CORAÇÃO MECANIZADO
Luís Rossi refletia o que seria dele – aposentado depois de sessenta anos de trabalho – dentro da oficina, aquele emaranhado de lata, vidro, cacos e pregos, anexada à casa por um corredor vazado de madeira na direção da calçada, que nem bem era uma calçada, um terreno íngreme de gramíneas após a mureta da frente. Gostava daquele lugar, estava sentido. Amanheceu e Luís Rossi foi tomar banho e beber duas xícaras de leite quente com café. Todos pela casa – pré-fabricada, de madeira – ouviram seu relampejo dominical. Foi à oficina, abriu a porta de um carro – candidato com potencial para a última vaga no ferro-velho – e começou a tocar Renato e seus Blue Caps. Pela manhã, esteve em seu galpão, alto, com elevador para erguer carros e tudo. A esposa o chamou para o almoço. Depois da sesta, às quatro da tarde, Rossi tomou a decisão de vender a casa. Não consigo manter um coração tão grande num corpo tão pequeno.
SEGUINDO A BR
As estradas são misteriosas. A célebre curva dos irmãozinhos – onde muitos os viam de madrugada – depois a reta, e já se estava na estrada, novamente solitário. Os dois irmãozinhos se jogaram sob as rodas de uma carreta no Natal de 1983, domingo. O caminhoneiro foi absolvido pela doidice que o abraçou minutos depois. Essas estradas da Campanha quase me matam. Cem, cento e vinte quilômetros adentro de um túnel defunto de grama e nuvem. Pela frente, uma hora de viagem até a próxima cidade no fosco das dezenove horas. Precisando de uns óculos. O São Jorge do espelho balançava nauseante.
Nunca mais quero o seu beijo. Mas meu último desejo,
você não pode negar…
É penoso carregar pela tardinha, sem sol, guiar noite adentro na evasão de gente das estradas de um país que parece em guerra. Não há pessoas nas estradas. A cidade aqui é triste. É bom sair, gosto do barulho seco do caminho. A família ficou, domingo à noite é na casa de sua mãe. Pai, parabéns pelo teu aniversário, disse o mais velho – que estuda fora – pelo telefone. Tirou a esquerda do volante, ajeitou o Kangol. A rádio saiu do ar e os pingos da chuva sapatearam no painel. Centenas de soldadinhos a molhar-se em poças. Luís Amarílio olhou pelo retrovisor. Deu sinal, felicitou quem o ultrapassava. Dar passagem era um festejo.
ITAQUAQUECETUBA
Itapecerica da Serra, Araçariguama, Ferraz de Vasconcelos, Franco da Rocha, Jardim Vila Isabel, Itaquaquecetuba, Jundiapeba…
Um dia foram o Brasil. Um dia Renato ouviu Raul dizer: telespectador de Itaquaquecetuba. E uma menina de três atrasados anos repetiu. E o povo riu. Eu nunca mais Renato esqueceu a voz que o amedronta: Araçoiaba da Serra. Araçoiaba da Serra. Araçoiaba da Serra.
NO CARRO
José Maurício, vendedor de ideias. Carregava as melhores. Vendemos para você o melhor pacote de TV por assinatura. Jogos, filmes, programas em geral, a Globo. Tudo por um preço camarada. Eu? Não, eu não vejo muita TV. Passo muito tempo na estrada.
Sim, viajo domingo para não precisar ficar em casa.
Chooo-ran-du si foi…
A nossa rádio do oeste há quinze anos com você.
NA CABINE DA PONTE
Por quatro pontos pode-se entrar ou sair do Passo da Guanxuma. Vista de cima, se alguém a fotografasse (…) a cidade se pareceria exatamente como uma aranha na qual algum colecionador tivesse espetado um alfinete bem no meio, como se faz com as borboletas, no ponto exato em que as quatro estradas se cruzariam, se continuassem cidade adentro, e onde se ergue a igreja.
Introdução ao Passo da Guanxuma, OVELHAS NEGRAS, Caio Fernando Abreu
Do outro lado da ponte de ferro, Almiranir pensava no jogo. No final do segundo tempo seu Grêmio virou. Puxou a alavanca – seu intolerável serviço – e voltou a encaixar a perna esquerda entre a porta de ferro e a parede de ferro da cabine azul onde trabalha. Como se sente bem com tormenta no horizonte. A chuva lava a rua de gente de domingo. As crianças não atravessam a ponte.
Iam ao Caça & Pesca, na margem arenosa do rio. O avião vermelho dos Velhas Ventanias Sport Aéreo sobrevoava a gente, sentada, horas e horas olhando os ponteiros. Era muito moderno o tempo mais atrasado. A ponte de alavanca, o rádio de pilha, depois da partida, tocando um sertanejo do sul. Cento e dois fm, a rádio de Itarubi. Havia seis mil pessoas na cidade. Cento e cinquenta e quatro delas nas pedras do Caça – instadas – mateando. O caminhão do caminhoneiro seguia à BR. Uma cidade de ir-se embora. Almiranir fez sinal, trocou a estação do rádio e viu o domingo.
OS HORÁRIOS DE OLGA
Olga é segurança terceirizada contratada para cuidar do terreno onde será construído o mais nobre modelo de edificação de negócios da cidade. É uma avenida de paralelepido, o barulho dos pneus não te deixam dormir. Olga estuda à noite em uma universidade, faz Marketing. Trabalha também na bilheteria do Parque Gardênias, quando a empresa – a de terceirizações em serviços gerais – a pede para fazer turno na bilheteria. Cai sempre num domingo, e como domingo não tem a quem visitar, nem alguém para chegar e fazer sombra em suas cortinas verdes da janela de madeira velha da sala, sai para trabalhar. O ruim é a volta. Pego o ônibus dez pras dez. Chego aqui na avenida dez e meia, daí caminho até o edifício, na Alameda Luís Antônio – bairro popular de edifícios iguais – e chego em casa exatamente às onze. Daí eu gosto de ver De frente com Gabi. Faço um sanduiche, ligo pra mãe e durmo vendo TV. Na segunda pego antes das oito no terreno.
GERAÇÃO COCA-COLA LIGHT
Existem aqueles que, em vãs celestes vidas, vibram com o sol de domingo como se deuses fizessem cócegas em seus pés durante o dia inteiro. Eles correm, eles jogam bola desde oito da manhã. Existem aqueles saúde que vão daqui até a Iparaguaçú correndo só para trazer o pão do café. Tem comunidades na internet de pessoas daqui falando padarias boas para os de lá e vice versa. A vida é mesmo rápida e cômica e animadora. Quando o dia está terminando, quando os aviões somem na poeira da tarde, lúcida e esbranquiçada, eles estão chegando da aula de “Viajando pela América”, no salão de festas do condomínio. Amor, uma pizza? É, vamos olhar um filme, tô sem sono.
Os dois dormem em vinte minutos. Calminhos.
PAPAI OS PROIBIU DE NAMORAR
E no prédio, o mesmo velhinho – seu Norberto – todo domingo, oito da noite, recebe a visita de Dona Gladeci. Ela entra, ouve-se até aqui – no quinto – o barulho dos tamanquinhos dançando “preste atenção, o mundo é um moinho, vai triturar teus sonhos tão mesquinhos”. Depois secam uma garrafa de uísque e choram até o táxi chegar.
FILME DA DÉCADA
Não existe programa melhor para o senhor Mariano Felix Irineu, gaúcho, natural do Vale dos Sinos, pai de duas moças, a primeira com vinte e cinco, a mais moça com vinte e três, dono de um automóvel que proporciona qualidade e aconchego, do que passear pela cidade aos domingos. Pega o Jeep que mantém sempre muito bem limpo na garagem do edifício, coloca na calçada, dá um banho com cuidado, enquanto espera a esposa descer com frutas. É um casal modelo. Realmente se amam, realmente são felizes. Mariano pega Maria Teresa – às vezes também a neta, Ana Cecília – e sai a passear pelas colinas no entorno da cidade. Com Teresa na direção, é sublime transpor bancos de areia.
É domingo, o dia passou, o Jeep está de volta ao seu canto gelado da garagem do prédio, ao lado do sofá do síndico. Mariano toma banho cantando “A tristeza é minha companheira, é a única mulher que me quer bem…”, esperando ouvir a resposta de Teresinha: Vai te ferrar.
Quando volta ao quarto, no amarelobreu das dezoito, deitam em sua cama retangular bem fofa, com colchas quadriculadas de crochê feitas pelos dois. Ela pede o controle. Tá aí, no bidê. Eles assistem, todos os domingos, dois filmes de ação da década de 90.
FITAS AMARELADAS DE DOMINGO, pelo viés de Bibiano Girard.
*Imagens e textos: Bibiano Girard