Um mapa de uma cidade por si só não diz muito. Mas, se agregarmos dados às regiões, resultam algumas observações importantes sobre distribuição étnica e sexual, média de idade e de renda, entre outros indicativos. Mais que tudo, me chama a atenção quando observo os dados do censo do IBGE de 2010, divulgados no fim do ano de 2011, a disparidade de renda entre as algumas regiões, o que leva a pensar na questão da segregação urbana de classe.
São bairros a leste, oeste, centro-leste, centro-oeste, sul, norte, nordeste e o centro urbano. Entre as oito divisões, sete são as que concentram maior parte da população com renda entre meio a dois salários mínimos. No sul, norte e oeste pouco mais de 50% da população encontra-se nessa faixa salarial. No centro-leste, centro-oeste e nordeste mais de 40% e no leste, 38,69%. Apenas o centro urbano possui menos de 30% da população com renda até dois salários. Nota-se, assim, que a divisão espacial do mapa deixa de ser uma simples questão de reconhecimento das regiões da cidade. Os traços observados na figura há muito representam uma clara divisão regional por critérios de classe.
Vários são os tipos de segregação. A mais comum nas cidades, hoje, é aquela que acontece em decorrência da situação socioeconômica dos habitantes. Classes privilegiadas costumam eleger pontos para viver. Como possuem maior poder de compra, acabam por concentrar os mais variados tipos de serviços ao seu redor. Em Santa Maria, esse fenômeno mundial se confirma. A rede geral de saneamento, um dos serviços mais básicos, por exemplo, chega a pouco mais de 95% das moradias centrais. No leste, chega a apenas 37,96% e no centro-leste, a 27,73%.
A segregação espacial causa o aprofundamento das desigualdades. O centro, ponto de forte comércio e serviços gerais, é onde o preço dos imóveis, por exemplo, é mais elevado, o que acaba selecionando quem pode ou não morar na região com base em critérios de poder aquisitivo. Me lembro bem de quando fomos entrevistar o secretário de habitação e regularização fundiária, Sérgio Cechin, sobre a ocupação da Gare, e ele comentou: “Ali [a região da Gare] é uma área nobre, não é? Imagina se essa moda pega!”. Ou seja, a própria administração municipal estimula a segregação social (lembrando que a prefeitura move processo para retirar as dezenas de família da ‘área nobre’, mesmo elas estando lá há mais de 20 anos e mesmo a ocupação tendo atingido proporções de bairro). Os condomínios residenciais de elevado padrão, por sua vez, crescem em grande parte na área leste da cidade, justamente a segunda que possui menor população com baixa renda. Os condomínios fechados constituem-se a figura mais emblemática do fenômeno de auto-segregação das classes mais altas, frequentemente imersas na ‘cultura do medo’.
A estigmatização de determinadas regiões como áreas de violência, por exemplo, é algo que faz com que entre a classe média e alta se determinem quais locais são ‘liberados’ para sua circulação. Há a diminuição das relações de socialização da cidade como um todo e, em função disso, uma individualização, na medida em que a identidade dos sujeitos tende a não se relacionar ao todo da estrutura social urbana. Em contrapartida, em bairros mais pobres e marginalizados ainda ocorre um fenômenos de solidariedade entre os moradores (mais frequente e forte quando há uma identidade relacionada à profissão ou a alguma prática cultural em comum), que costumam unir-se em defesa das causas demandadas pelo grupo.
A individualização acaba mostrando-se também na forma de administrar as cidades. Problemas são tratados como localizados e não como da cidade. Os cidadãos são olhados a partir da região em que vivem e do poder aquisitivo que possuem, e os esforços que o governo da cidade faz para sanar algum problema frequentemente demandam um esforço grande dos grupos que o sofrem. O resultado é o utilitarismo dos administradores, que tendem a tratar a resolução de problemas como benefícios concedidos. Ou seja, mascara-se a obrigação com uma roupagem de concessão.
A segregação não é de agora, tem raízes e desenvolvimento em diferentes épocas e decisões políticas. A diferenciação do que é terra pública e o que é terra privada, por exemplo, com a Lei de Terras da metade do século XIX é uma das causas. O modelo agro-exportador brasileiro, do mesmo século, também contribuiu para que a segregação social ocorrese, já que projetos de embelezamento das cidades e ocultamento da pobreza foram implantados para que os centros do Brasil não refletissem uma situação de ‘atraso’ econômico. No século XX, a crescente indrustrialização e o crescimento urbano jogaram milhões de brasileiros, atraídos pela ideia de ‘trabalho livre’, às margens das cidades, onde formavam bairros operários e, também, em algumas cidades, começavam a formar as favelas. Havia uma divisão espacial baseada nos papeis que os indivíduos possuiam na divisão do trabalho, divisão que persiste até hoje.
Ao contrário do que se é conduzido a pensar, a segregação não possui caráter voluntário. O processo acontece de forma involuntária, ainda que muitas vezes seja apontado como inerente às cidades. Não é natural. É, sim, resultado de um dos instrumentos de controle que as classes dominantes utilizam para reproduzir tanto tempo quanto for possível a concentração de riquezas – com auxílio do poder público muitas vezes (especulação imobiliária, favorecimento de certos grupos para o comando de serviços básicos, como transporte, são dois exemplos de alianças entre classes altas e poder público bem conhecidos em Santa Maria). Onde há maior concentração de renda, existem as melhores vias de transporte, as taxas mais altas de eletricidade, água encanada, áreas de lazer, entre outros . Onde há menor, nota-se que a vulnerabilidade social aumenta, as oportunidades de trabalho são reduzidas (e é preciso deslocar-se mais tempo para chegar ao local de trabalho) e a violência cresce. Fica claro que as cidades não cumprem nem de longe o papel de núcleos da democracia e da integração social.
SEGREGAÇÃO SOCIAL URBANA, pelo viés de Liana Coll
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