“Qualquer que seja a categoria de um programa de televisão, ele deve sempre entreter e pode também informar”. Essa afirmação, dada pelo doutor em Ciências da Comunicação José Carlos Aronchi de Souza, encontra-se num livro básico de formação telejornalística de comunicólogos. Assim mesmo, sem discussões ou contraposições à regra para o trabalho em TV. Eu diria o contrário, que a informação em telejornalismo deve ser a bandeira a ser levada e que o entretenimento pode acontecer em matérias mais leves.
Mas a afirmativa de Aronchi de Souza é o que permeia as linhas de conduta das grandes empresas da televisão aberta (e das maioria das de televisão fechada) e, infelizmente, é difundida em aulas teóricas dos cursos de jornalismo. Salvo alguns professores, que contextualizam e problematizam as verdade do autor, ajudando os alunos a enxergarem o jornal-empresa e os valores materialistas como panos de fundo da banalização do telejornalismo, o que guia uma aula é a postura frente às câmeras, o poder enfático da fala na persuasão de uma narrativa e o movimento de mãos e cabeça para a dinamização do texto falado. Mexam as mãos, sorriam e respirem que fica bom. O texto pode ser improvisado, a frase tem que ser direta e os olhos devem mirar a lente. Receita básica e pronto, aí teremos um batalhão de novos jornalistas prontos para levar a melhor informação até você.
Alguns jornalistas não são tão novos e parecem transformar-se cada vez mais em protagonistas de telejornal com ares de talk-show. Evaristo Costa e Sandra Annenberg que o digam. À frente do telejornal das 13h30, na rede de TV Globo, a rede aberta mais assistida no Brasil, parecem duas tias tricotando e fofocando. Comentam horrorizados sobre a violência, falam na incapacidade dos indivíduos como culpada do desemprego e dão dicas de como se vestir e do que falar nas entrevistas de trabalho (que, acreditem, são os problemas a serem resolvidos para que o desemprego seja eliminado).
Na edição de sábado do Jornal Hoje, a âncora substituta Mariana Godoy apresentou quatro notícias envolvendo mortes, acidentes e tragédias, uma entrevista com atriz global, uma dica para economizar nas viagens de ano novo e Natal, onde a repórter perguntava “Praia ou montanha, Rio ou Nova Iorque? Já pensou onde vai passar o réveillon?”, outra dica para fazer um lago artificial em casa, uma nota sobre Kadafi e uma montagem de alguns fatos recentes que ocorreram no mundo e que era intitulado “O Mundo em 1 minuto”. Mas se o mundo não cabe em meia hora de telejornal, caberia em um minuto? Banalizado, superficial e simplificado. Fora da realidade de quem o assiste. Ficcional.
Já diria Macondes Filho, outro teórico da área de Jornalismo, sobre o produto jornalístico: “É uma atividade ficcional e não se pode acusar uma ficção de deturpar o real… O que de fato é curioso e interessante na atualidade é que a ficção é vivida pelas massas como pura realidade”. Curioso mas compreensível, já que as grandes empresas de jornalismo divulgam amplamente seus manuais e princípios éticos, colocando-se como neutras e objetivas. Dizem que a informação pura é a guia das suas atividades e, com grande força para produzir um elo com o receptor, acabam sendo consagradas como uma instância legítima do saber, da mediação entre os fatos e a sociedade.
Desincentivando a memória, a contextualização e a visão de grupo, criam na maioria dos receptores um grande poder de manipulação. É instantânea a apropriação de visões de mundo sem esses fatores que, aponta Marcondes, funcionam como “imunidades” na consciência dos indivíduos. O esvaziamento de espaços de discussão faz com que opiniões sejam apropriadas por grande parte dos telespectadores. E a opinião, no mundo jornalístico, só é difundida por aqueles que já gozam de prestígio em outros campos – político e econômico, principalmente.
A banda Titãs cantou, na década de 1980: “A televisão me deixou burro, muito burro demais, e agora todas coisas que eu penso me parecem iguais”. Uma letra representando esse processo de simples difusão pronta para apropriação de opiniões gerais daqueles que detém o poder: “tudo que a antena captar meu coração captura”. E quando opiniões diferentes daquelas que regram as grandes corporações aparecem, há o rechaço e o nítido desconforto dos repórteres, como pudemos perceber na matéria da Globo News sobre as manifestações de jovens na Inglaterra, em que o sociólogo Silvio Caccia Bava é indagado sobre a atuação daqueles “marginais vândalos” e começa a dar um banho de argumentos e de análise nos repórteres. Ele ri, diz que não são marginais, e sim jovens que tiveram suas oportunidades de estudos e emprego retiradas pelo governo. Eles estão se insurgindo contra a condição que a sociedade inglesa lhes dá, fala ele. A imparcialidade (que sabemos ser inatingível – toda pessoa que conta um fato coloca na escolha de termos e dos dados mais relevantes inúmeros filtros e visões de mundo), cai por terra de maneira visível nessas situações.
Jesus Martin Barbero, semiólogo, antropólogo, filósofo e expoente dos Estudos Culturais, linha que estuda a cultura e a comunicação como inseparáveis nos efeitos de sentido criados na produção e na recepção dos bens simbólicos da indústria cultural, no livro “Dos Meios às Mediações”, cita Lope de Vêga no subcapítulo “O que dispõe o mercado”:
“No sé como se consiente
que mil inventadas cosas
por ignorantes se vendan
por los ciegos que las toman.
Allí se cuentan milagros,
martírios, muertes, deshonras
que no han pasado en el mundo
y al fin se vende y se compra”.
Vêga falava sobre a literatura de cordel e alguns autores, mas Barbero transpõe esse pensamento para o circuito da comunicação, falando de deformações de textos, compostos de uma mescla de tragédia e salvação, e da negociação com seus consumidores. Há a Ana Maria Maria Braga, levando pais de jovens assassinados que, entre prantos e desespero, elevam a audiência das manhãs; há as novelas, tramas que, se analisadas, dizem muito sobre a construção e a visão legitimada do nosso quadro social, mas que se simplesmente olhadas apenas ditam modos de comportamento e se abdicam de veicular o verdadeiro paradigma social brasileiro; há os programas de auditório de domingo, colocando a violência, a comédia e os assuntos banais no dia de descanso e desopilação merecidos dos brasileiros. E assim se constitui a TV aberta no Brasil, salvo algumas excessões de programas de grandes reportagens que vem ganhando destaque ultimamente.
Na TV fechada não há contrapartida. Há, sim, mais programas a serem lidos como excessão. Mas, para utilizar os estudos de Barbero novamente, se queremos ver uma saída para o fazer jornalístico, há que se aproveitar o alcance da televisão para construir novos modelos de programação. O meio massivo disseminando e problematizando o popular, e não apenas reproduzindo modos e valores de vida incompatíveis com a realidade e com a mudança do nosso cenário de desigualdades. É isso que Barbero, depois de críticas e análises muito bem construídas, vê como um horizonte, sempre colocando a questão de televisão pública como uma das válvulas de escape. Televisão pública, não totalmente estatal e nem com metade de capital privado podando as pautas. Uma linguagem e princípios em que a população realmente possa se ver como autora da sua história, uma história não passiva, mas passível de ser questionada. É difícil acreditar, mas é preciso mudar o quadro de produção do telejornalismo brasileiro e educar para a leitura crítica do que se vê por aí.
SE A ANTENA CAPTAR O CORAÇÃO CAPTURA, pelo viés de Liana Coll.