A Operação Margem Protetora é a mais recente ofensiva militar de Israel contra a Faixa de Gaza numa série de três grandes ataques nos últimos seis anos. Lançada no último oito de julho, já deixou mais de 200 mortos e mais de mil feridos — os números ainda não pararam —, dentre os quais cerca de 75% são sabidamente civis. O governo de Israel diz que essa é uma operação em retaliação a foguetes lançados pelo Hamas contra o território israelense. É difícil, no entanto, encarar a situação como uma disputa equiparável, já que a Palestina nem forças armadas (exército, aeronáutica e marinha) tem para amedrontar a máquina bélica das Forças de Defesa de Israel (note-se que não são chamadas Forças Armadas, mas Forças de Defesa). Os números tampouco convencem: dentre os números citados antes, um israelense morto e cerca de 30 outros feridos — o resto são palestinos. Se quaisquer conclusões são difíceis de serem tomadas, de pronto já se percebe, no entanto, que não se trata de uma ‘guerra’.
A Operação Margem Protetora assusta dada a desproporção entre as forças de Israel e os grupos armados que agem a partir da Palestina. Frente à óbvia desigualdade entre os dois lados, o que mais assusta a quem está longe, talvez, além das fortes imagens vindas dos mortos e feridos na Faixa de Gaza, é uma inanição discursiva que parece anestesiar o sofrimento dos palestinos ou até mesmo justificar as ações de Israel sobre clamores de que se trate de um simples caso de defesa.
O ESTOPIM E O CONTEXTO: ASSASSINATOS E GEOGRAFIA
O suposto estopim dessa nova operação foi o assassinato de três jovens israelenses (Naftali Frenkel, Gilad Shaar e Eyal Yifrach) perto da maior cidade da Cisjordânia — conhecida, em árabe, como Al-Khalil e, em hebraico, como Hebron. Os crimes, que não foram assumidos pelo Hamas apesar das imediatas acusações, motivaram o assassinato de um jovem palestino (Mohammed Abu Khdeir), sequestrado e queimado vivo por três israelenses em Shuafat, perto de Jerusalém.
Gaza é como um grande campo de refugiados palestinos que, expulsos de suas terras no que se tornou o Estado de Israel, veem-se encurralados numa das áreas com maior densidade populacional do mundo. Tudo é controlado por Israel.
O que passa despercebido no assassinato dos três jovens israelenses é a localização. A cidade de Hebron/Al-Khalil é a maior cidade na Cisjordânia, com cerca de 250 mil habitantes, a maioria palestinos. Ela está dividida em dois setores: H1, governado pela Autoridade Palestina, e H2, governado pelas Forças de Defesa de Israel. Bem no centro da cidade, há o assentamento israelense de Otniel, habitado por cerca de 500 colonos judeus, em torno do qual Israel construiu todo um aparato de segurança. Se um palestino quiser atravessar essa área, deverá passar por um corredor do exército, com detectores de metal e revista (inclusive íntima). O assentamento, que não é o único na cidade, é amplamente condenado pela comunidade internacional e ilustra bem a tensão que existe entre Palestina e Israel em relação à ocupação do espaço.
O caso na Faixa de Gaza é ainda mais tenso porque Gaza está completamente cercada pelas forças israelenses — literalmente. Não há como se entrar nem sair de Gaza sem a permissão de Israel — por terra ou por mar, onde Israel também exerce um bloqueio. Existem três portões principais de acesso à Faixa de Gaza, dois deles controlados por Israel e um pelo Egito. Ou seja, Gaza é como um grande campo de refugiados palestinos que, expulsos de suas terras no que se tornou o Estado de Israel, veem-se encurralados numa das áreas com maior densidade populacional do mundo. Água, eletricidade, telecomunicações, comida — tudo é controlado por Israel, além do próprio ir e vir.
Como aponta Teodora Todorova, doutora em Teoria Crítica e Estudos Culturais pela Universidade de Nottingham, na Inglaterra, em entrevista à revista o Viés, esses dois exemplos, de Hebron/Al-Khalil e da Faixa de Gaza, ilustram o que o sociólogo Sari Hanafi chamou de espaçocídio, isto é ‘o ataque sistemático da geografia palestina como espaço habitável’, o que não inclui só a Faixa de Gaza, mas já a maior parte da Cisjordânia, contrariando a Resolução 181 das Nações Unidas, de 1947, que determina as fronteiras de Israel, da Palestina e de Jerusalém, e a Resolução 242, de 1967, que ordena o fim da ocupação de território palestino por Israel depois do fim da Guerra dos Seis Dias.
‘Não se trata de um conflito religioso nem cultural. Trata-se de um conflito político por terra e por recursos’.
O termo espaçocídio é central para entendermos a situação e não cometermos o erro de fazer a leviana comparação da política israelense de invasão e ocupação de territórios com a política nazista de genocídio. Comparar Israel ao Nazismo é, por definição, paradoxal, já que a própria criação do Estado de Israel foi também uma reação ao Nazismo. Além disso, apesar de o número de mortes de palestinos ser quase sete vezes maior do que o número de mortes de israelenses, o intuito declarado de Israel não é exterminar o povo palestino como no caso da Alemanha das décadas de 1930 e 1940. Isso não significa que não haja grupos que profiram discursos que, em última análise, classifiquem-se como genocidas, como é o caso, por exemplo, do partido de ultra-direita Lar Judaico no Knesset, o parlamento israelense.
Além disso, a questão não pode ser explicada em termos de conflito entre duas religiões, a saber o judaísmo e o islamismo. O elemento religioso de fato faz parte da equação do conflito, mas não o resume. Segundo a Drª Todorova: ‘Não se trata de um conflito religioso nem cultural. Trata-se de um conflito político por terra e por recursos’. Não se pode, portanto, resumir o conflito entre Israel e Palestina a uma questão de ‘civilizações incompatíveis’. Judeus e muçulmanos sempre viveram na região, desde tempos bíblicos — o cerne do conflito é, assim, o fator geográfico, ou seja: por um lado, israelenses que clamam territórios que não lhe pertencem de acordo com resoluções internacionais e, por outro, palestinos que, num golpe executado por poderes estrangeiros, viram-se expulsos de suas antigas casas sem a possibilidade de retornar (mesmo que o direito ao retorno, este também, tenha sido determinado pela Resolução 194 das Nações Unidas, de 1948 — descumprida por Israel).
VERNICHTUNG: O SUBTERFÚGIO DA DEFESA PELA NEGAÇÃO DA HUMANIDADE
A ação militar desproporcional de Israel é justificada como um ato de defesa contra ataques de organizações armadas palestinas, mas, pela perspectiva palestina, o que Israel tenta fazer é criar subterfúgios para continuar a tomar terras palestinas. A pergunta que se extrai dessa querela, no entanto, é por que a justificativa de defesa de Israel prevalece sobre a perspectiva palestina? Isto é, por que a invasão e a ocupação de mais e mais terras palestinas e o cerco àquelas que ainda não foram ocupadas por israelenses se sobressaem no senso comum?
A resposta para essa pergunta me parece estar numa ferramenta ideológica de macabra aproximação entre a política israelense e a política nazista. Novamente, isso não implica, de maneira alguma, dizer que Israel e Alemanha nazista sejam idênticos. Os contextos são diferentes e a perversidade nazista não suporta tal comparação. A aproximação entre os dois se dá no campo das ferramentas discursivas, ou seja, na disseminação de ideias que acabam por tecer uma rede de estigmas e preconceitos que, em última análise, justificam os ataques das Forças de Defesa de Israel contra a Palestina. Essa disseminação de ideias representa a inanição discursiva a qual me referia antes: um vazio entre o que se declara e o que se faz de fato.
A força do discurso de defesa de Israel lembra, pela própria história de sofrimento do povo judeu, a força do discurso nazista, segundo o qual a Alemanha estaria simplesmente se defendendo da ameaça judia, cunhada com o poder da palavra Judenfrage — a questão, o problema judeu. Para os nazistas, a solução final para esse problema era o extermínio da existência física de todos os judeus — genocídio. Para Israel, a solução final para a questão palestina não é, abertamente, o extermínio dos palestinos, mas a sua gradual expulsão das terras cobiçadas por Israel — espaçocídio.
Se os palestinos não são vistos como plenamente humanos, isto é, se são, em comparação aos israelenses, diminuídos à loucura suicida dos homens-bomba, por exemplo, rejeitam-se suas declarações de autodeterminação. Não sendo gente, não podem ser povo. E não sendo povo, não podem reivindicar terras.
Para expulsar os palestinos de suas terras, a estratégia israelense é a negação. E é daí que podemos aprender com a ideologia nazista. No início do filme A Escolha de Sofia (1982), a personagem de Meryl Streep conta como ela costumava transcrever os discursos do pai, simpatizante da ‘causa’ de Hitler, sem prestar atenção às palavras até que ela percebeu a força de um novo termo vociferado pelo pai: ‘A solução para o problema judeu na Polônia é Vernichtung’ — isto é, o extermínio. Essa palavra, no entanto, tem um outro sentido além do de extermínio por destruição. A origem da palavra remete à mesma raiz das palavras ‘não’ (nicht) e ‘nada’ (nichts), que provêm da aglutinação dos termos do Alto-alemão antigo para ‘nunca’ (nio) e ‘ser, criatura’ (wiht). O verbo vernichten, portanto, pode também ser entendido como o extermínio pela negação da existência.
A política de Israel se baseia nesse sentido de vernichten, no sentido de negar, em primeira instância, a humanidade dos palestinos. Esse discurso é amplamente reproduzido naquilo que se convencionou chamar de Ocidente: as imagens dos palestinos são sempre de pessoas maltrapilhas, histéricas, com as mãos ao céu, gritando numa língua ininteligível aos ouvidos leigos. Enquanto isso, os israelenses aparecem com roupas ocidentais, falando um por vez, geralmente em inglês ou devidamente traduzidos. Aos israelenses, dá-se a oportunidade de mostrarem suas casas e como o seu cotidiano é perturbado por alertas de bomba. Aos palestinos, sobra o fardo de serem todos tachados como terroristas em potencial, como fanáticos religiosos, como corpos bestiais — desprovidos, dessa forma, da condição humana que aproxima os israelenses dos Ocidentais e relega os palestinos à imagem do Oriente, misterioso, traiçoeiro e irracional.
A consequência da negação discursiva da humanidade dos palestinos é o esvaziamento de quaisquer demandas de reconhecimento dos palestinos como tais — como povo e cultura, com história e terra. Se os palestinos não são vistos como plenamente humanos, isto é, se são, em comparação aos israelenses, diminuídos à loucura suicida dos homens-bomba, por exemplo, rejeitam-se suas declarações de autodeterminação. Não sendo gente, não podem ser povo. E não sendo povo, não podem reivindicar terras.
Israel ainda nega a existência da Palestina ou do próprio povo palestino ao revidar um suposta relutância de os palestinos aceitarem o direito de Israel existir. Dada a materialidade de muros que Israel construiu, de um exército formidavelmente forte, com 176.500 soldados ativos e outros 445.000 reservistas, com um orçamento anual de US$16.5 bilhões, de um apoio incondicional de países como Estados Unidos e Reino Unido — a acusação de que Israel só se defende de uma suposta negação da sua existência soa absurdamente frívola. Da mesma maneira como não se sustenta o argumento de que a Palestina nunca existiu, de que sempre se tratou de uma região geográfica. Existe aí uma tremenda ignorância do processo de criação e estabelecimento dos Estados-nação modernos, um processo que só se consolidou como o conhecemos hoje na Europa do século XVII com a Paz de Vestfália. A Palestina existia já desde muito antes: seus primeiros registros vêm do Egito Antigo, fez parte do Império Romano, da Grande Síria, foi anexada ao Império Otomano até que, com o fim da Primeira Guerra Mundial, foi feita um protetorado britânico. Ignora-se que um Estado-nação requer de antemão uma região geográfica, um pedaço de terra sobre o qual se estabelece um domínio. É impossível, portanto, negar o direito de Israel existir — ele já existe e deixa isso bem claro; assim como é impossível negar que a Palestina também existe — os registros históricos e a autodeterminação dos palestinos dizem o contrário.
Se essa negação discursiva da humanidade dos palestinos parece incapaz de fomentar ações no plano material, ficam quatro exemplos. No Knesset, a parlamentar Ayelet Shaked declarou publicamente todos os palestinos como inimigos de Israel, sobre cujas cabeças seu sangue deveria ser derramado. No Twitter, adolescentes israelenses publicam selfies com dizeres racistas, clamando pela morte de todos os árabes. Ofer Winter, comandante da brigada de infantaria das Forças de Defesa de Israel, roga a Hashem (Deus) que permita o êxito de seus batalhões contra o inimigo que amaldiçoa seu nome. Sheldon Adelson, dono do jornal de maior circulação nacional, Israel HaYom, pede que se devolva Gaza à Idade da Pedra.
Esses exemplos não suprimem outros que certamente existem de extremistas árabes fazendo declarações semelhantes com relação aos judeus, mas existe entre os dois conjuntos de exemplos uma diferença fundamental. De um lado, temos grupos árabes que rogam pela destruição de Israel, mas cujos discursos são automaticamente descartados por preconceito e incitação ao ódio. As ações bélicas desse lado são, elas também, rechaçadas como ‘terrorismo’. Do outro lado, temos grupos judeus praticando o mesmo discurso de ódio e de sede de sangue, mas, aqui, amparados por um dos exércitos mais avançados do mundo, cujas ações militares são geralmente negligenciadas sob o discurso de ‘direito à defesa’ contra o que se tem mostrado não ser mais do que foguetes capengas lançados pelo Hamas e pedras e pedaços de pau levados em riste nas mãos de civis palestinos.
Não há conclusões fáceis sobre esse conflito, mas é inegável a preponderância do discurso israelense a balizar fortes ataques contra a população palestina. Se a solução dos dois Estados, como havia sido determinada pela ONU há 67 anos, parece inviável e se os Acordos de Paz de Oslo de 21 anos atrás não são mais do que um fio de esperança desencapado, o que se pode afirmar com total convicção é que não se podem desumanizar os palestinos e negar-lhes seu direito a todas as expressões inerentes à condição humana (religião, língua, história, terra etc.) ao passo que se reluta a enxergar a crescente dissimulação com que Israel justifica mais mortes de inocentes enquanto lhes toma suas terras e seu direito de existir como grupo autodeterminável.
O EXTERMÍNIO DISCURSIVO DA CONDIÇÃO HUMANA DOS PALESTINOS, pelo viés de Gianlluca Simi
gianllucasimi@revistaovies.com