O rádio-relógio começou a retumbar as canções gaúchas a que acordam os moradores da Vila Doce todas as manhãs. Luisa também despertou. Enquanto o rádio cantava, o relógio piscava a mostrar que eram nove da manhã. O hábito fora mais forte: “já?!” Qu’ela acordasse às seis, às nove ou ao meio-dia, não faria a menor diferença. Fora a força do hábito. Luisa se ergue na cama sob a relutância das costas endurecidas. Suspira, exclama uma pontada de dor. Cerra os olhos à procura dos óculos e os acha. As lentes dão nitidez às cores desgastadas do quarto.
Não há pressa, pressa nenhuma. Ao se levantar, calça as pantufas feitas de algum material qu’imita lã. Os pés frios são o maior incômodo de quem passa dos setenta. Luisa dá os primeiros passos do dia e já sente a pontada na perna esquerda. “Ai!” Tinha que comprar mais daquele creme rosa para afumentar. Levando as mãos às paredes, caminha. Ela sempre caminha devagar, não forçosamente porque não pudesse andar mais rápido, pois, para quê?
Chega ao banheiro. Os azulejos verdes datavam da década de 1980. Mais ou menos dez anos depois d’a casa ter sido construída, Luisa se mudara alá. Trocou de moradia depois qu’o marido morreu, um ano antes da mudança. Os filhos, de quem partiu a ideia, diziam entre si qu’a mãe não conseguia mais viver naquela casa grande, muito menos era capaz de mantê-la limpa. Luisa discordava; a ela, tudo parecia em ordem, mas entendia a vontade dos filhos de ver a mãe num lugar menor – além de tudo, era mais barato. Não qu’os filhos a sustentassem mas, quando mesmo, persistiam a dizer aos seus filhos como a avó dava trabalho. Pouco percebem eles que, ao fazê-lo, adestram seus filhos a fazer o mesmo que fizeram com a mãe, Luisa.
Chega ao banheiro. Lava a dentadura, escova com limão e uma pitada de bicarbonato de sódio. Fazia mal, dizia uma das noras, qu’era dentista. Luisa se fazia de surda. “Sua mãe está ficando surda”, continuava a dentista. Luisa escutava muito bem. Lavou o rosto, secou o rosto, fitou o rosto no espelho; por três minutos, para ser específico. Menos três a gastar.
Luisa teve três filhos e o quarto veio da irmã, que, mãe solteira e jovem, entregou-lhe a Luisa para qu’a criança fosse bem criada. Augusto era este, morrera dois anos antes daquela manhã – bebia muito. O filho mais velho tinha lá seus cinquenta anos, era casado com a dentista e tinha uma só filha. Roberto era engenheiro, ganhava bem, morava na capital e à mãe via mal, talvez uma vez por ano, quando ouvia sempre sua mulher declarar a surdez de Luisa.
A filha mais nova, Beatriz, era professora de música numa escola particular duma cidade próxima desde os vinte tantos há quinze outros. Não tinha filhos, nem era casada. Os irmãos olhavam para ela como que com pena. Beatriz ganhava pouco, morava numa casa pequena e era feliz. Servia de exemplo nas conversas privadas que seus irmãos tinham com seus respectivos filhos sobre a importância de se pensar no futuro. Certamente, Beatriz não era um exemplo a ser seguido de acordo com a visão dos irmãos.
Luisa tinha ainda outro filho: Jacó, o do meio, entre quarenta e cinquenta e poucos anos. Jacó era casado com Maquitielli, manicura que, para o desgosto da família germânica, não tinha a menor preocupação com a cultura da família do marido. Por que la teria? Pais divorciados; pai bêbado e mãe cafetina. Jacó conheceu a esposa à época em que frequentava, mais do que agora, a casa da sogra. Jacó tinha seis filhos, trabalhava como peão de estância, isto é, nada constante.
Nenhum dos filhos, nem mesmo Jacó, que morava na Vila Doce, via a mãe com frequência. Luisa tivera o comportamento tipicamente alemão ao criar os filhos. Fora rígida, fria e metódica. Seu marido, Guilherme, fora bem mais amável e, ao morrer, causara um sentimento que nenhum dos filhos jamais declarou verbalmente: lá se ia o papai, ficava a mãe.
Luisa não precisava do dinheiro dos filhos. No que só poderia ser dito como novamente um típico comportamento alemão, guardara dinheiro suficiente para viver quando velha. Ganhava, ainda, a sua aposentadoria e a pensão do marido. Quando este morreu, aliás, cedeu aos planos dos filhos e vendeu a casa que vira se erguer sob o trabalho das próprias mãos. Comprou uma casa de alvenaria quadrada, com um pátio medíocre no centro da vila. Viu a antiga casa ser destruída para dar lugar a um supermercado. Nem chorou, quase morreu.
E, desde que acordara, vira o relógio ter trocado os números já vinte-três vezes. Eis a cozinha, lenha no fogão, sopra, sopra, jornal amassado, fogo na linha. Apita, chia, a água quente vira chá na cuia dantes pronta. Um, dois, três mates; uma chaleira inteira. Era assim toda manhã. O momento durava quarenta-três minutos. Já passava das dez, vinha o café. Comia duas fatias de pão caseiro, que, para Luisa, era só pão; uma tira de queijo e colheradas de chimia, de sabor alternado entre goiaba, pêssego e abóbora. Uma xícara de café com leite ao doce de duas colheres de chá de açúcar. Detestava adoçante – ideia de sua nora, a dentista.
Sem tardar muito, era hora do almoço. Luisa se assustara, de início, com o pequeno intervalo entre as refeições qu’o seu despertar atual causava. Mudou a hora do almoço, pois: uma e meia da tarde começava a cozinhar. O preparo e o banquete duravam setenta-três minutos. Salada de rabanete, alface, repolho ou cebola. Bife de frango, traíra frita ou só carne. Arroz com feijão. Às vezes, moranga caramelada. Às vezes, clês, receita da mãe, da avó, da bisavó.
Lavar a louça tomava trinta-três minutos. Molhava um prato, olhava pela janela. Secava um copo, olhava para o fogão. Tudo era um ritual. Levava minutos a fio nas coisas mais pífias. Dava um teor melancólico a qualquer abrir gaveta ou fechar cristaleira. Não havia motivo para que Luisa apressasse as coisas, tinha tempo – ô se tinha.
Louça de volta à cristaleira, já seca. Hora de sestear. Já era passado das quatro da tarde, mas Luisa não mais via problema algum em dormir a essa hora. A nora, a dentista, persistia, no entanto, em dizer que “a tua mãe dorme o dia inteiro, não faz nada”. Faria o quê? Foi criada a cuidar da casa dos pais; quando se casou, cuidou da sua casa. Cuidou dos pais, cuidou do marido e cuidou dos filhos. Nunca olhou para si. Foram mais de setenta anos assim e, de repente, tinha todo o tempo do mundo.
Chegou à cama sob o pranto da perna esquerda. “Ai!” As costas e os joelhos. Deitou-se e ligou o rádio. Era hora do programa de música de bandinha. Cantavam no dialeto alemão que Luisa deveria saber falar, mas se viu obrigada a trocar pelo português a troco da guerra e da escola.
Mais de uma hora dormindo, oitenta-três minutos. Hora de levantar de novo, parecia um novo dia, já a escurecer. “Ai” para as costas e “ai” para a perna esquerda e “ai” para os joelhos. Mãos na parede, nas mesas, cadeiras, bibelôs. Enfim a sala. Por debaixo da porta, o carteiro meteu um envelope. Pardo, este nada dizia além do nome e do endereço de Luisa. Ela lo tomou às mãos e lo levou até a cozinha. Era hora do chá. Biscoitos de milho com cobertura branca de açúcar. Mais lenha no fogão, sopra, sopra, jornal amassado, fogo na linha, de novo. A chaleira apita e a água vai para o bule. Arrumou a mesa com a melhor toalha de croché, um pires e uma xícara pintados à mão. Os biscoitos numa grande cremeira e o bule a reinar acima. Ao lado, o envelope pardo qu’esperava. Abriu-o. Eis o resultado dos exames que havia feito havia quinze dias: tinha câncer, na mama esquerda. Luisa serviu-se de chá e sorriu. Teria, enfim, por que se preocupar consigo mesma.
O BULE DE LUISA, pelo viés de Gianlluca Simi
gianllucasimi@revistaovies.com
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