Com qual das cabeças é que se morre, mamãe?
Com a da razão, André.
Chorou o leite que os olhos por doze anos acompanharam matutinamente sobre a mesinha de madeira carcomida a beira da janela. Da persiana, frestas cinza. Deu um passo e serenamente ascendeu sobre sua cama, seguido pelo irmão mais novo e sucessivamente o mais novo e o mais novo. Ouviram os passos e os arranhões de unhas nos vidros dos copos. A mãe a escarrar ansiedade. Façam como eu faço e não perguntem nada a ninguém, vivo ou morto, não perguntem nada a ninguém. É assim, o homem avisou e disse que o trem passa pelos prados de lá ainda à tarde, e que lá longe, em frio conforto, é possível abanar ao papai quando ele surgir sentado na porta de um dos vagões. Subam na cama e não perguntem nada sobre o que estamos fazendo. Vivos ou mortos. Alguém há de vir nos buscar.
Pijaminhas surrados de suavidade áspera. Há muitos anos sempre os mesmos. Os pés do mais velho eram exatamente o dobro dos pés do mais novo, assim como o tamanho do laço das cordas vestia como luva a cabecinha de cada um. Façam como eu estou fazendo e não perguntem nada a ninguém. Estaremos bem próximos dele antes que ela nos encontre. O som dos copos ardia nos ouvidos dos quatro e o bater dos tamancos de madeira pelas escadas persistia. A existência questiona de maneiras diferentes. A complacência é desdém de que bem vive. Uns sobem venturosos pelo buraco do céu, outros pela envergadura da solidão.
Era rude a senhora que arranhava as unhas. Carente.
André, Anastácio, Hugo e Ramiro. Para a aborrecida mãe solteira, o mais velho, o dos cachinhos, o malandro e o minguado. Entretanto, há meses não se falavam. Nem se chamavam uns aos outros. Quando era de se almoçar, mastigavam alguns pedaços rançosos de frango e o mais velho servia aos seguintes. Outros dias catavam tatu ou lebres. Os três mais novos, mesmo sem entender a força que se apoderara da mãe, não perguntavam nada ao mais velho, o qual de tudo naquela casa sabia e guardava consigo. Desde que o pai os abandonara. A casa é barco e o campo longo mar. Doía pesado no peito ver o mais velho, ainda criança, encenar a mocidade que lhe fora exigida.
A arvorezinha era tão próxima da varanda que quando verão vivo de outros tempos sentia-se o cheiro das flores cá de cima do telhado. O pai subia e jogava os morcegos numa chuva negra limpando o sótão nunca aproveitado. A árvore cheirava bem e os morcegos cheiravam mal. A casa penava podre enquanto a árvore, desconhecida de suas próprias belezas, exalava sem mandados um cheiro tão nosso que mamãe se sentava sobre o balanço para cantar. Era bom viver e era bom também saber que se vivia.
Os campos eram verdes e o trem passava todo dia.
Até o dia em que o pai embarcou no trem e não voltou mais.
Marchava arrastando uma das pernas que o vestido rasgado prendia nos espinhos. Heda, heda, dor não há, comandante, dor não há, hei de findar inda hoje. Dor, hera, caminhando sobre a terra seca da imensidade. A voz de cigarro de beiços mordidos. Pele ardida. Casa ao fundo, dois lençóis, capim quebrado, espinhos vivos gotejados de sangue, hei, faça-se assim como ele quer, o homem, o homem mandou as crianças pro outro lado, inda sou eu indo à corda. A mãe consternada ao silêncio pronunciava, cortante em meio à nuvem de poeira defunta.
Sobre o teto, o agouro de caturras à morte já falecida de bálsamo do corpo humano. Quatro pequenos meninos pendurados junto de suas camas, o umbigo de um ainda a se mexer. Arrastava o vestido que o corpo magro carregava em direção à desamparada atitude de submergir, entortada pela sede, sem folhas, abrasada sob o sol de fevereiro. Um grande pio arrepia o couro da indigente velha, ah, ah, sai demônio. Diminuia a distância entre ela e a árvore. Secas. A sofreguidão é uivo aprisionado no peito de uma mãe.
Os campos não são mais verdes desde que o pai foi no trem.
A casa não tem mais água nos canos desde que o pai foi no trem.
As lâmpadas apagaram na noite póstuma a qual o pai foi no trem.
Onde está o homem? Perguntei sem encará-la. O homem está na casa. Apontou para o leste sem virar o corpo. Não me encarava nos olhos. Cuidado, é doente, morde os dedos, sangra as beirinhas das unhas, assim, oh, o homem está na casa e as crianças também, estão todos, fugi por que sou boa, tenho alma boa. Estão todos lá, com os olhos fechados, a penumbra do quarto esconde os pescocinhos, há sangue, muy sangue, de doer de ver, hei… A árvore, o monstro que pisa sobre minha cabeça que dói, todos hão de fenecer e apodrecer sobre o campo, ninguém nunca achou esta casa, só nós, só nós. A mulher sinalizou que minha presença não era bem-vinda. Talvez não seja mesmo agradável arquitetar a própria morte sendo assistida.
O trem que habita a madrugada toda noite nos deixa. O pai foi embora e nunca mais apareceu em vida, uma vez única em espírito sentado em seu balanço para o menino dos dedos pequenos. O trem nos abandona sem abano e latas de ervilha.
Uma noite de chuva jogaram meu corpo todo a morrer de ossos, a cabeça feita de couro pelado e o nariz achatado. O trem sabia que esta gente permanecia aqui, o trem veio, levou o pai e me deixou. Sou preto, sou alto e sou forte. Quem sabe o pai enviara-me. Quem sabe o quê nesse lugar? Nem a lua sabe a hora certa de se esconder. Os meninos desaprenderam a ser gente, o menor por vezes eu vi, vi e ouvi, a conversar com o pai que meus olhos nãos enxergavam.
Sou homem preto, alto e forte. Não me lembro d’onde vim, mas vim com clemência.
Vim sem fé. Deitei-me ao capim alto e úmido. Bebi da água do chão. Bebi em seguida da água da mulher.
Um dia o trem deixou o homem e o homem era louco. Disse-me ela, sem perceber que o homem era eu e que eu não estava mais sob o teto da velha casa.
Explanava sobre o sol enxergando a sombra esguia no capim seco. Os fios de cabelo assim como eletrecidos, uns para baixo, a esconder um olho, outros desarrumados sobre a cabeça suja. Vinham moscas e posavam ali. Dois grandes olhos enfim encararam-me e em silêncio ordenaram-me que sumisse. Não tenho gestos para o luto, não sei o que dizer a uma mãe arrebentada de tantas fantasias consumidas pelo desencanto da vida.
Nunca hei de esquecer aquele olhar. Era tão negro e profundo como as fendas abertas na casa velha de madeira. Encontrei quatro corpos avermelhados no quarto, três pendurados em cordas e um caído ao chão próximo a um pequeno canivete que, decerto, empenhara força contra o grosso fio no pescoço do mais velho. Toda tarde eu os avistava sentados na varanda ou correndo pelo campo infecundo. Toda manhã enchia suas canecas de leite antes que acordassem para que na imaginação ainda a mãe os amasse.
Era cinza o dia, vermelhos os corpos leves, amarelado o vestido da velha.
O pai que contavam, nunca descobri se de fato existiu. Mas era tão decadente aquela vida que se não fosse de relevante motivo toda aquela tristeza, tristeza maior no mundo nunca há de se encontrar. A velha não morreu logo no primeiro dia, nem no segundo, quiçá na primeira semana. Voltei dos campos de trás dias e dias depois de enterrá-los na mesma cova profunda, e o corpinho magro de vestido amarelo descansava apoiado ao tronco da árvore encanecida. Abri as janelas da casa, tirei o pó dos móveis, desentupi a calha e os canos.
Seguira deitada de longe com a cabeça no ombro e um pássaro bicava suas unhas. De dentro da casa, afugentei o mal que por ali vivia sorrindo contra um gole de cachaça. Havia nuvens plantadas no céu azul que molharia o corpo em minutos. Se viva estivesse, desvanecida já estaria. A tarde nos confins de cá é longa e amarelada sombria. As raízes de capim envergam sobre o sangue úmido da mulher. Nunca hei de esquecer o último olhar impenetrável da mãe e nem a última frase do mais velho, aquele mocinho, meu amigo, meu comparsa de tapeações na ilusão dos mais novos.
Enterre-me assim mesmo. Meu pescoço dói. Mamãe esqueceu-se de nós. Sem eles por aqui não encontrarei paz nenhuma.
E assim o fiz. Só isso.
OS PESCOÇOS, pelo viés de Bibiano Girard
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