Os anos mais pesados da história brasileira não acumularam apenas incontáveis lembranças dolorosas de perseguição, restrição das liberdades de expressão, tortura e desaparecimento. Os anos de ditadura civil-militar (estendidos de 1964 a 1985) plantaram suas sementes de horror em todos os terrenos férteis do Brasil, sendo os antecessores da continuidade ditatorial que se prolongaria em nosso país e no mundo – e que até hoje consome as forças coletivas.
O período da ditadura militar brasileira ampliou as possibilidades de o capital nacional e estrangeiro estenderem os seus alcances. Ao seu fim, serviços antes públicos (que apesar de suas carências, ainda eram garantias) tornaram-se cada vez mais escravos da privatização. Saúde e educação fatalmente atingidos. As questões trabalhistas e os direitos do povo (não das empresas) de garantir seu salário e seus benefícios perderam sua força. Cresceram e apareceram as leis do consumo, indiretas e traiçoeiras. Monopólios brotaram em todos os ramos da indústria, do comércio, dos serviços, da mídia.
Os anos que se seguiram a ditadura militar, intitulados como período de “redemocratização”, garantiram direitos antes suprimidos. Os militares não mais permaneceriam no poder por incontáveis anos, sucedendo-se infinitamente. O direito ao voto e às eleições foram retomados e o povo brasileiro mostrou sua força política. Porém, essa mesma transição da ditadura militar para a democracia não garantiu que todas as feridas fossem fechadas. Em primeiro lugar, brasileiros continuaram desaparecidos. Posteriormente, chefões dos porões militares permaneceram em liberdade, e ao contrário do resto da América Latina, no Brasil os crimes militares continuam sem solução. E por fim, uma ditadura nova. Os financiamentos e a abertura total ao capital trouxeram ao nosso país a ditadura invisível e infelizmente naturalizada: a ditadura do capital.
A democracia total é um mito, buscada, porém temporariamente inatingível. A política nacional que hoje conhecemos em nosso país não compreende apenas as necessidades dos brasileiros, sendo elas físicas ou políticas, abrangendo a própria garantia ao alimento ou à participação cidadã. A distribuição de renda no Brasil é uma das mais desiguais do mundo, e a nossa política travestida de assistencialista, porém infinitamente neoliberal, mantém e segue as normas da ‘Bíblia do Mercado’. Quais os avanços públicos verdadeiros que obtivemos de 1985 até os dias de hoje? Não cresceu em nossos lares a ideia de tudo o que é e foi público não presta, está fadado à burocratização, à insuficiência? As privatizações aparecem mascaradas de solução. Mas na verdade estão cada vez mais arraigadas nos problemas que hoje enfrentamos.
A ditadura que se instaurou em ritmo global nos envolveu ao ponto de hoje não conseguirmos nem mesmo percebê-la de fato. Há quem defenda que vivemos em um país livre, onde nos é permitido nos expressar, na segurança das garantias de liberdades. Inegável que o contexto político é diferente, e que a repressão militar abriu marcas físicas, não apenas concepções, dolorosas. Porém, não é a liberdade o que nos apresenta. O capital não é amigo de liberdade alguma. Estamos cada vez mais direcionados ao caminho da formalização, da restrição de nossas pessoalidades, da substituição de nossas relações humanas por relações financeiras. Somos todos escravos da mesma ditadura, oprimidos em silêncio, diariamente, presos a um meio cruel: aquele do qual não nos damos conta. Somos escravos não porque fomos tomados à força, mas porque consentimos por não percebermos o poder que os conglomerados financeiros exercem sobre nossas peculiaridades.
O intelectual István Mészáros em seu livro A Crise Estrutural do Capital afirma que, apesar do poder imenso que o capital exerce sobre a sociedade, seu sistema está à beira de um colapso, por ser ele mesmo insustentável – assim como acontece com outras ditaduras (vide o nosso próprio caso militar e as atuais derrubadas das ditaduras árabes). Apesar dessa derrocada inerente ao sistema do capital, a inversão de uma ditadura por outra não se sustentaria, ocasionando os mesmos ou diferentes (porém igualmente graves) problemas e contradições. O principal argumento dos neoliberais fardados diz respeito às crueldades mantidas durante os regimes da antiga União Soviética. O erro está em pensar que nas mesmas repúblicas soviéticas a ditadura pertenceu ao comunismo. Historiadores argumentam que o que aconteceu nestes países foi a manutenção de uma ditadura, vestida de socialista, porém com fortes apegos burocráticos e ditatoriais. Independente do sistema político, a ditadura do capital nasceu e se desenvolveu nos anos pós Guerra-Fria com o discurso da liberdade.
A lorota expandida em escala mundial convenceu ao mundo. Estamos livres para comprar, por isso estamos livres. Subordinados por meia dúzia de benesses compráveis (como tardes no shopping) acabamos por trocar nossas garantias e direitos civis pelo método falso do lazer que hoje abençoamos. O egoísmo é o rei da ditadura do capital. Não porque em outro sistema tenhamos que viver comprimidos ao mesmo modelo, mas porque quando defendemos que as estruturas sejam de todos, todos devem ter os mesmos direitos. Não as mesmas caras, nem os mesmos objetivos. Mas os mesmos espaços, as mesmas dignidades, as mesmas condições. Uma ditadura invisível que nos obriga ao descaso com o próximo só porque estamos correndo atrás de um lugar na ‘cobertura neoliberal’ é uma ditadura que massacra. E que algum dia deve ruir. Não sustentaremos isso para sempre. Precisamos de cautela: “Se hoje o tom da política tradicional modifica-se, isso se deve ao fato de que as contradições objetivas da situação atual já não podem ser contidas, seja por meio do puro poder e da força bruta, seja pelo suave estrangulamento promovido pela política de consenso. Na verdade, estamos diante de uma crise sem precedentes do controle social em escala mundial e não diante de uma solução. Seria grande irresponsabilidade se nos tranquilizássemos numa espécie de estado de euforia, contemplando uma revolução socialista mundial na virada da esquina”, é o que diz Mészáros.
Sendo críticos, compreendemos que a simples substituição da ditadura do capital por outra, talvez, não seja a solução. Os meios neoliberais estão ruindo, e o que devemos fortalecer são as nossas diretrizes de povo, de humanos, de humanidade. Quem sabe assim, não estaremos preparados para pôr fim também a esta ditadura?
A DITADURA INVISÍVEL, pelo viés de Nathália Costa.
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