Temos acompanhado, nesta última semana, a cobertura risível dada aos protestos na Inglaterra pela maioria das mídias brasileira e mundial. Os termos são ‘marginais, delinquentes, criminosos, vândalos’. Quem só vê esse tipo de [falta de] análise acha que é o fim do mundo, deseja que o exército baixe nas ruas e torce para que, abaixo de pau, o governo faça com que esses desocupados achem algo para fazer.
Zapeando, parei no canal Globo News e quedei-me a assistir uma jornalista a bradar contra os protestos – eles estavam, segundo ela, destruindo a beleza de Londres, vitimando a cidade com seus atos de brutalidade. Ri, mas não achei graça. Ri de desgosto com o jornalismo institucionalizado, que só fala bem de si mesmo e que se roga desde um nível onisciente. Ri porque, mais uma vez, vi um jornalismo ruim estampado na tela.
Poderia escrever sobre os protestos em si, mas mudo aqui meu percurso por crer que os dois vídeos que hei de indicar aqui nos iluminam muito bem quanto à situação na Inglaterra. A crise que começou em 2008 é resultado da ganância desmedida dos banqueiros [ponto]. Para pagar as dívidas dessa crise, o governo britânico, como muitos outros, está cortando dinheiro de serviços sociais, como saúde e educação [ponto]. Em Tottenham, um bairro paupérrimo na zona norte de Londres, 35% dos jovens não têm emprego e, por todo o Reino Unido, a polícia está autorizada a parar quem quer seja na rua – vê, sem motivo que não a vontade do policial – para averiguação [ponto]. Bilhões de libras estão sendo roubados dos cidadãos para pagar a conta dos banqueiros [ponto]. Ainda em Tottenham, um jovem é assassinado pela polícia [ponto final]. Façamos disso tudo um parágrafo coeso e temos o porquê dos protestos. As pessoas estão cansadas do seu governo, cansadas dos pistolões do capitalismo que só fazem explorar as pessoas e, ainda por cima, delas agora sugam também tudo que lhes era (e, em teoria, ainda é) de direito. Sinceramente, só alguém muito centrado em si mesmo para não ver que este é um momento histórico, uma pequena (r)evolução que estourou, assim, num dia qualquer, num dia em que o centro de Londres, a cidade com o maior número de bancos no mundo, fervilharia novamente à base de transações financeiras globais que se enfulam com as pessoas humanas.
Pois a Globo e a BBC não pensam assim, nem acham que seu público deveria fazê-lo. Do que acompanhei das duas redes, a maior do Brasil e a maior do mundo respectivamente, “em decorrência direta do bom jornalismo que praticam”, não havia vontade alguma em discutir abertamente, entre as ruas e as salas de redação. O que vi foi um jornalismo raso, fatalista, grosso. Que várias cidades da Inglaterra foram apedrejadas, queimadas e quebradas é o fato; temos as imagens. Mas o fato em si, no entanto, é só um ponto do todo, não é auto-explicativo. Para a Globo, para a BBC e, provavelmente, para a maioria da mídia, o fato ilustra, sim, tudo o que há. Como se as imagens dispensassem o pensamento, os jornalistas sequer se esforçaram para tentar ampliar a visão de mundo de quem lhes assiste e só repetem o que é estabelecido. Gente na rua? Baderna. Protestantes? Desocupados. Expressões populares? Vandalismo. Assim é fácil ser jornalista, é muito simples se agarrar num microfone e sair papagueando por aí.
Quando achava que só com podridão se fazia a profissão que escolhi, chego à TV Cultura e assisto ao Jornal da Cultura da última sexta-feira, dia 12. À mesa, uma jornalista e dois cientistas políticos. As notícias eram comentadas: vistas e revistas, desconstruidas, contextualizadas. Com a jornalista, ao vivo, os telespectadores interagiam ali, no ato. Para arrematar o bloco que tratou dos protestos na Inglaterra, mostrou-se um vídeo com uma entrevista ao vivo de um senhor à BBC. Nela, a jornalista pergunta se ele estava assustado com a desordem, ele diz que não, diz que entende a situação e que, numa Inglaterra onde as pessoas não têm voz, aquela era a única saída para que os governantes entendessem que tudo não está bem! A jornalista segue querendo que ele diga que aquilo tudo era um absurdo e ele retruca, já fatigado pela pressão: “tenha um pouco de respeito comigo”. Fula que ela deveria estar, manteve as aparências e voltou-se para a câmera. A notícia quem deu foi ele, Darcus Howe, o entrevistado.
[Clica na imagem para assistires à entrevista da BBC, legendada]
No Brasil, na mesma semana em que, a toda hora, a Globo News vinha escandalizar o público com mais um episódio do apocalipse que estava acometendo nossa sociedade tão ‘perfeita e justa’, convidaram – possivelmente pela única vez – o sociólogo Silvio Caccia Bava, editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil. A entrevistou começou mais ou menos assim. O jornalista pergunta: “e aí, Seu Silvio, esses marginais são uns vândalos, né?” Pobre Globo, Caccia Bava dá uma risada de vergonha alheia e começa!
[Clica para assistires à entrevista da Globo News]
Nem preto nem branco. Nem oito nem oitenta. Os fatos que viram notícia não significam nada em si mesmos, são os usos e as interpretações que lhe damos e, principalmente, as suas razões que lhe dão sentido. Tampouco essa coisa, que é o fato, está isolada numa linha reta da história. Atravessando-a, estão inúmeras variáveis, inúmeras pequenas situações que, se vistas mais de perto, nos explicam o que estamos a presenciar. Os protestos na Inglaterra não são diferentes!
Cidades foram apedrejadas, queimadas e quebradas? Sim, foram. Mas por quê? A resposta nunca está no que só parece, mesmo que a aparência seja clamada por todas as línguas do mundo. Precisamos, mesmo, é nos deseducar sobre nossas notícias. Precisamos de um pouco de ‘vandalismo, marginalismo e delinquência’ com esse tal de jornalismo que nos aplicam por aí, como esses princípios documentados em que desejam nos fazer acreditar.
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