Praça da Porta do Sol, Madri. Perto da meia-noite, cerca de 20 mil pessoas aguardavam as doze badaladas do relógio da Real Casa de Correios que marcariam a passagem de sexta para sábado e a entrada de todas elas, oficialmente, na ilegalidade. O relógio começa a bater e todos levantam as mãos em um grito mudo. À décima segunda badalada, irrompem palmas e gritos em êxtase, e o contingente a perder de vista canta em uníssono: “o povo, unido, jamais será vencido”.
A cena foi protagonizada pelos milhares de cidadãos que ocupam as ruas da Espanha desde o último domingo e fazem parte do movimento M-15 (nome em referência à data do início das manifestações, 15 de maio). As manifestações, que eclodiram na semana anterior às eleições regionais e municipais do país, foram proibidas pela Junta Eleitoral Central e pelo Supremo Tribunal, nas 24 horas que antecedessem a data do pleito – ou seja, a partir da meia-noite de sexta para sábado. A proibição acabou motivando mais pessoas a participarem dos eventos e culminou em uma prática exemplar de desobediência civil.
O movimento, também chamado de Democracia Real Já, começou a se organizar com uma convocação nas redes sociais para tomar as ruas das principais cidades da Espanha. Los indignados, como são chamados pela mídia local, protestam contra uma série de questões relacionadas à situação social da Espanha e manifestam sua indignação com a situação econômica e social guiada por políticos, banqueiros e instituições da chamada “comunidade internacional”.
Pessoas de diversas cidades e regiões da Espanha juntaram-se ao movimento ao longo da semana. O M-15 iniciou com os jovens, mas logo contou com a adesão de pessoas de diferentes idades. Na noite de sexta, além dos mais de 20 mil manifestantes em Madri, havia 5 mil em Barcelona, 10 mil em Valência, 7 mil em Málaga, 4 mil em Sevilha, 3 mil em Bilbau, entre muitas outras localidades menores que registraram alguma atividade – segundo o jornal El País, foram 60 mil pessoas às ruas em toda a Espanha.
A crise na Espanha
A Espanha sustenta o décimo segundo maior PIB nominal do mundo e possui o 20º melhor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Apesar dos índices altos, a crise de 2008 atingiu em cheio o país, que viu o crédito barato e a longo prazo dos tempos de economia estável dar lugar a um alto endividamento público e, principalmente, privado – boa parte do qual no exterior. A dívida pública espanhola, criada a custo da recuperação do setor privado após um longo período de abusos, e a estagnação da economia nacional fizeram com que o governo adotasse as “medidas de austeridade” típicas de governos neoliberais.
Apesar do nome, o governo do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) não hesitou ao adotar tais medidas de diminuição do Estado, como a venda de empresas públicas, o corte de funcionários públicos, “flexibilização” das leis trabalhistas e o fim do auxílio extraordinário a desempregados.
A situação crítica se reflete diretamente na população: há quase cinco milhões de desempregados na Espanha, o que equivale a mais de 20% da população ativa. Entre os menores de 25 anos, as taxas de desemprego superam 40%. Em estudo, o Banco da Espanha calculou que a taxa de desemprego não começará a diminuir antes de 2012.
Além disso, segundo dados oficiais, o Índice de Preços ao Consumidor (IPC) na Espanha subiu 1,2% em abril – o maior aumento mensal desde outubro de 2007 – e a inflação em relação ao mesmo mês do ano passado chegou a 3,8%, o índice mais alto desde 2008.
O descrédito das instituições
Na madrugada de 18 de maio, quarta-feira, os manifestantes reunidos na Praça da Porta do Sol redigiram o Manifesto Plural, em que foram estabelecidos pontos de acordo entre os manifestantes. O Manifesto (leia a versão completa aqui) define as ações do movimento como “em marcha e de resistência” e o primeiro ponto diz o seguinte: Depois de muitos anos de apatia, um grupo de cidadãs e cidadãos, de diferentes idades e extratos sociais/profissionais (estudantes, professores, bibliotecários, desempregados, trabalhadores…), REVOLTADOS com a sua não-representação e com as traições levadas a cabo em nome da democracia, reuniram-se, na Puerta del Sol, em torno da ideia de Democracia Verdadeira.
E o que seria uma Democracia Verdadeira? O segundo ponto especifica: A Democracia Verdadeira opõe-se ao paulatino descrédito de instituições que dizem representar os cidadãos e foram convertidas em meros agentes de administração e gestão, ao serviço das forças do poder financeiro internacional.
O Manifesto Plural e o próprio nome do movimento – Democracia Real Já – demonstram a posição de ceticismo da população espanhola, não só em relação a medidas específicas do governo, mas em relação ao sistema político e econômico que determina quem sempre acaba pagando pelos abusos de uma elite para que ela possa manter o país “estável” e sem riscos aos investidores externos.
A indignação se volta não só aos principais partidos políticos do país, o PSOE e o Partido Popular (PP), mas também às instituições financeiras internacionais, que mantêm o país refém da especulação e só permitem vislumbrar saídas na submissão a seus parâmetros – nominalmente, o FMI, a OTAN, a União Europeia, as agências de classificação de risco e o Banco Mundial.
Revoltas em rede
O que em janeiro despontou, nas revoltas árabes, como uma novidade intrigante – ainda que em um contexto geopolítico muito diferente – já é percebido como algo natural. As redes sociais já se estabelecem como uma etapa lógica na organização de movimentos populares de massa que têm, de maneira concreta, alguma influência no mundo real.
Em 2008, a eleição de Barack Obama para a presidência dos Estados Unidos dependeu fortemente da campanha via internet e, principalmente, da adesão das pessoas à causa. Uma adesão efetiva, e aí estava o ineditismo, com contribuições à campanha e manifestações fora do ambiente da web. A novidade, em 2011, é a utilização da rede mundial para mobilizações marginais agendadas pela própria necessidade da população.
Uma característica comum nas manifestações que desestabilizaram regimes no início do ano nos países árabes e o M-15 na Espanha, além da expressividade numérica, é a ausência de líderes e de filiação a alguma tendência política determinada, mesmo que tais filiações existam em partes do movimento. As identidades se diluem na massa e os verdadeiros protagonistas são os cidadãos, assim como nas redes sociais o protagonismo se dilui entre os diversos perfis.
No caso de Egito e Tunísia – agravado pela repressão de regimes totalitários – existe ainda uma outra semelhança: como na Espanha, a situação social se tornou insustentável para populações habituadas a um padrão elevado de qualidade de vida.
O imperativo da urgência leva a população em peso às ruas, mas a falta de uma organização política efetiva, nos moldes tradicionais, pode comprometer os resultados obtidos. Egito e Tunísia, apesar da queda dos ditadores, ainda vivem situações políticas instáveis.
A mobilização na Espanha, sem o problema da repressão, parece ir por outro caminho. Ao longo da semana, o M-15 tem organizado acampamentos e comissões encarregadas da alimentação, comunicação, infraestrutura e atividades, e aconselhamento jurídico. Na Praça da Porta do Sol, em Madri, a reunião dos populares pode ser acompanhada do mundo inteiro em tempo real pela Sol TV. Além disso, diariamente são realizadas assembleias para decidir o rumo das manifestações e os próximos passos do movimento.
Outra característica do Democracia Real Ya é o interesse em buscar encaminhamentos e uma mensagem política unificada do movimento durante as assembleias, fazendo proposições práticas de mudanças. Um exemplo é a proposta de uma reforma na Lei Eleitoral do país, expressa em um dos pontos do Manifesto Plural.
“Sem emprego, sem dinheiro, sem medo”
Centenas de manifestações em apoio ao movimento M-15 espanhol ocorreram em diversos locais do planeta, por solidariedade ou, mais provavelmente, por identificação. Afinal, a imagem de um povo submetido aos mandos e desmandos de uma elite econômica que se apodera do sistema político e só sabe socializar seus prejuízos é mais do que comum.
A inspiração para o movimento Democracia Real Já pode estar nas Revoltas Árabes e nas mobilizações populares recentes dentro da própria Europa. O certo é que os espanhóis resolveram se levantar, ao invés de esperarem pela próxima crise que é estrutural e certamente virá. E às críticas dos setores conservadores da sociedade, que chamam o movimento de “boicote à democracia” e “antissistema”, a massa responde: “no somos antisistema, el sistema que es antinosotros”.
Cada vez mais, o sistema de dominação capitalista tem dificuldades de manter a população adormecida, prisioneira da rotina e do mito da prosperidade, e cada vez menos, a população tem medo de dizer não para a inércia do cotidiano e ir às ruas clamar por mudanças. Entre se resignar ou se indignar – as duas opções que existem na vida, segundo o antropólogo Darcy Ribeiro – los indignados parecem já ter feito a sua escolha.
Grito Mudo. Praça da Porta do Sol, Madri
“SE NÃO NOS DEIXAM SONHAR, NÃO OS DEIXAREMOS DORMIR”, pelo viés de Tiago Miotto
tiagomiotto@gmail.com
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