SOB A PEDRA DE UMA CIDADE

Hoje não saiu nos jornais. Não saiu ontem e dizem que não é pra amanhã. Não saíram os meninos da rua, não saíram os senhores da praça engraxando pés. Calcanhares pretos pisando pobres seculares. Uma linha sequer. Não apareceram os gritos. Enquadrados como estranhos, nem isso saiu. As cidadezinhas em volta à capital, as comunidades indígenas andinas segurando-se para não esfarelar. Amanheceu, entardeceu e escureceu. Nada foi dito. Perda de terras, usurpação, um chute e um empurrão. Nem um escrito.

Um vento. Uma bandeira nacional balançando. No centro dela tem um sol expondo o mito de integração. Lutas, resistência dos que resistiram. Direitos, informação. Tudo muito incipiente. Começando um resgate. Resgatar o que ficou e que se fragmentou pelo rastro sinuoso dos séculos.

Um batuque acorda um homem. Um homem acorda um outro homem que acorda a mulher que sacode o filho que cresce e sacode o irmão. O vizinho ouve, e o processo assim segue. Impressões indicam um processo histórico de conscientização das etnias nativas. Mas, não impressas, quase nunca impressas, são só impressões estagnadas e não discutidas. No seio das comunidades, sim, inicia uma fase chave de luta por garantir o direito de permanência.

Nas cidades se caminha sem olhar ao lado. A cidade sequer olha a si mesma. Indivíduos que, em maior parte, são mestiços, negam e se escondem. Há plantado o desdém quanto aos povos originários. Descendência espanhola, culta, européia. Querem dizer assim. Nada de aculturação e mestiçagem. Dentro de dias criados, segue-se fixo na idéia de sociedade ideal, disciplinada e pura.

Uma mão aberta, um corpo sentado. Uma mão pede moedas e a outra segura o cigarro. De manhã em um lado da rua, de tarde em outro. Em busca da sombra, ele ora ou outra dorme. Aguenta o dia sentado em uma caixa. Balbucios inaudíveis. Ninguém pára. Balbucios de dor e explicação. Alguém pode parar, mas alguém não pára. Passa e atira cacos de valor forjado. Olhar ereto, pensando na boa ação do dia, na redenção do eu e no alívio da alma.

Pressão. Bombas explodindo prédios. São erguidos outros. Terceira cidade que mais cresce na Argentina. Esmagada, exprimida. Demandas e mais demandas. Na praça tem um senhor fazendo greve de fome. Diz no cartaz: estou em greve de fome até que o povo se ponha de pé e peça que o vice-presidente renuncie. Demanda de democracia, de governo unido. Desunião é o que não pode espelhar e respingar na sociedade.

Políticas de integração para os filhos desarraigados da terra e induzidos ao urbano. Urge. Movimento social, reivindicação e protesto.  Quiçá começa o surgimento de uma consciência. (Acreditamos mesmo na construção da consciência? Ela mede tão pouco, é tão pequena) De situação, de exploração; de direitos e deveres.  Uma revalorização das culturas nativas do noroeste parece nascer. Um homem acorda um outro homem que acorda a mulher que sacode o filho que cresce e sacode o irmão. O vizinho ouve, e o processo assim segue.

Caminhando, lento. Caminhando. Arrastado ou corrido. Anoitece, mas amanhã não vai sair nada nos jornais. A família na carroça catando coisas consumidas. A senhora aos trapos, encurvada, que entra no restaurante. Caminhando entre os fregueses distintos. Entre os olhares repreensivos. Envergonhados. Sentem o cheiro de rua. Baixam a cabeça. Talvez depois de amanhã. Depois de amanhã. Duas manhãs, duas tardes e duas noites. Tonalidades de luz clareiam o todo e fazem escurecer para que não doa. Depois, talvez depois de depois de amanhã, uma das manhãs mude de cor.

(última matéria escrita em de San Miguel de Tucumán*)

SOB A PEDRA DE UMA CIDADE, pelo viés de Liana Coll

lianacoll@revistaovies.com

*San Miguel de Tucumán é a 3ª cidade que mais cresce na Argentina. Enfrenta grandes problemas sociais e estruturais pela expansão incontrolada. Povos indígenas andinos, residentes da província de Tucumán, deixam as casas. Atraídos pelo município, que na verdade muitas vezes não propicia a melhoria de vida almejada, muitas vezes acabam excluídos e marginalizados. Muitos passam os dias nas ruas, vivendo como informais relegados a serviços desgastantes e pouco rentáveis. Muitos, entretanto, estão fazendo parte de uma fase histórica nunca vista: caciques e líderes dos povos originários (assim chamados os povos assentados desde o período pré-incaico) retomam uma conscientização quanto à situação social dos nativos. Os situam no tempo e no espaço e, assim, começam a lutar por direitos de permanência nas suas terras, as quais hoje são alvo de confiscos revoltantes. Uma luz quando pensavam estar vivendo o desarraigamento do próprio chão.

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