas dessas tais cidades, as brasileiras. Em uma semana, manifestações pularam dos 200 integrantes para milhares – para um milhão, ao total. E, de repente, o sentimento era de que não se estava mais sozinho nas ruas, fossem essas mesmas ruas a de uma cidade grande, média ou de uma pequena. As pessoas se reconheciam nos caminhos e, juntas, ocupavam os espaços que lhes são de direito – espaços mais importantes e de uso melhor do que apenas o de passagem.
Em Santa Maria, as manifestações tomaram as mesmas dimensões: 20 mil, 30 mil pessoas saíram de suas casas e tomaram o espaço público para protestar. Neste momento, a ideia de um aglomerado midiático alternativo tinha o respaldo do momento espontâneo que vivíamos.
O TrançaRua delineou suas ideias e aglomerou seus objetivos: jornalistas (mas não apenas), comunicadores, historiadores, publicitários, estudantes de Comunicação –a partir de uma conversa e debate iniciais, delimitou-se o foco e o locus da nossa ação – as manifestações em Santa Maria. O material seria composto de vídeos, fotos, atualizações em redes sociais, textos e matérias sobre as atividades. Entre manifestantes e comunicadores, as ruas fizeram seu protesto e também a sua comunicação: abordagem ao lado e em conjunto com o povo.
Das manifestações, seguiu-se o debate acerca de uma das pautas mais importantes para as cidades: o transporte público. Mais uma vez, nossa tentativa foi a de não reduzir a discussão a meros “trancamentos de ruas e vias”, “manifestantes interromperam o trânsito”… O trânsito já está terrivelmente interrompido. O TrançaRua veio também para, além da discussão da comunicação alternativa, pautar o direito à cidade – parte disso um resultado do transporte público de qualidade.
Dentre os debates de acesso à cidade, no dia 25 de junho – data em que um novo protesto estava agendado para ocorrer na cidade – a Polícia Civil entregou uma cópia dos áudios e da transcrição de uma conversa interna da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Kiss aos vereadores da Câmara. A conversa vazada foi o ponto final para a sustentação da CPI e o inicial para um movimento que surgiria, aglutinado em torno do debate do transporte e da reivindicação da justiça do caso Kiss, para ocupar a Câmara de Vereadores de Santa Maria. Ainda na noite do dia 25, manifestantes fincaram o pé na Casa do Povo e de lá não sairiam até o dia 1 de julho. De acordo com o Manifesto do movimento, publicado no dia 27 de junho, “Nós, cidadãos santa-marienses, estamos há 31 horas ocupando pacificamente a Câmara de vereadores de Santa Maria. Viemos para a Casa do Povo para exigir dois direitos sociais básicos: transporte público e justiça”.
A ocupação da Câmara sinalizou um alerta ao TrançaRua, recentemente organizado para a cobertura das ruas: agora, de dentro do prédio sisudo da Casa, o trabalho era acompanhar, 24 horas, durante todos os dias em que a Ocupação por lá permaneceu, e passar a exercitar a tarefa de agente comunicador – e auxiliar comunicativo – dos manifestantes e da sociedade. Ganhamos força. Na parede do prédio, pixado num vermelho muito vivo, Ferreira Gullar nos atinava para que uma parte de mim é multidão.
Uma parte nossa é todos e qualquer um.
O TrançaRua, assim denominado por questões semânticas, definiu que somos a mistura das ruas que se fecham – pelos movimentos que delas se utilizam, a elas se misturam e nelas solidificam suas pautas – e que, após as mobilizações em todo o país, se abrem para novas perspectivas e objetivos. É claro que uma iniciativa de comunicação alternativa e coletiva não irá abarcar tudo sempre, ou contemplará a todos a qualquer hora. Porém, somos a tentativa da síntese e a perspectiva para o diverso.
As ruas não trancam, elas trançam – se envolvem, se relacionam e se solidificam. E nós fazemos o mesmo.
[EDITORIAL] UMA PARTE DE MIM É MULTIDÃO, pelo viés da Redação