Se fosse possível voltar no tempo e estabelecer comunicação com alguém não muito além de décadas atrás, um dos grandes desafios para explicar o estado atual das coisas seria o que é a internet. Se definido em suas características de máquina, haveria a barreira da evolução da tecnologia – como explicar a alguém que passivamente ouvia rádio ou via TV que hoje é possível, talvez com o mesmo investimento para a compra de um daqueles aparelhos, não só ouvir e ver, mas falar e ser ouvido, por meio de máquinas conectadas por boa parte do planeta, além do que, fora das analogias, ficaria difícil explicar o que é “rede” ou “dados”.
Se a explicação envolvesse ainda quais são os usos possíveis da internet, a questão ficaria ainda mais complexa. A internet é quase como um mundo à parte, onde você pode conhecer novas pessoas ou ficar no anonimato, onde é possível ler notícias, ver TV, ouvir músicas, e, se quiser, tudo ao mesmo tempo. É a nova forma de conspiração dos seres humanos, mas também a forma mais fácil de espionar alguém. É a base para revoltas populares, mas também a área perfeita da letargia humana. Ao desnaturalizar a internet é possível perceber um número sem tamanho de possibilidades que até então pareciam não existir.
O GOVERNO DOS EUA E AS GRANDES CORPORAÇÕES: LEIS SOPA E PIPA
No caminho inverso, é preciso procurar “naturalizar” os processos cibernéticos para que se possa entendê-los. Mesmo dentro dessa noção tão universal de possibilidades, a internet ainda responde ao mundo real, dentro de suas imposições diárias. Algumas das faces dessas imposições do mundo real se apresentam atualmente em diversas partes do mundo, ou seja, a necessidade de legislação estatal sobre todas as áreas da sociedade, em comunhão com a necessidade de “respeito” ao direito autoral de uma pequena parcela dona dos meios de produção, numa imbricação de Estado e a burguesia que o comanda. Não é de se espantar, portanto, que tramite no Congresso Americano dois projetos de lei que tem como função primordial a manutenção do status quo da indústria do entretenimento norte-americana.
Revestido por uma roupagem de lei “antipirataria”, os projetos de lei Stop Online Piracy Act (SOPA) e Protect IP Act (PIPA) ganharam destaque por conta dos diversos protestos organizados na rede contra sua aprovação. Diversas organizações fundamentalmente virtuais protestaram ou se posicionaram contra o projeto, como Google, Facebook, Craiglist e Wikipédia. Com os milhares de descontentes virtuais o projeto perdeu força e saiu da pauta de votação.
No entanto, no dia seguinte ao protesto, o governo estadunidense atacou, tirando o MegaUpload, maior site de hospedagem de dados do planeta, do ar e prendendo diversas pessoas ligadas a ele. A medida foi logo respondida por parte do grupo Anonymous, que atacou e tirou do ar páginas do governo dos EUA e de várias gravadoras e estúdios de Hollywood.
Os fatos em sequência foram considerados o começo de uma primeira “Guerra Mundial Virtual”. Mas, numa retrospectiva, é possível observar uma dezena de fatos que levaram a esta situação.
HISTÓRICO DE CONTROLE E CENSURA
As ações para retirar do ar diversos sites de download não autorizado como o The Pirate Bay (o caso mais famoso) devem ser levadas em conta como ações efetivas de tentativa de controle da internet. Mais recentemente, no início de 2011, diversos cortes de internet tentavam controlar a nascente revolta no Egito e na Tunísia. Por fim, um artigo da edição de janeiro de 2012 da Le Monde Diplomatique Brasil refez o caminho que conecta o controle censor destes países acima citados com grandes empresas europeias e norte-americanas. No fim, longe das centenas de possibilidades, tudo se volta para a manutenção do status quo, seja de um grande produtor hollywoodiano, seja de um ditador.
O modelo usado nestes países leva o nome de DPI (Deep Packet Inspection, ou Inspeção Profunda de Pacotes) e tem como função varrer constantemente todo tipo de tráfego dos usuários da internet. Esse sistema não estaria em vigor só no Egito e Tunísia, como também na Líbia de Khadafi, Síria e Mianmar. Portanto, crer que tais artifícios são ou possam ser usados em massa nos computadores não é absurdo.
DISPUTA É POR PODER E DINHEIRO
Não se pode esquecer que todas as medidas tomadas agora ou futuramente por governos interferem no “mundo real”. Não sendo descolada da internet, a vida fora dela sofre interferências das decisões tomadas naquela esfera. É o caso da prisão dos donos do MegaUpload, que não teve nada de virtual, ou das diversas prisões que acontecem em regimes ditatoriais por conta de ligações com movimentos oposicionistas descobertos na rede pelo DPI.
Além disso, é neste mundo externo à internet que as grandes empresas passam por uma crise e perdem faturamento. É no mundo real também que grandes magnatas da internet fazem e gastam suas fortunas, como é o caso dos donos do Facebook, Google e do MegaUpload. Mesmo que a internet tenha possibilitado a criação de milhares de iniciativas coletivas que não visam o lucro, mas a troca de ideias e o compartilhamento de informações, a rede também foi a base para diversas iniciativas bem sucedidas de negócio que, mesmo que num novo terreno, visavam igualmente o lucro.
Para tratar do caso mais recente, o MegaUpload, é preciso levar isso em conta. Não era por pura nobreza de espírito que Kim DotCom, o criador do sítio, mantinha suas atividades, mas em busca do enriquecimento – mesmo que o sítio possibilitasse o compartilhamento de dados de forma gratuita.
É pelo mesmo motivo que os donos do Google e do Facebook encamparam a campanha contra as leis SOPA e PIPA. Com elas estes sítios corriam o risco de serem censurados e até colocados fora do ar, mas não se pode deixar enganar, tais empresas tomariam todas as medidas possíveis para seguirem no ar e faturando, mesmo que isso custasse censurar milhares de usuários – as medidas das duas organizações em casos anteriores demonstram isso.
Pragmaticamente, a questão da legislação é muito mais uma guerra comercial do que uma guerra de princípios ou simples tentativa de censura por parte do governo norte-americano. Nesta disputa de interesses, o usuário, ainda absorto pela letargia criada pela própria internet, ainda não tomou conhecimento da força que tem não só para derrotar as medidas protecionistas da grande indústria do entretenimento norte-americana, mas para derrotar a proposta de um sistema virtual ainda essencialmente ligado ao sistema liberal do mundo pré-cibernético.
A revista o Viés é contra os projetos de lei SOPA e PIPA, que afetam, direta ou indiretamente, todos os usuários da Rede.
GUERRA VIRTUAL, DINHEIRO REAL, pelo viés de João Victor Moura
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