Em 2011 a primeira terra indígena homologada pelo governo brasileiro completou 50 anos. A história da criação do Parque Nacional do Xingu (hoje chamado de Parque Indígena do Xingu) é mostrada no filme Xingu, dirigido por Cao Hamburger (O ano em que meus pais saíram de férias). O problema da territorialidade se repete em vários capítulos da história da humanidade. Os povos indígenas que habitam o Brasil convivem com isso pelo menos desde a época da colonização europeia. É uma pena que um dos filmes nacionais mais bem produzidos sobre o tema se concentre apenas nos irmãos Villas-Bôas, indigenistas responsáveis diretos pela criação do Parque. Mesmo perdendo a oportunidade de se aprofundar no drama indígena a partir de uma perspectiva interna, que leve em consideração a subjetividade das pessoas que são de fato afetadas, o filme trata de um assunto que meio século depois se conserva atual.
Preocupado com a soberania nacional e com o crescimento populacional na região centro-sul, o governo de Getúlio Vargas começa, a partir de 1941, o movimento de interiorização do Brasil que ficou conhecido como “Marcha para o Oeste”. A expedição Roncador-Xingu, da qual Orlando, Cláudio e Leonardo Villas-Bôas participaram, fazia parte desse processo. Partindo da cidade de Leopoldina-GO, a empreitada tinha o objetivo de desbravar uma parte “inabitada” do Brasil e fundar colônias. Ao longo do caminho, os desbravadores foram se deparando com povos que nunca tinham feito contato com homens brancos. Nesse cenário, os irmãos Villas-Boas travaram uma batalha de interesses com o Governo Federal, que, segundo o filme de Cao Hamburger, não estava nem um pouco preocupado com a situação dos povos indígenas que habitavam a região. O conflito culminaria na criação do Parque Nacional do Xingu, localizado ao norte do estado do Rio Grande do Norte. A área é atualmente considerada a maior reserva do gênero do mundo.
Em Xingu, Orlando, Cláudio e Leonardo são interpretados pelos atores Felipe Camargo, João Miguel e Caio Blat, respectivamente. Orlando é o mais politizado e o que menos se envolve com a questão de maneira prática. Em várias cenas ele aparece na capital fazendo lobby político a favor dos indígenas. Leonardo é o oposto dele. Representa o personagem mais apaixonado, que lida com a questão de maneira emocional. Cláudio, o protagonista, é o ponto de equilíbrio entre os dois, pensando de maneira prática sem conseguir evitar o envolvimento emocional. O perfil dos três personagens evidencia uma das questões abordadas pelo filme: entrar em contato com os índios e correr o risco de prejudicar a cultura, ou manter o isolamento? A maneira pela qual os Villas-Boas vão lidar com essa questão é o conflito central do filme, dividindo os irmãos e, de maneira mais subjetiva, o próprio personagem principal.
Os indígenas aparecem no filme como personagens anônimos e co-adjuvantes. Nem mesmo aqueles que tem seu destino afetado de maneira mais direta pelos irmãos tem suas emoções exploradas. O fato de os índios não possuírem quase nenhuma fala em português ou legendada evidencia que o roteiro é construído a partir da visão dos homens brancos. Essa maneira de contar a história foi uma escolha da produção do filme, mas não colabora para o aprofundamento do debate nem para a originalidade do roteiro. O pano de fundo, o cenário, é a questão indígena, mas o conflito é entre três homens brancos, lidando com dilemas comuns (relacionamento familiar, envolvimento amoroso, perdas, etc.). E o que sentiam os indígenas em relação a tudo o que se passava? Como decidiram abandonar suas terras, se é que eles tinham esse apego, e quais os conflitos aí existentes?
Apesar de, como já citado, Xingu perder a oportunidade de sair do lugar comum e mostrar um tipo de drama diferente para a plateia, o filme mostra a saga dos irmãos Villas-Boas de maneira épica, com boa carga emocional e um uso moderado de licença poética. O embate dos irmãos indigenistas com o governo evidencia a política violenta e de descaso utilizada no movimento de colonização do centro-oeste brasileiro. A questão não perde nada em atualidade considerando os recentes debates em relação ao novo Código Florestal e a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, que pode prejudicar terras indígenas. Orlando, Cláudio e Leonardo protagonizaram um dos momentos mais emocionantes de nossa história. Por seus esforços na preservação cultural dos povos indígenas e pela criação do Parque Indígena do Xingu, os irmãos foram indicados duas vezes ao prêmio Nobel da Paz.
O enredo de Xingu na história de Santa Maria
A comunidade indígena Kaingang, que habita a cidade de Santa Maria e a região central do Rio Grande do Sul há milhares de anos, também enfrenta problemas referentes à questão de terra. Enquanto se banaliza a presença de crianças e mulheres no cenário urbano pedindo dinheiro ou fazendo alguma dança, se esquece da história e dos direitos que, cotidianamente, são cobrados pelo olhar de cada um da tribo.
O fato de 11 kaingang participarem da sessão do filme Xingu do dia 19 de abril de 2012, no Shopping Royal, chamou a atenção da mídia local. Diante de câmeras e microfones o cacique Natanael Claudino ressaltou o objetivo da ação organizada pela Seção Sindical dos Docentes da UFSM (SEDUFSM). Integrar o índio na atual sociedade e poder mostrar a situação de diferentes etnias indígenas a nível nacional foram as principais propostas da atividade. Xingu traz acontecimentos da década de 1940, mas dialoga com a própria realidade local de Santa Maria. Sobre a experiência, Natanael Claudino complementa: “Tudo isso que vimos no filme faz parte da nossa vida.”, demarcando a importância de apresentar aos kaingangs como a luta da comunidade é semelhante às demais questões indígenas existentes em todo o país.
Questão territorial: ficção ou realidade?
O acampamento kaingang instalado nas proximidades da Estação Rodoviária de Santa Maria completou dois anos em 2012. Ao longo do tempo, manifestações já foram feitas no centro da cidade e a população santamariense já expressou seu apoio aos kaingang. O poder público, porém, parece ignorar qualquer ato que questione a legalidade de se buscar por direitos e cobrar do Estado uma resposta às reivindicações indígenas.
Os kaingang, juntamente com o Grupo de Apoio aos Povos Indígenas (GAPIN), tentam mostrar que o próprio acampamento já reflete o descaso com que a comunidade é tratada. Problemas básicos de moradia são enfrentados por aqueles que pertencem a esta cidade antes mesmo de seu surgimento. A criação do Parque Nacional do Xingu apresentada no filme relaciona-se ao tema da territorialidade, que é o constante alvo das discussões entre os índios e a Prefeitura Municipal de Santa Maria. O cacique Natanael deixa clara a visão indígena levantada a partir do assunto: “Nossos antepassados contam histórias que vivíamos sem fronteira, como a gente viu no filme. Sempre vivemos sem fronteiras.”. Para completar o pensamento indígena sobre a questão da terra, Natanael ainda fala da importância de se pensar em políticas públicas e de ações do governo para a melhoria das condições de vida dos índios. Entretanto, a partir da criação de um território para eles, o governo passa a ter poder sobre esse espaço – tirando, assim, a autonomia de auto-organização das comunidades.
A iniciativa da SEDUFSM resgatou a data comemorativa do Dia do Índio para proporcionar uma experiência única a todos que estiveram na sessão. A assessora de comunicação da SEDUFSM, Vilma Ochoa, ainda comenta que o Sindicato tem feito outros trabalhos com os indígenas, como o apoio ao projeto de escola itinerante no acampamento – que tem o objetivo de alfabetizar os índios nas línguas kaingang e portuguesa. A conquista pelos direitos tirados dos indígenas há mais de 500 anos não pode ser apagada da memória brasileira. O filme Xingu retoma o debate a respeito das reservas indígenas, porém não aprofunda a visão do índio sobre o contato com o branco e os costumes trazidos para as aldeias indígenas. Independente da ida dos kaingangs ao cinema, uma certeza pode-se ter: se não existem índios protagonistas em grandes produções audiovisuais, há índios protagonizando lutas por uma igualdade de direitos e tratamentos, lutas que refletem uma dívida histórica a eles.
ESSA TERRA TEM DONO, pelo viés de Marina Martinuzzi e do colaborador Vitor Dornelles.
*Texto inicialmente reproduzido na revista Fora de Pauta.