A natureza é feita de movimento. A chuva cai, os ventos sopram, as asas batem. Os animais migram de lado a outro em busca de alimento e de proteção. E, por muito tempo, enquanto os seres humanos éramos só animais, sem nos vermos como racionais e dotados de polegares opositores, também vagávamos em busca das mesmas coisas. Sair de um lugar a outro era uma questão de sobrevivência.
Daí vieram o sedentarismo, a agricultura e a tecnologia e nos quedamos por onde estávamos. As sociedades progrediram, tornaram-se complexas, mas, talvez, o âmago do ser humano nunca nos tenha sumido. Por mais que tenhamos complexificado nossa própria existência, ainda temos lapsos de selvageria.
Esse quê selvagem que ainda persiste em nós se tornou questão filosófica, psicológica, sociológica. Ademais, literária e cinematográfica. Da invenção do cinematógrafo, por Auguste e Louis Lumière, tivemos a primeira sessão de cinema, com o filme “A chegada do trem à estação de Ciotat”, de 1895, que unia aí dois marcos tecnológicos: a câmera e o motor. As pessoas se movimentavam, tanto pelo trem como pela câmera.
Que seja uma coincidência que câmera e motor tenham ascendido pela mesma época, compondo o que Walter Moser, professor da Universidade de Ottawa, no Canadá, chamou de “mediamoção”: “uma forma de mobilidade que nos oferecem os media, mas que, dum certo modo, substitui ou redobra o deslocamento físico, oferecendo aos seres humanos uma experiência quase paradoxal: o contato à distância. A mediamoção permite o mover-se, o encontrar-se em outro lugar”.
Desse encontro, surgiram os road movies, ou filmes de estrada, em português. Como sempre em questões de Arte, é difícil estabelecer datas; mais fácil são apontar marcos. Samuel Paiva, professor da Universidade Federal de São Carlos, aponta, no início de seu artigo sobre os filmes de estrada, a indagação que o cineasta Walter Salles se fez:
Quando nasceram os filmes de estrada? Em Homero, no desejo de Ulisses de retornar à casa? Nos primeiros documentários de cineastas-viajantes, como Robert Flaherty? Na influência dos fotógrafos humanistas, que, como Cartier-Bresson, cruzaram fronteiras para entender como viviam os outros, aqueles que não faziam parte de sua própria cultura?
Mesmo que não se possam estipular datas, o mais interessante é entender os filmes de estrada como uma mostra gritante do quão animalescos todos somos e do quão não-negativo isso pode ser. A indução à civilidade inventada é um tiro no pé, dizem-nos os filmes de estrada. Somos pedaços de carne a perambular em busca de si mesmos – isso não é ruim, pois que não nos faz menos humanos, mas ao contrário.
Não podemos confundir, no entanto, o surgimento dos filmes de estrada com aquilo que influenciou sua criação propriamente dita. As epopeias, os relatos de viagem, os filmes de bang-bang; talvez os documentários, como “Nanook, o esquimó”, dum certo referencial, sejam os primeiros filmes de estrada. Talvez nasceu com a publicação de “On the road”, de Jack Kerouac, em 1957.
Consenso é que eles florescem entre as décadas de 50, 60 e 70, como bem floresceu o movimento da contracultura – contra a tradição e o moralismo, a favor da liberdade. Como tudo que é fluido, os filmes de estrada carregam consigo muitas definições e localizações históricas, mas o road movie, como o entendemos aqui é a fusão da câmera, do motor e da contracultura. A estrada como uma rachadura que possibilita a fuga de toda a anti-liberdade. Engraçado como se mescla aí outro marco histórico: em 1956, o então presidente estadunidense Dwight Eisenhower aprovou o Sistema de Rodovias Interestaduais. Pronto, os Estados Unidos inteiros iriam se conectar por estradas – do leste ao velho oeste. Agora, misturemos tudo novamente: câmera, motor, contracultura e estradas. Não nos esqueçamos do quê selvagem e migratório que ainda temos. Transformemos isso numa epopeia modernista com o carro e as estradas, façamos disso uma obra de arte com a câmera e adicionemos uma motivação emancipatória. Temos os road movies.
Podemos citar agora “Bonnie and Clyde” (1967) e “Easy Rider” (1969), de cujas títulos brasileiros nos absteremos por questões de vergonha alheia, como dois marcos dos filmes de estrada. A partir deles, inclusive, podemos tirar os dois tipos de filmes de estrada. O primeiro é herança dos filmes de bang-bang – ou western – e é representado por “Bonnie and Clyde”: o fora-da-lei que busca na estrada a rota de fuga entre um crime e outro, entre uma cidade e outra. Podemos citar como filmes de estrada fora-da-lei ainda “Thelma e Louise” (1991) e “Gun Crazy” (1949). O segundo tipo é o da exploração: a estrada é a rota de fuga de um sistema que incomoda, ela é a jornada durante a qual as personagens descobrirão sobre si mesmas. Aí se encaixa “Easy Rider”, como também “Paris, Texas” (1984), “Central do Brasil” (1998) e “E tua mãe também” (2001). Ainda é possível a mistura dos dois, como em, por exemplo, “Assassinos por natureza” (1994).
Outro detalhe interessante nos filmes de estrada é como “é impossível ser feliz sozinho”. Thelma tem Louise, Wyatt tem Billy, Mickey tem Mallory e Bonnie tem Clyde, assim como todos os segundos têm os primeiros e todos juntos têm a estrada. O mais importante não é o fim, até porque as personagens não sabem o que procuram. A jornada é o que importa e, na sua incerteza, a companhia do parceiro.
Os filmes de estrada representam o caminho de peregrinação constante da humanidade, sempre rumando sem saber muito bem aonde. Para Marcos Strecker, “os filmes de estrada se relacionam com crises de identidade de personagens que, por sua vez, expressam a crise das próprias culturas nacionais. Têm a ver com a imprevisibilidade, improvisação, acompanhamento das personagens no confronto com a realidade, com a verdade da observação, com roteiros que permitem o fugir da rota e ir além, de superar a conformidade com a experimentação, com a apreensão do outro”.
Da união do motor, da câmera, do inconformismo e da estrada, vieram os filmes de estrada. O que virá do que há de vir? “É cinema”, podem dizer, mas cinema não existe sem sujeitos viventes. O que havemos de viver e o que havemos de criar?
Fica a conversa entre as personagens George (Jack Nicholson) e Billy (Dennis Hopper) em “Easy Rider”:
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George: Você sabe, este era um baita país. Eu não consigo entender o que aconteceu.
Billy: Cara, todo mundo amarelou, isso é o que aconteceu. Nós não conseguimos nem ficar num hotel de beira de estrada. Quer dizer, um hotel de beira de estrada, você entende? Eles acham que nós vamos cortar a garganta deles ou algo assim. Eles estão com medo, cara.
George: Eles não estão com medo de vocês. Eles estão com medo do que vocês representam para eles.
Billy: Tudo o que nós representamos para eles é alguém que precisa cortar os cabelos.
George: Não! O que vocês representam para eles é liberdade.
Billy: Mas qual é o problema com liberdade? É só isso que interessa.
George: Sim, certo! É só isso que interessa, sim. Mas falar sobre liberdade e estar nela, essas são coisas muito diferentes. Quer dizer, é muito difícil ser livre quando você é comprado e vendido no mercado. Claro, nunca diga a ninguém que ele não é livre, porque todos eles vão ficar muito ocupados matando e mutilando para provar como eles são livres. Eles vão falar e falar e falar sobre liberdade individual, mas, quando eles virem um indivíduo livre, isso vai assustá-los.
Billy: Mas isso não os faz fugir de medo.
George: Não, isso os faz perigosos.
REFERÊNCIAS RECENTES:
FONDA, Peter; HOPPER, Dennis. Easy Rider [filme-vídeo]. Dirigido por Dennis Hopper. Estados Unidos, 1969, 94min.
GRANT, Barry Keith. Road movie. In: Schirmer Encyclopedia of Film, v.3. Farmington Hills: Thomson Gale, 2006.
HAMSHER, J.; MILCHON, A.; MOUNT, T.; MURPHY, D.; STONE, O. Assassinos por natureza [filme-vídeo]. Dirigido por Oliver Stone. Estados Unidos, 1994, 119 min.
PAIVA, Samuel. Gêneses do gênero road movie. Caxias do Sul: Anais do XXXIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 2010.
EPOPEIAS MODERNAS, pelo viés de Gianlluca Simi
gianllucasimi@revistaovies.com
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