O UNO E O EGO

Há pouquíssimas comunidades ainda autóctones, completamente isoladas. Sequer, creio eu, podemos dizer que, algum dia, elas tenham sido ou estado totalmente desconectadas uma de outras e submersas numa existência em-si. Migrações pré-históricas, civilizações antigas, impérios, cruzadas e expansão mercantil foram todos fenômenos de movimento, de deslocamento em rumo a lugares e pessoas além do horizonte imediato. Nos tempos de que podemos nos lembrar, vemos a expansão duma crença no domínio dos meios de produção engolir fronteiras em prol do comércio, mas, ao mesmo tempo, reerguê-las e fortificá-las tanto mais quando se trata de gente.

Desde a segunda metade do século XX, mais intensamente a partir das décadas de 1970 e 1980, falamos da globalização e, mais recentemente, de sua irmã, a mundialização. A primeira trata de política e de economia e a segunda, de culturas. Porém, elas não me parecem apartadas em essência. Ambas pressupõem contato com outros: outras crenças, outras histórias, outras estruturas, outras pessoas. Nesse momento, de contato e de aparente novidade, podemos nos aproximar de quem poderíamos ser ou nos afastar daquilo que não percebemos em nós mesmos.

Temos errado como animais, como seres humanos, como gente, pois, pela história, encontrar-se com os outros tem significado reduzi-los a um – o Outro, em quem se sintetiza tudo aquilo que cremos nos afastar de quem nós, do lado de ‘cá’, deveras somos. O mundo se parte em dois e, num dos instintos – o da sobrevivência da besta -, repelimos o plural e nos quedamos só com o único, o singular e o particular – o Uno. É de um só que temos criado nossa identidade – pela matemática que impomos a algo nada quantitativo como o ser, o infinito é feito de unidades a se perderem de vista. Nem notamos, entretanto, que a própria unidade, dentro dela mesma, constrói-se de infindáveis quebras, cisões, ramificações.

Quando nos damos de cara e de pele com o que não-percebemos-em-nós, como manter a ilusão de ser só um viva? Num ataque primitivo (ou, ao contrário, tão evoluído quanto parece ser o humano), o fundamental aparente é definir, distinguir para, então, isolar e renegar o infinito possível – o Ego.

Juntos, o Uno e o Ego são como mercenários da autoflagelação. Não enxergam, não reconhecem, não admitem. Eles fecham, separam, emudecem-se. Têm sido, aparentemente, o imperativo de gente que não se vê como gente nenhou se vê em gente – esses só se veem a si próprios e, no limite de sua cognição e teimosia, pintam também quem o Outro deve ser. Para as civilizações que se mataram, para os europeus que invadiram a América, para os católicos que queimaram ‘bruxas’, para os maoístas que encarceraram o ‘atraso’, para os nazistas que queimaram o ‘sujo’, para os racistas que batem nos ‘de cor’, para os homofóbicos que esculacham o ‘imoral’, para os tradicionalistas que negam o andamento…uma lista infinita, também cheia de quebras e cisões e ramificações, mas, para cujos componentes, não há possibilidade de convivência, cooperação, compreensão, comunicação – só há o mau, o torto, o subversivo.

O Uno e o Ego ainda imperam na construção do medo e na manutenção da ilusão de continuidade e ordem. Ordem e progresso, tradição, moral – nomes que não dizem nada, só denunciam a incompreensão e o desrespeito à infinita irregularidade de que se trata, enfim, ser humano. 

O UNO E O EGO, pelo viés de Gianlluca Simi

gianllucasimi@revistaovies.com

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