Um momento jornalístico de um canal de TV na manhã de hoje, 27 de junho, deixou questionamentos aflorados sobre a dita imparcialidade jornalística, a qual sobre ela muitos vendem sua imagem e a imagem da empresa. Se a imparcialidade fosse um princípio social possível de representação, teríamos como imparcial um discurso formatado de maneira que todos os lados envolvidos concordassem com o dito. Ora, por imparcial não se pode aceitar a seguinte frase: “Os dois homens que saem agora de dentro da agência bancária, onde o gerente é feito refém, não parecem bandidos. Estão vestidos de terno e gravata. Parecem mais clientes do banco”. Uma questão como essa facilmente pode ser dissecada. Há imparcialidade? Vamos aos personagens: a jornalista e os dois homens. Além dos três, vários outros aqui coadjuvantes (para a construção fílmica do fato): o telespectador, os integrantes do grupo que realiza o assalto, o câmera que fez as filmagens ao vivo, a comentarista.
A imparcialidade aqui encontraria breves facetas do outro lado, ou, melhor formulado, de outras características usuais aos personagens de uma mesma história. Estão imbricados no quadro imagem/som centenas de leituras comuns a cidadãos de um mesmo meio, assim como outras centenas de leituras de cada personagem conseguem nos dar pequenos objetos para refutarmos a ideia da imparcialidade. O terno e a gravata são parte do vestuário apenas de clientes de bancos e não dos possíveis ladrões. Por partes, o fim do discurso poderia ser aceito por todos os atores sociais, desde que esses mesmos tivessem uma única e idêntica concepção social do que é dito real, o que parece impossível. O que nos é aceito, é a característica de conceituação dos acontecimentos por vieses semelhados que podem diluir-se uns aos outros, criando um projeto híbrido de conceituação, e também [neste caso] mais superficial, que é aceito por vários discursos. Muitos acreditam que as vestes cabem apenas aos clientes. Muitos creem que pele clara e cabelo bem cortado representam o famigerado “homem de bem”. Por fim, temos uma ideia, um conceito, que mesmo questionável, é dado como verdadeiro por muitos. O conceito arbitrário de que terno e gravata são vestimentas de clientes e não de possíveis ladrões explicita um conjunto de ideias socioeconômicas de um largo grupo, mas então aqui, após lermos terno e gravata como vestimenta de clientes, é que conseguimos refutar a ideia da imparcialidade: um dos atores não compreende as vestimentas como exclusivas aos clientes. Ou, um dos atores lê as vestimentas como exclusividade de ladrões. Um único conceito, formulado por inúmeros conceitos anteriores, rescinde a imparcialidade. No caso da elocução da jornalista, frase que houve, o ator oposto ainda deixa subsídios para contestação: não existem então ladrões de terno e gravata. A partir da declaração, podemos observar: naquela situação os ladrões não poderiam estar vestindo terno e gravata? Poderiam. Quando um ladrão de colarinho branco é preso, ele está com a roupa errada para a ocasião ou nós é que devemos iniciar um processo de desmantelamento de nossos conceitos sobre possíveis motivos para sua prisão?
Depois, uma colega, em outro programa do mesmo canal, coloca: ainda não se sabe os motivos dos ataques aos ônibus. Motivos ao estilo de quem? Ato de opinião, ato de revolta, ato sob a contrariedade dos conceitos são apenas atos ou se tornam “motivos”? Quão triste e enfadonha são as afirmações que nós, jornalistas, falamos diariamente e que representam nossos pensamentos excludentes? As afirmações continuarão, porque não há fórmula rápida de constituirmos uma sociedade onde antes das afirmações venham as questões, o estudo do conceito, a perda dos preconceitos. Para se falar em sociedade, não se pode pensar “a sociedade que eu acredito”, formada por bons e maus, pretos e brancos, limpos e sujos, doentes e sãos. “Quando o delito se multiplica, ninguém quer vê-lo”, deixou-nos Bertold Brecht, um respeitado dramaturgo alemão.
Para não fugir muito do tema, lembramos que hoje foi dada a largada à caça aos responsáveis pela sujeira da cidade, através da Operação Cidade Limpa, em Santa Maria. Em tempos de pressão por mais liberdade, com a juventude de volta às ruas pedindo por educação, respeito e pelo fim ou atenuação de tantos preconceitos, a face fascista das sociedades corrobora ações que até mesmo parecem retiradas da ficção. Ao contrário de tentar realocar os cidadãos numa comunidade que seja o rosto da pluralidade, enforcamos os diferentes nos dogmas do certo e do errado. É que terno e gravata só é bonito no outdoor luminoso. E o que não vale impostos, não tem serventia para os democráticos. Um dia, numa roda de amigos, ouvi de uma poeta: “tenho medo do futuro. Um dia tudo será branco, liso e limpo.”
ENQUANTO HOUVER UM QUE REFUTE, pelo viés de Bibiano Girard.
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