1996: uma afronta ao governo. Michael Jackson, o maior dos astros pop, pede autorização ao traficante Marcinho VP para gravar o clipe “They don’t care about us” no morro Dona Marta, “entrada” da Zona Sul carioca.
2008: mais de dez anos depois a favela Santa Marta, incrustada no morro Dona Marta, é escolhida como ponto inicial para um projeto audacioso: a criação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), batalhão policial efetivo na favela, que permaneceria na área definitivamente.
O projeto virou realidade e ganhou destaque: antes a polícia invadia violentamente e, com o passar de semanas, desocupava a área, devolvendo a posse às facções criminosas; com as UPPs essa realidade foi alterada, o que antes era uma “invasão” policial tornava-se uma área totalmente controlada pelo poder policial, braço do governo. A polícia subia para ficar.
Dois anos se passaram e só há alguns meses o número de áreas “pacificadas” na Zona Norte superou o número de “pacificações” na Zona Sul, mais rica, mais famosa e mais lembrada pelos noticiários. São quatro as áreas pacificadas na Zona Sul e cinco na Zona Norte (além de duas na Zona Oeste e outra no Centro).
Segundo as autoridades responsáveis pelo projeto, capitaneado pela Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, as atuais pacificações são feitas nessas áreas por se tratarem de comunidades menores, que demandam menos efetivo. No entanto, na lista das favelas pacificadas saltam aos olhos nomes conhecidos: áreas famosas na literatura, no cinema ou no noticiário. Santa Marta, Cidade de Deus, Morro do Turano (retratado no filme Tropa de Elite), Morro da Providência (que ganhou fama depois da morte de três jovens, entregues a traficantes de uma favela rival por oficiais do Exército).
Já outras áreas mais violentas, como os Complexos da Maré, da Penha e do Alemão são deixadas de lado. Nos planos da Secretaria de Segurança tais áreas só serão pacificadas a partir de 2011, ou mais tarde.
UPPs: solução pra quem?
Não se julga aqui a eficiência dessas unidades em diversos aspectos, sejam eles efetivos (como a repressão ao crime) ou mais intuitivos (como a “sensação” de segurança). Mas qual o preço que se paga? E até aonde vai a simples vontade de reverter a situação de carência das comunidades e começam outros interesses.
Na 6ª edição do jornal “Vozes da Comunidade”, mantido pelo Núcleo Piratininga de Comunicação e construído por moradores das favelas fluminenses, o destaque é para a luta pela moradia. Uma nota questiona a ação das UPPs: “SANTA MARTA: moradores temem que morro vire moradia para os ricos”.
À margem das benesses se escondem contas de luz, água e todos os encargos que expulsaram tantos moradores do “asfalto” para a ocupação dos morros. Os populares “gatos”, ligações elétricas clandestinas, foram trocadas por contas mensais fixas de 70 reais por domicílio. Os aluguéis também aumentaram com a implantação das UPPs.
A nota do jornal explica: “Surgiu a taxa de luz e, em breve, deve surgir a taxa de água. Por enquanto, a taxa de luz cobrada pela Light é fixa, independente do consumo.
São 70 reais que pesam no orçamento de muitas famílias. ‘Estamos com dificuldade. É um dinheiro que eu podia estar gastando com a alimentação da família’, lamenta Leandro Serafim, 27 anos, que mora com a mulher e quatro filhos. ‘A situação vai ficar cada vez pior com a promessa de outras taxas’, se preocupa Leandro. Alguns moradores já pagam IPTU e brevemente pagarão água”.
A entrada dessa população na legalidade é algo extremamente positivo, mas sem que haja um entorno de cuidado social essa entrada não ocorrerá como o esperado. O morro Dona Marta é o melhor exemplo disso. Com uma das melhores vistas da cidade, e agora com a segurança das UPPs, a favela passou a ser cobiçada. Os aluguéis aumentaram e muitas famílias já enxergam a possibilidade de irem para outras áreas por não terem como se manter na favela.
As autoridades negam, mas pode-se dizer que toda essa mobilização tem uma motivação extra: criar uma impressão positiva do Rio de Janeiro quando a atenção de boa parte do mundo estará voltada para os dois maiores eventos esportivos do planeta, Copa do Mundo e Olimpíadas, que acontecerão na cidade..
Pacificação com prazo de validade?
Atualmente o efetivo policial carioca não passa da marca dos 40 mil. Destes, 3.900 já estão destacados em UPPs, quase 10% do total. Até as Olimpíadas de 2016 este número deve chegar a 12 mil. Desta forma, mesmo que o número de policias dobrasse na cidade, chegando aos 80 mil, teríamos mais de 15% das tropas destacadas para as UPPs.
Em 2003 os Estados Unidos invadiam o Iraque. Faziam apenas dois anos que ataques atribuídos à Al Qaeda haviam derrubado as Torres Gêmeas em Nova Iorque. A ocupação era aprovada pela população, que reelegeria George W. Bush, Comandante em chefe das tropas, um ano depois. Ao passar dos anos a aprovação popular caiu progressivamente e a mídia estadunidense, antes carro-chefe para aprovação da guerra, foi mostrando como tal invasão era cara e ineficaz.
Corre-se o risco de que, passado as Olimpíadas, vivamos algo parecido com o ocorrido no Iraque em relação às UPPs. Hoje elas são festejadas pela população e pela mídia (veja matéria de Cristina Tardáguila para a revista Piauí sobre a ação midiática das UPPs), mas com o passar dos anos, ao fim de um período de melhora e de cuidado por conta da visibilidade da cidade no resto do mundo, tal aprovação pode cair. Isto pode acontecer se, após 2016, não haver mais interesse do poder público. Sem esse interesse, a defasagem de equipamentos, de salários e a corrupção podem acabar com o sonho de trazer segurança e cidadania à população das favelas. UPPs: SOLUÇÃO?
UPPs: SOLUÇÃO(?), por João Victor Moura
joaovictormoura@revistaovies.com
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Sou do Rio e achei a matéria lúcida e correta! Parabéns!