A oficialização da Unasul, em 2008, renova o sonho duma América Latina unida, mas ainda peca por deixar de lado a gente e a vida vivida em prol das macro-formalidades.
A América Latina tem sido, há séculos, terra de exploração por parte dos países industrializados. Vivemos agora como se fôssemos completamente livres e soberanos. A exploração pode não ser mais tão visível e sensível quanto já foi, mas ela está longe de extinta. Sutilmente, a mentalidade colonizadora se estabeleceu na América Latina e, até hoje, inunda o nosso cotidiano – impera o desconhecimento e o desinteresse sobre os outros povos da região enquanto ainda se almeja alcançar a Europa e os Estados Unidos.
Assim, talvez sejam pouquíssimos os latino-americanos que tenham a possibilidade de se reconhecer deveras patrícios dos povos que compartilham entre si um passado de invasão, extermínio, dominação e, ao mesmo tempo, riqueza cultural, astúcia e resistência. Mesmo assim, nunca faltaram tentativas de uni-los para que conseguissem se desenvolver com vistas às suas próprias realidades e culturas. Desde Simon Bolivar, conhecido como El Libertador, que, em 1826, encabeçou o Congresso do Panamá, onde propôs a integração de várias ex-colônias espanholas até a criação da gigantesca Unasul (União das Nações da América do Sul), parece que há uma emergência na região: a integração.
O encontro proposto por Bolivar não concretizou seus sonhos, mas não foi o único momento em que isso foi tentado. Em 1969, surgiu o Pacto Andino entre Bolívia, Colômbia, Chile, Equador e Peru, que hoje se chama CAN (Comunidade Andina de Nações). Em 1991, Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai criaram o MERCOSUL (Mercado Comum do Sul). No entanto, foi entre 1994 e 2005, período em que vigoraram as negociações para a criação da inexitosa ALCA (Área de Livre Comércio das Américas), que as intenções integracionistas preocupadas com o desenvolvimento deste lado do continente americano voltaram à tona, o que culminou com a criação da Unasul.
O Tratado de Brasília, que oficializou a União, em 2008, marcou o início do maior esforço para integrar os países da América do Sul. Atualmente, são onze membros, todos os Estados soberanos da região menos o Paraguai, que foi suspenso neste ano depois do fiasco do golpe que depôs Fernando Lugo da presidência. No Tratado, podemos ler as mais louváveis intenções: desenvolvimento sustentável, eliminação da pobreza e das desigualdades sociais, construção duma identidade e duma cidadania sul-americanas. A Unasul e todos seus conselhos e demais órgãos (cerca de dezesseis no total – entre eles o Parlasul e o Banco do Sul) já funcionam plenamente desde o ano passado, quando se tornou uma pessoa jurídica. Porém, mesmo perante a tamanho esforço governamental e à indicação de que a estrutura só há de aumentar, fica a indagação: onde estará a integração dos povos, das pessoas?
A Unasul é basicamente composta pelo MERCOSUL e pela CAN, ambos projetos de teor econômico ou, como o diplomata Ricardo Seitenfus escreve: “Os processos de integração são de natureza econômica e, em um primeiro momento, essencialmente comerciais”. A grande questão com o MERCOSUL, com a CAN e com a Unasul é que pouco ou nada significam no cotidiano de milhões de pessoas na América do Sul. São projetos, estruturas, instituições que operam do alto – da lei, dos governos, do papel. Quem conhece a Unasul e sabe dos seus princípios, de suas propostas e dos direitos que, com ela, ganhamos? Onde, no dia-a-dia, podemos nos sentir integrados e unidos? As propostas de integração sul-americana até agora têm se bastado nos acordos comerciais, nas alfândegas, na infraestrutura industrial. Ganhamos com coisas, perdemos em gente.
O filósofo Henri Lefebvre argumentava ser no cotidiano onde toma corpo o que vem de “reinos superiores”. Supomos, então, que os processos de integração, liderados por Estados, incluíssem, mais do que a integração das coisas, a integração das pessoas, dos povos. Como desejar uma América do Sul e, futuramente, uma América Latina e um Caribe unidos e cooperativos se não nos conhecemos, se não nos interessamos no encontro com aqueles com os quais dividimos uma sigla? A falha da Unasul está na sua extrema formalidade, na burocracia banal e no consequente distanciamento dos processos de integração do mundo da vida, do mundo das vivências, do Lebenswelt de que falava Edmund Husserl.
Do pouco que sabemos dos feitos da Unasul, só nos contam de investimentos em indústrias, em estradas, em armas, de redução de taxas de importação, de parcerias comerciais. Não sabemos do que faz a Unasul pela troca cultural, pelo encontro daqueles que viviam [ou ainda vivem?] separados por fronteiras impostas por impérios europeus. Como está o ensino de espanhol nas escolas brasileiras e o ensino de português nas escolas hispanófonas? Os incentivos para intercâmbio entre os países da Unasul se assemelha à montanha de dinheiro que o Brasil, por exemplo, investirá ao levar seus jovens para estudar nos centros do capitalismo com o programa Ciência Sem Fronteiras? E a mídia, o que faz senão reproduzir estereótipos e estranhamento (a saber, o grande besteirol que é a tal rivalidade entre o Brasil e a Argentina)? Não nos conhecemos e, enquanto o foco da Unasul ou de qualquer outro futuro desdobramento de nossos projetos integracionistas não forem as pessoas, manteremos uma integração desigual, daquelas que só existem para as mercadorias, para o capital e para os interesses dos que estão no poder. A integração é um processo que deve começar e reverberar por baixo – na vida da gente, na aproximação entre os povos.
Como diz Joaquin Piñero, membro do MST (Movimento dos Sem-Terra) e da Secretaria Operativa da Articulação Continental dos Movimentos Sociais: “nosso horizonte fundamental é a integração desde baixo, a partir dos povos, para impulsionar transformações antineoliberais e anti-imperialistas que resgatem as formas alternativas e solidárias de intercâmbio que temos criado em nossos territórios para enfrentar a dominação neoliberal”. Isto é, é de suma importância que, além das medidas governamentais, formais, burocráticas, haja também, como a exemplo da Secretaria Operativa de que Piñero faz parte, um fluxo de união dos movimentos sociais – representando as vontades e as realidades da gente que não está nos conselhos da Unasul, que não tem voz nas sessões do Parlasul. Além da integração comercial, política, militar, a mais importante é a integração que comunga os povos, que dá voz a seus prantos e a seus pontos de vista.
Nesse sentido, vemos um ponto crucial a ser desenvolvido na América do Sul e, amplamente, na América Latina. Nossos processos de integração meramente macro (do dinheiro, da estrada e do exército) ignoram que, aqui, ainda reina a comparação individual e social com os centros do capitalismo, ou seja, com os países industrializados – aqueles erroneamente ditos ‘países desenvolvidos’. A mentalidade que preenche a periferia da América é ainda a da subserviência, do temor, da resignação.
Na integração que vem de baixo, entretanto, a voz se ergue da maioria e fala sobre si mesma, faz-se visível, mostra-se viva. A América Latina não deve ser uma cópia da Europa; não precisamos tentar copiar a trajetória que ela e os Estados Unidos tiveram. Devemos construir nossos próprios caminhos e, se o fizermos unidos, poderemos somar nossa forças, nossas histórias, nossa gente. Como disse Dennis de Oliveira, professor da USP (Universidade de São Paulo): “O que se tem, então, é que as ideias de integração latino-americana se confundem com posturas libertárias e anti-colonialistas, entendo aqui o colonialismo para além do aspecto formal: colonialismo como uma ideologia que justifica um posicionamento subalterno na geopolítica internacional”.
A integração que começa nas pessoas e nelas termina está, logo, fadada ao sucesso. Não se trata, no nosso caso, de enaltecer a América do Sul ou a América Latina, de erguer bandeiras e regurgitar nacionalismo banal. Tampouco, portanto, trata-se de reduzir outros povos, quaisquer povos. Trata-se de reconhecer na nossa história aquilo que ainda nos fere a, então, corrigi-lo. Eliminar a exploração, a dominação, a minoria poderosa – é para isso que serve a integração, que reconhece os vários polos, que se equilibra e que se soma. A Unasul pode não ser o primeiro passo, mas, com certeza, poderá ser o maior deles se soubermos fazê-la de gente, de carne e de vida.
Bibliografia
OLIVEIRA, Dennis de. Integração Latino-Americana. In: Geografia Conhecimento Prático, n. 44, pp. 20-25.
LEFEBVRE, Henri. The Critique of Everyday Life, v. II. Londres: Verso, 2008.
SEITENFUS, Ricardo. Relações Internacionais. Barueri: Manole, 2004.
PIÑERO, Joaquin. Integração popular continental: a hora é agora! Le Monde Diplomatique <http://diplomatique.org.br/artigo.php?id=1203>
Impressão
O jornalismo internacional é normalmente tido como o jornalismo de alhures – outros lugares, outros povos, outras línguas pelo canal de outros países. Logo, ele se apoia fortemente nas fronteiras, nas divisões políticas e nas diferenças de superfície (a língua, o rosto, o governo). Ele acaba se tornando a reprodução do mesmo poder que levou à divisão entre um país e outro – divisão que se alarga e é levada ao extremo: de pronto, as pessoas mesmas são apartadas pela linha imaginária que separa Estados.
Mas como fazer jornalismo internacional ou, no mínimo, como se dizer fazendo jornalismo internacional quando não se acredita em fronteiras? Eu não acredito nelas e, assim, minha consideração pelo consequente retalho do mundo em Estados-nação é mínima. Por esse viés, todo jornalismo e toda escrita poderiam ser internacionais. Só não poderiam como deveriam! Um dia, quiçá, a imagem da nação-país não nos determine já de fronte, mas possamos traçar as trajetórias pessoais de quem escreve e de quem lê com a liberdade de quem vê o mundo sem fronteiras – um jornalismo global.
Nenhum outro tema me pareceu tão cabível quanto o da integração e, em especial, a integração latino-americana – essa parte do mundo tão explorada e, ao mesmo tempo, tão iminente. A integração é o primeiro de muitos e longos passos a levar à supressão das fronteiras, como a formar uma região supranacional – ou melhor: ‘anacional’, livre de países. O mais difícil de escrever sobre é exatamente alcançar um ponto de vista popular. Poucos sabem da existência de projetos como a UNASUL nem saberiam falar muito sobre o MERCOSUL – são projetos que existem, mas só na ‘alta corte’, no parlamento, para o poder. Faltam-nos percepções cotidianas, não necessariamente acadêmicas como aquelas a que temos mais acesso. O desafio do jornalismo internacional provavelmente seja, então, liberar-se das fronteiras formais, dos livros, dos depoimentos, dos pronunciamentos. Mas, para isso, só há um jeito: mover-se!
A INTEGRAÇÃO LATINO-AMERICANA DESDE BAIXO, pelo viés de Gianlluca Simi
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