Se o tema escolhido pelo editorial dos jornais da RBS (Democratização da Mídia?) desta segunda-feira (15 de julho) inicialmente surpreende, o sinal de interrogação que acompanha o título do texto serve para recobrar-nos do susto imediato, estabilizar os sentidos e recolocar tudo em seu devido lugar. Depois de apresentar a intenção de desconstruir a pauta de diversos movimentos sociais do país, a peça editorial faz o que é especialidade deste grupo: distorce informações, ignora o que de mais importante existe no debate, reduz pautas históricas a “coisas de minorias” e apela ao argumento das “ideologias radicais”.
Não há muito que se esperar de um manifesto de latifundiários a respeito da reforma agrária; ou de empresários que exploram o transporte público como um negócio a respeito da proposta de tarifa zero; ou de industriários sobre a redução da jornada de trabalho de seus operários. Da mesma maneira, não é possível esperar que a manifestação institucional de um veículo de comunicação que é parte de um dos maiores oligopólios do ramo no país fuja à auto-defesa. Não surpreende, também, que a defesa do próprio negócio – porque é disso que se trata – deslize para o ataque àqueles que os questionam e proponha, estrategicamente, a interdição de qualquer debate efetivo a respeito do tema da Democratização da Comunicação.
As estratégias de deslegitimação de pautas dos movimentos sociais e mesmo da possibilidade de discutí-las não costumam variar muito: por vezes apontam que a pauta apresentada é antidemocrática e fere os princípios básicos que regem a vida em sociedade; em outras, destacam a falta de representatividade e amplitude das pautas, afirmando que expressam apenas os interesses escusos de uma minoria invariavelmente autoritária. O paradoxal é que o recurso à defesa dos valores coletivos, da sociedade e de um modelo de democracia que funciona apenas como carcaça para um sistema político excludente (ele próprio, alvo dos questionamentos de boa parte das manifestações) só aparece em um contexto muito específico: o da defesa de um negócio particular e de uma minoria de empresários que é, essa sim, menor do que qualquer outra que exista em nosso país.
A constatação dos editorialistas é de que os meios que são especialmente hostilizados nas recentes manifestações pelo país são os líderes do mercado. Dessa consternada observação, pode-se perceber a incapacidade dos grandes veículos em compreender que nem todas as questões – dentre elas, a comunicação social – podem ser reduzidas aos parâmetros do mercado e, consequentemente, a números e valores. A hostilização das “empresas-líderes” não é parte de uma conspiração para que estas sejam suplantadas por concorrentes que, sem esse recurso à sabotagem, seriam incapazes de sobreviver à suposta imparcialidade do Grande Juiz, o Mercado. Trata-se, pelo contrário, de demonstrar que a Comunicação, como direito de todos e como espaço de circulação e construção de sentidos, não cabe dentro da lógica auto-legitimadora do mercado.
O editorial insinua, mais de uma vez, que as pessoas que se manifestam e “hostilizam” os grandes meios de comunicação não sabem o que fazem, são marionetes que seguem palavras de ordem implantadas por “pseudolideranças avessas ao pluralismo de ideias e opiniões”. Apesar da presumível incapacidade intelectual e cognitiva dos manifestantes que questionam os oligopólios da mídia, segundo o editorial da RBS não há motivo para se pensar em algo como a democratização da comunicação, pois os meios existentes, além de diversos e plurais, “já são submetidos diariamente ao mais eficiente dos controles, a escolha livre do público”.
Assim, seguindo o raciocínio expresso no editorial, quando questionam o modelo vigente, as pessoas são manipuladas; quando aceitam resignadas as regras impostas pelos que detêm o poder econômico, são livres e conscientes.
Quando advogam em nome de suas cifras milionárias e do controle que efetivamente exercem sobre os assuntos que podem e devem atingir as camadas mais amplas da população, os poucos e poderosos empresários da Comunicação defendem que esta área deve ser regida unicamente pelo funcionamento tautológico da relação credibilidade da mídia/liderança no mercado: os “líderes do mercado” só o são porque têm credibilidade do público; a credibilidade só existe porque os meios submetem-se à natural e automática regulação garantida pelo mercado. A história da constituição da estrutura dos oligopólios midiáticos do país, que envolveu uma mistura de clientelismo, promiscuidade com a ditadura militar e ilegalidades flagrantes – como foi o caso da criação da Rede Globo – simplesmente desaparece.
Também desaparece, como em um passe de mágica, a óbvia cobrança que deve receber uma empresa que atua a partir de uma concessão pública para veiculação de informação, ou seja, formação, e que não apenas não cumpre sua função social e educativa, como reproduz os valores opressores e excludentes de uma sociedade conservadora e intolerante.
A liberdade de expressão restrita aos moldes do mercado e a pluralidade das informações e dos sentidos que dela advêm assemelha-se, em grau e diversidade, à Assembleia das Aves que nos é relatada pelo escritor uruguaio Eduardo Galeano: frente ao arroubo democrático do cozinheiro, que lhes perguntou com que molho gostariam de ser cozidas, as aves decidiram em assembleia que preferiam, na verdade, não serem comidas. A resposta do cozinheiro – “isso está fora de questão!” – é análoga à liberdade que têm o “público” livre idealizado pela RBS e seus companheiros oligopolistas: pode-se escolher entre um restrito punhado de meios privados, possuidores de concessões públicas ou recheados de gordas publicidades estatais.
Eles não diferem muito entre si, as perspectivas que apresentam e as vozes que reverberam são de exemplar unilateralidade. Se alguém não se sente contemplado pela predominância dos sotaques e assuntos do sudeste brasileiro, pela falta de espaço e vontade para questionar a opressão de gênero, cor e sexualidade (combinada com sua cínica reprodução), pela predominância inquestionável dos valores da classe média branca conservadora, a resposta que obtém ao buscar o que não aparece no limitado cardápio disponível é simplesmente: isso está fora de questão!
O poder de escolha, então, aponta que nos resignemos e desliguemos a televisão, não compremos o jornal ou não ouçamos o rádio. Somos, afinal, uma minoria movida por “ideologias fundamentadas no radicalismo”. Que esse radicalismo seja o da luta por dignidade, diversidade e debate verdadeiro dos temas profundos de nossa sociedade, isso também está fora de questão. Com esse editorial e os que ainda virão, os meios que nunca souberam lidar, na pluralidade que afirmam ter, com a dissonância que questiona seus valores mais fundamentais, apenas defendem seu poder e seus negócios dos que querem liberdade para escolher um pouco mais do que o molho com que serão comidos.
A ASSEMBLEIA DAS AVES DA RBS, pelo viés da Redação e TrançaRua
Discordo dessa afirmação. O padeiro da esquina é tão empresário quanto os donos das empresas maiores e famosas. Empresários não são minoria, minoria são os grandes empresários. A dona do salão de beleza, a dona da Pet Shop, o dono de Lanhouse, o dono de van que emprega motoristas, o dono da lancheria, etc. Esses são todos empresários. Não se pode vulgarizar a palavra e minimizar toda uma classe de pessoas que fazem a economia girar e dão emprego. Podem ser minoria em número mas não em valor. Concordo com a crítica ao monopólio, mas não à atividade do empreendedorismo. Ser micro ou pequeno empresário no Brasil é uma escolha louvável e sacrificante, porque as adversidades são abismalmente maiores do que ser um empregado.